REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721
Número 05 – Julho/Dezembro 2007
Raça e estado democrático: caminhos para o reconhecimento das diferenças
Priscila Martins Medeiros – Pesquisadora FAPESP, Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos/SP e Mestranda em Sociologia pela mesma universidade.
E-mail: prisocial@yahoo.com.br
Resumo do Artigo: O pertencimento racial é hoje entendido como um determinante significativo na estruturação das desigualdades sociais no Brasil. As recentes aprovações de políticas de Ação Afirmativa deram início a uma forte revisão das premissas liberais no Brasil. Frente a isso, este artigo tem como objetivo trazer uma contribuição teórica para a problematização de um dos maiores paradigmas da modernidade: os fundamentos da igualdade e da diferença e as possibilidades de uma política pautada no reconhecimento. Para tanto, o texto traz uma reflexão orientada pelo multiculturalismo, com enfoque nos debates sobre políticas regulatórias e emancipatórias. A abordagem procura conciliar os instrumentos jurídico-formais e as contribuições de uma sociologia da diferença para a defesa das ações afirmativas no Brasil.
Sumário: 1. Introdução; 2. Ações Afirmativas e Disputas Jurídicas no Brasil; 3. Raça e Pensamento Liberal: é possível?; 4. Os limites das premissas liberais e a Política do Reconhecimento; 5.Referências bibliográficas.
Palavras-chave: Liberalismo; Raça; Reconhecimento; Identidade; Ações Afirmativas.
Race and democratic state: ways for the recognition of the diferences
Abstract: As a general rule, nowadays the racial belonging is understood as a significant determinative in the elaboration of the social inequalities in Brazil. The recent approvals of politics of Affirmative Action had given beginning to one strong revision of the liberal premises in Brazil. Front to this, this article has as objective to bring a theoretical contribution for the problematizacion of one of the biggest paradigms of modernity: the beddings of the equality and the difference and the possibilities of one politics based in the recognition. For in such a way, the text brings a reflection guided for the multiculturalism, with approach in the debates on regulatory and emancipator politics. The boarding looks for to conciliate the instruments legal-deeds of division and the contributions of a sociology of the difference for the defense of the affirmative actions in Brazil.
Key-words: Liberalism, Race; Recognition; Identity; Affirmative Actions.
- Introdução
O pertencimento racial é um determinante significativo na estruturação das desigualdades sócio-econômicas no Brasil, porém essa é uma realidade reconhecida há pouquíssimo tempo. O marco inicial das denúncias oficiais de desigualdades raciais no Brasil são os anos 1950, com o lançamento de um grande projeto encomendado pela UNESCO, que surgiu com o intuito de apresentar o país ao mundo como um modelo a ser seguido, pois teria resolvido de forma tranqüila a problemática racial (MAIO,1997)[1]. A pesquisa acabou frustrando suas expectativas iniciais ao ter identificado a discriminação racial persistente no Brasil, país frequentemente descrito como um “paraíso racial”. A partir da década de 1980 o debate toma abrangência e destaque nacional devido às denúncias do Movimento Negro, que naquele momento de redemocratização do país, ressurge bastante fortalecido. Além disso, na mesma década são publicadas importantes análises sociais[2] que reafirmam categoricamente as desigualdades raciais já apontadas anteriormente.
Os anos 1980 são o marco legal do início das proposições voltadas para essas desigualdades uma vez que a Constituição Federal (1988) tornou, finalmente, o preconceito de raça ou cor um crime inafiançável e imprescritível[3]. Apesar da importância desse fato, a criminalização ainda é uma ação muito tímida por parte do Estado brasileiro. Vale lembrar que a Frente Negra Brasileira pressionou a constituinte de 1934 para que se discutisse e incluísse a temática racial, porém, nenhuma menção foi feita na constituição. Na década seguinte, em 1946, a Convenção Nacional do Negro tentou o mesmo procedimento, porém, novamente, o tema foi silenciado na legislação. Portanto, o artigo nº 5 da Constituição de 1988 é uma importante vitória que só foi possível devido a uma luta intensa da militância e intelectualidade negra, que repetidas vezes sofreu retaliações por parte do Estado brasileiro.
Só mais recentemente, a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, que vimos os primeiros avanços na temática racial a partir de medidas que sinalizaram o início do tratamento da questão como uma das prioridades do Estado, e não mais como um assunto que “vem e vai” de acordo com as gestões governamentais. Reconhecidamente, esses anos foram importantíssimos uma vez que a temática, antes abordada basicamente no interior da academia, passou para a pauta política. No entanto, o tratamento da problemática racial, até 2001, ainda estava muito limitado ao formato de programas.
Em setembro de 2001, na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, promovida pela ONU e realizada em Durban, vimos a temática racial ganhar uma grande redefinição em todo o mundo, em especial no Brasil, último país do mundo a abolir o trabalho escravo de pessoas de origem africana e a maior nação negra[4]fora da África. Nessa ocasião, centenas de organizações do movimento negro brasileiro e demais organizações da sociedade civil se uniram com o propósito de repensarem as relações raciais no Brasil e discutirem tanto formas de denúncia do preconceito e discriminação quanto a elaboração de propostas de intervenção. Na conferência, o governo brasileiro admitiu que a população negra encontra barreiras legais que impedem sua ascensão social no país, ou seja, que a concepção de uma democracia racial[5] nunca fez parte de nossa realidade. Desde a Conferência de Durban até os dias atuais observamos importantes iniciativas, tais como a publicação da Lei 10.639 (09.01.2003) que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio de todo o país e a criação, em julho de 2003, da SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (HERINGER, 2005).
- Ações afirmativas e disputas jurídicas no Brasil
Mesmo com os avanços acima mencionados, ainda não conseguimos observar a equivalência entre a legislação e a realidade vivida pela população negra brasileira. E uma das causas disso pode ser a fraca atuação do Poder Judiciário no enfrentamento das práticas discriminatórias, já que ainda existe vinculação ideológica ao mito da democracia racial. Apesar de importantes iniciativas tomadas pelo Ministério da Justiça, as maiores barreiras para a implementação das Ações Afirmativas[6] voltadas aos afro-brasileiros estão justamente postas no âmbito da justiça, o que justifica a necessidade de estudos que analisem o andamento desse debate no campo jurídico brasileiro[7].
As discussões acerca das ações afirmativas se intensificaram muito após as primeiras medidas para a implementação de cotas em universidades públicas para o ingresso de grupos minoritários historicamente discriminados da esfera acadêmica. O tema alcançou seu auge em meados do ano de 2003, quando foram ajuizados mais de 200 mandados de segurança individual, três representações de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) perante o Supremo Tribunal Federal contra as leis editadas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Essas leis estabeleceram reserva de vagas para estudantes “negros”, ou seja, aqueles que se auto-declaram pretos ou pardos, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ – e na Universidade do Norte Fluminense – UENF[8].
As disputas jurídicas a respeito da constitucionalidade das ações afirmativas para a população negra demarcam um momento de extrema importância para o Brasil: os movimentos sociais têm se pronunciado; o poder judiciário passa por mudanças, revendo o princípio da igualdade jurídica; assistimos ao surgimento de diversas propostas e projetos por parte de órgãos públicos; os brasileiros como um todo estão discutindo um grande dilema nacional, silenciado e banalizado durante toda a história do país.
- Raça e pensamento liberal: é possível?
O rápido debate apresentado nas sessões anteriores vem contextualizar o tratamento da temática racial no cenário brasileiro, tanto no que tange a atuação dos movimentos sociais quanto à dimensão político-legal. A descrição destaca a postura do Estado frente às desigualdades raciais (Estado este que vem gradativamente se tornando mais propositivo) e também aponta para a necessidade de implementação de políticas dirigidas especificamente aos grupos sociais subalternizados.
Todavia, o debate acerca das políticas de ação afirmativa tem como pano de fundo algo muito mais complexo: ele traz em sua essência a reinterpretação do pensamento liberal-burguês e de suas principais premissas, tais como os princípios de Liberdade, Igualdade e Autonomia.
Podemos encontrar a raiz do pensamento liberal em Locke, porém, este vem refutar os pressupostos sobre o estado de natureza discutido anteriormente por Hobbes. A teoria hobbesiana resgata as chamadas “leis naturais” na crença de interpretar a essência humana de forma bastante mecanicista e, ao mesmo tempo, bastante pessimista pois, segundo ele, antes da existência de um contrato social, o que havia era uma situação na qual todos são contra todos, pautados numa desconfiança mútua e em lutas de competição por recursos naturais. No estado de natureza, aqueles que conseguiam os recursos mínimos (comida e abrigo, por exemplo), viviam amedrontados pela ameaça dos outros que ainda não possuíam esse mínimo. Mais do que isso,diz Hobbes, alguns daqueles que possuem os recursos podem muitas vezes alimentar o forte desejo pela glória, causando conflitos e violência. Todas essas características, segundo o autor, resultam em um estado generalizado de guerra de todos contra todos, de forma bruta e crua (HOBBES, 2002).
Em contraposição a Hobbes, Locke acredita que no estado de natureza já havia alguma forma de organização, pautada em leis divinas. Segundo ele, nesse estado já haveria o entendimento sobre 3 leis naturais básicas: o direito à vida; o direito à liberdade e à propriedade. A existência de um governo só apresentaria sentido se ele garantisse a perpetuação de tais leis. Justamente na teoria de Locke surgem questões de grande importância para todos aqueles que defendem a adoção de políticas de ação afirmativa na atualidade, principalmente para aqueles dispostos a dialogarem com as perspectivas mais liberais. No momento em que Locke escrevia (final do século XVII), a concepção de igualdade, tal qual a compreendida pelo liberalismo contemporâneo, ainda não existia. Para ele, a desigualdades entre as pessoas era completamente natural e compreensível. Tão compreensível, que a escravidão fora completamente justificada a partir do pressuposto de que existem diferenças inatas, que alocam pessoas para a posição de senhores ou então de escravos. A liberdade, para Locke, estava intimamente relacionada à noção de propriedade o que, mais uma vez, explicava a legitimidade da escravidão, que nada mais é para ele que o direito de alguns sobre as vidas de outros. Vidas que passam a corresponder a propriedades (LOCKE, 2002).
É interessante nos lembrarmos neste momento de Luiz Gama, que foi um dos maiores intelectuais negros da história brasileira e um grande jurista. Sozinho e a partir das leis, ele libertou mais de 500 negros escravizados. Um de seus principais argumentos era pautado justamente na noção de propriedade, segundo a qual, nenhum dono poderia tratar seus bens com descaso. Dessa forma, os escravizados (que eram tidos como propriedades) seriam salvaguardados pela lei e teriam sua liberdade totalmente justificada nos casos de grandes abusos. Muitos escravizados que haviam assassinado seus “donos” também foram libertos por Gama a partir da premissa de que, se a propriedade for mal tratada, ela mesma pode legitimamente se voltar contra seu “dono”. A interpretação jurídica de Luiz Gama já foi criticada pelo fato dela ser totalmente imersa no arcabouço regulador do liberalismo , mas não podemos negar que ele fez um grande exercício jurídico, evidenciando justamente os limites de tais princípios liberais. No caso norte-americano, talvez o intelectual negro que mais se aproximou às interpretações realizadas por Luiz Gama tenha sido Frederick Douglass (1963). Ele é contemporâneo de Gama (século XIX) e, assim como este, não via relevância na defesa da noção de raça. Douglass, apesar de já sinalizar uma espécie de ação afirmativa limitada, pautava seus argumentos na noção de cidadania. Assim como Luiz Gama, Douglass mostrava os limites dos pressupostos liberais, mas recorrendo para argumentos de fundo religioso, moral e legal.
Talvez, uma das maiores diferenças entre as atuações de Gama, no Brasil, e Douglass, nos Estados Unidos, tenha sido o grau de comprometimento com movimentos sociais formados por negros. Douglass, ao se apoiar na noção de cidadania, defendia que as diferenças raciais seriam absorvidas pelo sentimento de identidade nacional. Dessa forma, ele se posicionava contrário à quais quer frentes que defendessem uma identificação negra. Luiz Gama, por sua vez, participou ativamente de uma série de ações realizadas por escravizados, auxiliando inclusive em diversas fugas. Aqui vemos, tanto em Gama quanto em Douglass, uma mescla entre posições fiéis ao liberalismo mais regulador e posturas que caminham para uma emancipação de grupos subalternizados.
Esse é um debate muito atual dentro das discussões acerca da implementação das ações afirmativas no Brasil, ainda mais no contexto de total erosão de várias das promessas modernas e do Estado-Providência. Um dos autores que vêem discutir a relação entre regulação e emancipação é Boaventura de Sousa Santos (1995)[9]. Segundo o autor, os mecanismos de regulação na modernidade (que se originam tanto do Estado, quanto do mercado e da comunidade) geriram os processos de desigualdade e de exclusão produzidos pelo capitalismo. Ele exemplifica dizendo que esses dois processos podem estar presentes em um único fenômeno social, como é o caso do racismo: a hierarquização das raças ainda observável em nosso meio, que segrega brancos e negros em diversas esferas e espaços, é fruto do processo de exclusão. Por outro lado, a exploração colonial e a política de branqueamento da população a partir do auxílio à imigração européia é o caso de um processo de desigualdades, ou seja, de uma integração subordinada.
Boaventura ainda salienta que o dispositivo ideológico da moderna luta contra esses sistemas regulatórios é o universalismo, que nada mais é que uma forma de caracterização essencialista que pode assumir duas formas aparentemente contraditórias: o universalismo antidiferencialista, que opera na negação das diferenças e o universalismo diferencialista, que, por sua vez, age através da absolutização das diferenças. O primeiro deles é uma norma de homogeneidade dos indivíduos a partir do apagamento das diferenças e que, por essa via, reproduz a hierarquização existente na sociedade. Por outro lado, o universalismo diferencialista opera pela negação das hierarquias que organizam a multiplicidade das diferenças. Não nos esqueçamos que ambos universalismos são caracterizações essencialistas: se o primeiro universalismo inferioriza pelo excesso de semelhança, o segundo inferioriza pelo excesso de diferença.
As políticas denominadas “universalistas” não incentivam a quebra de estereótipos e nem a construção de uma representação social de apreço e reconhecimento das diferenças, pois não atendem às especificidades dos grupos ou indivíduos vulneráveis, acarretando a perpetuação da desigualdade de direitos e de oportunidades. Disso emerge a necessidade de políticas de ação afirmativa que, atendendo ao direito à diferença, percebem os grupos ou indivíduos como sujeitos concretos, historicamente situados e que possuem características singulares.
- Os limites das premissas liberais e a política do reconhecimento
Na intenção de argumentarmos favoravelmente às políticas de ação afirmativa, seguiremos apontando algumas rápidas reflexões que se fazem necessárias no que tange a algumas das premissas liberais muito assinaladas por aqueles que defendem a permanência de políticas universalistas. Podemos apontar ao menos três desses princípios: Liberdade, Igualdade e Autonomia, sobre os quais já descrevemos rapidamente a partir dos fundadores do pensamento político liberal, mas que nesta sessão buscaremos ajuizar sobre os reais alcances de tais premissas na contemporaneidade.
Se considerarmos, por exemplo, a noção liberal de Liberdade, não podemos ignorar que ela só é possível na situação de sociedade não-homogênea. Ou seja, na presença de homogeneidade física e cultural, os indivíduos têm suas características próprias engessadas por conta da hegemonia de pensamentos, de idéias e de práticas sociais por parte do grupo favorecido, que assimila as diferenças. Dessa forma, não é possível falarmos em liberdade sem a existência do direito à diversidade em sua mais ampla magnitude[10]. Mais do que isso, a própria liberdade de participação na sociedade civil só é integralmente alcançada quando os indivíduos podem trazer à tona as referências e as reivindicações de seus grupos de origem.
Relacionado a isso, está o pressuposto liberal da Igualdade, que é uma construção jurídico-formal segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção e completamente neutra. Hoje, porém, sabemos que a “neutralidade” do Estado Liberal tem se revelado bastante ineficaz e reduzida basicamente aos limites jurídicos. Frente a isso, a igualdade passa a ser analisada sob outra ótica, na qual o foco da atenção recai sobre a distinção entre a Igualdade Formal e Igualdade Substancial. Segundo Fernanda Silva (2004), a primeira noção é a tradicional concepção liberal-burguesa “cega às diferenças”, enquanto que a segunda diz respeito a uma igualdade materializada, ou seja, uma igualação de fato entre as pessoas, levando-se em conta as desigualdades existentes na sociedade. Dessa forma, o campo normativo incorpora a nova forma de perceber o ser humano como ser dotado de características singulares e passa a tratar de sua especificidade. Aliás, percebemos esse movimento no próprio Ministério Público brasileiro, que hoje se coloca favoravelmente à implementação de políticas diferencialistas, como é o caso das reservas de vagas ou cotas nas universidades públicas. O debate sobre igualdade e diferença é muito bem resumido na frase de Boaventura de Souza Santos que diz: “Temos o direito a sermos iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de sermos diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”(SANTOS, 1995: p. 41).
Uma outra premissa liberal bastante relembrada por aqueles que são contrários à implementação de Ações Afirmativas é a noção de Autonomia, entendida como a capacidade de cada pessoa construir por si mesma sua concepção de boa vida[11], seus ideais de autodeterminação e auto-expressão. Esses ideais descritivos da autonomia também podem ser desdobrados na necessidade de autoconfiança, auto-respeito e auto-estima que são, segundo Axel Honneth (2003), os caminhos subjetivos para se chegar ao reconhecimento. Ora, aqui está justamente o grande limite da defesa liberal da noção de Autonomia, pois ela jamais poderia existir sem a existência do respeito e do reconhecimento das diferenças. Um indivíduo, que não possui suas características definidoras respeitadas pela sociedade geral, nunca pode ter a necessária autonomia para fazer suas escolhas e para a participação social. Ele só adquire autonomia no momento que é reconhecido e legitimado pelos demais integrantes da sociedade.
Frente a essas premissas liberais e compreendendo seus próprios limites, percebemos que as políticas “sensíveis às diferenças”, como é o caso das Ações Afirmativas, significam a superação do ideário filosófico moderno, que descrevia o ser humano como uma unidade homogênea, pela idéia pós-moderna dos seres humanos possuidores de especificidades (SILVA, 2004).
O não-reconhecimento de grupos minoritários resulta hoje em num dano que é lamentavelmente observável. Fanon (1979) afirma que a principal arma dos colonizadores era a imposição de uma imagem de inferioridade dos povos subjugados. O colonizado, segundo ele, a fim de libertar-se, tem antes de tudo de se purgar dessas auto-imagens depreciativas. Nessa perspectiva, Taylor (2000) procura desvendar os vínculos entre reconhecimento e identidade. Segundo ele, a identidade do ser humano é parcialmente moldada a partir do reconhecimento, ou da falta deste, isto é, da representação ou da má representação que dele é feita por outros seres humanos. A identidade, de acordo com esse autor, designa algo como uma compreensão de quem somos, de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos, e essa compreensão é alcançada tanto por fatores da esfera íntima quanto da esfera pública.
Taylor ainda afirma que é praticamente impossível que uma pessoa que não se enxergue como digna de respeito e admiração possa ter qualquer espécie de participação na esfera pública. A interiorização de um sentimento de inferioridade, de uma categoria de sub-gente, tem efeitos muito fortes de naturalização das desigualdades (SOUZA, 2003).
Charles Taylor ainda diz algo que é bastante interessante e que vem de encontro com as discussões sobre o pensamento liberal esboçado acima: a noção de identidade moderna originou uma política da diferença também baseada em princípios universais, ou seja, na noção de que todos devem ter reconhecida sua identidade (TAYLOR, 2000). Dessa forma, o que temos é uma exigência universal que fortalece o reconhecimento da especificidade. O autor ressalta ainda que as políticas de ações afirmativas que têm sido implementadas nos últimos tempos não atingem diretamente o foco da discriminação. Segundo ele, essas ações afirmativas acabam gerando apenas um processo de redistribuição de renda, o que separa as esferas da cultura e da economia. O que há de importante na proposta de ações afirmativas e que nunca deve ser deixado de lado, salienta Taylor, é que o reconhecimento é fundamental para o desenvolvimento das identidades e que, portanto, não possui um “prazo de validade”, devendo estar sempre garantido para que haja sempre o exercício das particularidades. Isso é o que realmente esperamos e o que nos guia na luta cotidiana e nas discussões teóricas.
- Referências bibliográficas
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FANON, Franz. Os Condenados da Terra, São Paulo: Edusp, 1961.
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
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HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A Gramática Moral dos Conflitos Sociais, São Paulo: Editora 34, 2003.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2002.
MAIO, Marcos Chor. A História do Projeto UNESCO: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1997.
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TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Editora Loyola, 2000.
[1] Florestan Fernandes, Roger Bastide e Oracy Nogueira foram os principais pesquisadores a trabalharem no projeto UNESCO.
[2] Análises Sociais feitas principalmente por Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle e Silva e José Pastore.
[3] A Constituição Federal de 1988, em seu artigo nº 5 parágrafo XLII, reza: “prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Esse parágrafo é regulamentado pela Lei nº7.716, de 5 de janeiro de 1989, modificada depois pela Lei nº9.459 de 13 de maio de 1997.
[4] O Censo Brasileiro pede às pessoas que se classifiquem dentro de uma das cinco categorias estabelecidas: branco; preto; pardo; indígena e amarelo. Para propósitos estatísticos e por semelhanças em termos de indicadores sociais, pesquisadores uniram as categorias preto e pardo em uma única denominada negro. Indiscutivelmente, o termo raça é uma categoria construída nas relações sociais, não apresentando o menor significado biológico. Ela é uma variável de grande relevância nas pesquisas sociais, pois está constatado que o pertencimento racial define posições sócio-econômicas no país.
[5] Segundo Guimarães, o primeiro a utilizar essa expressão parece ter sido Charles Wagley, em 1952. (GUIMARÃES, 2002:139)
[6] Compartilho da definição de Ação Afirmativa feita por Joaquim B. Gomes (2001).
[7] Entendo por “campo jurídico brasileiro” como sendo o espaço delimitado pelo Poder Judiciário – definido nos Arts. 92 a 126 da Constituição Federal de 1988 – mas também os demais usos da justiça na dinâmica social como, por exemplo, os artigos de juristas que discutem a adoção de políticas de ação afirmativa.
[8] De acordo com Boaventura Rodrigues V. H. Santy, pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFSCar, o Brasil conta atualmente com 45 universidades públicas (entre municipais, estaduais e federais), além de algumas FATECs que aprovaram o acesso diferenciado em seus vestibulares. Fonte: pesquisa Mapeamento das Ações Afirmativas nas Universidades Públicas(2006/2007).
[9] Discussão presente no texto A Construção Multicultural da Diferença e da Igualdade, resultado de uma palestra proferida durante o VII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado no Rio de Janeiro em setembro de 1995.
[10] Essa discussão é muito bem desenvolvida por Patrícia Mattos em seu livro A Sociologia Política do Reconhecimento: As contribuições de Charles Taylor; Axel Honneth e Nancy Fraser, São Paulo: Annablume, 2006.
[11] Conceito Tayloriano