Possíveis limites da justiça restaurativa: capital social e comunidade

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 04 – Janeiro/Junho 2007

Possíveis limites da justiça restaurativa: capital social e comunidade

Letícia Núñez Almeida – Graduação em Direito pela Universidade Católica de Pelotas/RS, Especialização em Processo Civil e Constituição/UFRGS, Especialização em Projetos Sociais e Culturais/ UFRGS e  mestranda em Sociologia/ UFRGS

E-mail: ticialmeida@hotmail.com

Resumo: O tema deste trabalho visa abordar a teoria da Justiça Restaurativa como um movimento que traz  discussões a respeito de novas formas de entender a reparação de danos causados por infrações penais.Não é pretendido aqui, discutir aspectos formais da legislação brasileira, e sim,  abordar o que se entende por Justiça Restaurativa e alguns de seus possíveis limites de implementação a partir de uma visão sociológica. Para tanto, propõe-se uma análise crítica dos conceitos de “comunidade” e de “capital social” ressaltando possíveis limitações às práticas restaurativas, entendendo que o movimento em prol da Justiça Restaurativa discute uma nova maneira de implementar a justiça penal; por meio de um processo colaborativo, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e  aos relacionamentos ao invés da punição de transgressores da norma legal.

Sumário: 1. Introdução; 2. Justiça Restaurativa e seus fundamentos; 3. O lugar da Comunidade: do conflito à cooperação; 4. Capital Social: bem comum, confiança e reciprocidade; 5. À guisa de conclusão; 6. Referências bibliográficas.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa – comunidade – capital social – cidadania

  1. Introdução

O tema deste trabalho visa abordar a teoria da Justiça Restaurativa como um movimento que traz  discussões a respeito de novas formas de entender a reparação de danos causados por infrações penais. Assina-se, de início, que não é pretendido aqui, discutir aspectos formais da legislação brasileira, e sim, o que se entende por Justiça Restaurativa e quais alguns de seus limites de implementação a partir de uma visão sociológica. Sabe-se que os defensores desse movimento entendem ser necessário a criação de leis e diretrizes para a efetiva implantação os programas restaurativos, mas esse não será o foco deste estudo.

Tendo em vista, que as idéias desenvolvidas por esse movimento são colocadas como alternativas às que se discutem tradicionalmente nas reformas do Judiciário no Brasil e em outras partes do mundo, ou seja, visa mudar a abordagem basicamente retributiva do sistema. A idéia deste trabalho é propor algumas hipóteses sobre possíveis limites para redefinir jurisdições e competências modificando os modos convencionais de fazer justiça, ou seja, a adoção de práticas alternativas às convencionais.

Para tanto, serão utilizados como referencial teórico os conceitos de Comunidade (Bauman) e de Capital Social (Coleman e Putnam) visando salientar aspectos extralegais que possam ser importantes para implantação de práticas restaurativas.

  1. Justiça Restaurativa e seus fundamentos

“(…) mudar quer dizer alterar o modo corrente de interação no seio do sistema e deste com os usuários e a população em geral – diminuir a dependência em relação à lógica burocrática e confiar cada vez mais em consenso e participação.Transformando a experiência de todos e cada um com o sistema de justiça.”[1]

A partir dos anos setenta e principalmente durante a última década vem crescendo internacionalmente as discussões e curiosidades em torno de uma corrente de pensamento que se apresenta como reformadora: o movimento restaurativo. Suas propostas visam alterar profundamente a natureza dos resultados que o sistema de justiça atualmente produz, entendendo que definir justiça envolve pelo menos três pressupostos:

  1. a) infrações não são atos lesivos apenas à lei e ao Estado, mas acima de tudo aos indivíduos e relacionamentos, pois resultam em danos às vítimas, às famílias, às comunidades e aos próprios infratores;
  2. b) o objetivo essencial do processo legal é fazer justiça, através da reconciliação entre as partes e da reparação dos danos causados;
  3. c) conflitos são resolvidos melhor facilitando-se o envolvimento das vítimas, dos infratores, das famílias e das comunidades[2].

A partir desse entendimento, o movimento em prol da Justiça Restaurativa discute uma nova maneira de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e  aos relacionamentos, ao invés de punir os transgressores. Para tanto, defendem a necessidade de um processo colaborativo que envolve as partes interessadas e afetadas pelo crime na determinação de qual a melhor medida para reparar o dano causado, e não a retribuição ao dano por meio de penas aplicadas em função do dolo e da culpa.

Em contraposição ao modelo repressivo utilizado pelo paradigma retributivo, onde a punição  é a forma de atender as demandas em relação à resolução de demandas criminais, a proposta da Justiça restaurativa não pretende excluir os indivíduos, e sim, ampliar o quadro de opções oferecidas pela justiça retributiva. Como ensina Zeher(2003):

“Quando um crime é cometido, assumimos que a coisa mais importante que pode acontecer é estabelecer a culpa. Este é o ponto focal de todo o processo criminal: estabelecer quem praticou o crime. A preocupação, então, é como passado, não como futuro. Outra afirmação que incorporamos é a que as pessoas devem ter aquilo que merecem;todos devem receber as conseqüências  de seus atos…e o que merecem é a dor. A lei Penal poderia ser mais honestamente chamada de “Lei da Dor” porque, em essência, esse é um sistema que impõe medidas de dor.”[3]

Em contraposição a esta  dinâmica “da dor”, as práticas restaurativas estão baseadas na idéia de investir na não retribuição como primeira opção para resolução de demandas penais. O Papel das partes interessadas é o elemento estrutural desse processo cujo enfoque é relacionar o dano causado pela infração penal às necessidades específicas de cada interessado, buscando respostas restaurativas eficazes e que satisfaçam todos os envolvidos. Essas  práticas de cunho restaurativo e não retributivo não são novidades da modernidade, na tradição jurídica da humanidade – tal como ainda se observa em muitos povos indígenas – a responsabilidade não recaía exclusivamente sobre os infratores, mas nas famílias e comunidades. Os culpados não eram excluídos do meio social; ficavam onde sempre estiveram, para retomar o controle de suas vidas e tentar restaurar a harmonia desfeita.

Segundo Scuro[4] (2002), nas sociedades primitivas, em lugar de isolar e punir o infrator, a meta da justiça era atingir consenso, envolver família e comunidade na busca de harmonia e reconciliação, promover acordo entre as partes. A preocupação principal não era a lei nem explorar o medo do castigo e mecanismos de culpa, mas determinar as razões mais abrangentes do malfeito (partindo do pressuposto de que freqüentemente todos os envolvidos têm a sua parcela de responsabilidade). Segundo o autor, os transgressores prejudicam seu relacionamento com suas “comunidades”  ao trair a confiança das pessoas e para recriar esse laço, as relações deveriam ser fortalecidas  com o intuito de o infrator vir a poder assumir a responsabilidade por suas más ações.

A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal. O engajamento cooperativo é elemento essencial da justiça restaurativa. Trata-se de suprir as necessidades emocionais e materiais das vítimas e, ao mesmo tempo, fazer com que o infrator assuma responsabilidade por seus atos, mediante compromissos concretos. Dessa forma, entende-se que a essência da Justiça Restaurativa é a resolução de problemas de forma colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam àqueles que foram prejudicados por um incidente, a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos ou evitar que aconteça de novo.

O objetivo dessas práticas é fazer com que as comunidades preencham as necessidades do transgressor garantindo que algo será feito sobre o incidente, que ao se ter conhecimento do ato errado, serão tomadas medidas para coibir novas transgressões. E ainda, os processos  restaurativos reintegrarão vítimas e transgressores, fortalecendo a “comunidade”, aumentando a coesão e fortalecendo e ampliando a capacidade dos cidadãos de solucionar seus próprios problemas.

Assim, a “comunidade” possui papel central na teoria da Justiça Restaurativa, entendem seus defensores que é por meio dela que podem ser criados mecanismos  alternativos para administrar os danos causados por infrações penais, pois ela é uma das vítimas  desse processo.

  1. O lugar da Comunidade: do conflito à cooperação

“(…) numa comunidade genuína, os indivíduos conquistam sua liberdade na/e através de sua associação.” [5]

Praticamente todos os escritos encontrados referentes à justiça restaurativa concedem à comunidade ou às comunidades um papel central dentro do seu modelo. Este lugar é concedido a título duplo: como vítima indireta do crime e como participante para a administração dos programas de justiça restauradora. Num sistema restaurador, o dano atinge não só a pessoa diretamente prejudicada pelo crime, mas também a comunidade mais ou menos próxima da vítima direta. Esta idéia de que a comunidade será lesada pelo crime indiretamente baseia-se em uma orientação que desloca o foco de uma justiça clássica punitiva na qual o Estado é tido como a entidade prejudicada pelo crime para um movimento restaurativo na qual são as pessoas concretas e suas comunidades que sofrem os contragolpes da criminalidade.

Explica Mylène Jaccoud (2005)[6], que os defensores da Justiça restaurativa, como por exemplo Van Ness, sustentam que o crime afeta a comunidade em sua ordem, em seus valores e na confiança que os membros podem lhe consagrar. Mas qual a definição para o conceito de comunidade? Como determiná-la? Elas existem de fato?

“O conceito de Comunidade é considerado um dos conceitos mais vagos e evasivos em ciência social, a idéia de comunidade continua a desafiar uma definição precisa.Parte do problema tem origem na diversidade de sentidos atribuída à palavra e às conotações emotivas que ela geralmente evoca. Tornou-se uma palavra chave usada para descrever unidades sociais que variam de aldeias, conjuntos habitacionais e vizinhanças até grupos étnicos, nações e organizações internacionais. No mínimo, comunidade geralmente indica um grupo de pessoas dentro de uma área geográfica limitada que interagem dentro de instituições comuns e que possuem um senso comum de interdependência e integração.”  (BOTTOMORE, 2006:115)

Segundo Crawford[7] , a definição do conceito de comunidade está longe de ser simples no contexto das mutações importantes que as sociedades pós-modernas conheceram, mutações particularmente marcadas pelo surgimento do individualismo e da sociedade civil. Para o autor, jamais se tratou tanto da(s) comunidade(s) em uma sociedade marcada pela desagregação de seus laços comunitários e pelo crescimento do individualismo. No desenvolvimento da justiça restaurativa, a insistência sobre o recurso à comunidade se insere no contexto de uma transformação do papel do estado e de sua dificuldade para manter suas funções de controle da ordem pública. Porém, a comunidade é abordada de uma forma “cálida”, ou seja, um lugar onde todos se entendem bem, onde se pode confiar no que se ouve, onde não há estranhamento entre os indivíduos etc. Segundo Bauman[8] (2003), há uma ilusão de que na comunidade as discussões são amigáveis e que as discordâncias e interesses individuais são amenos, e ainda, que os que nela vivem não desejam a má-sorte uns aos outros, vivendo todos em harmonia. A palavra comunidade evoca tudo aquilo de que se sente falta  e de que se precisa para viver seguro e confiante no mundo moderno. Nas palavras de Bauman:

“(…) numa comunidade podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez.Ninguém vai rir de nós, nem ridicularizar nossa falta de jeito e alegrar-se em nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicação e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre.”[9]

Talvez o fato da inexistência dessa comunidade organizada e consciente de sua estrutura seja um limite às práticas restaurativas, não se sabe se as pessoas estão dispostas a responder por seu grupo, e menos ainda, se acreditam que o quê importa realmente é a integridade do sentimento comunitário. Segundo Jaccoud[10], a inclusão da comunidade como parceira na administração dos programas restaurativos também inclui o perigo de torná-la uma condição necessária para definir a justiça restaurativa, e de recair nos argumentos previamente levantados. A “comunidade” não tem, necessariamente, como elementos constitutivos, a disposição para o voluntariado e consenso entre as partes e ainda, as partes podem entender que as decisões devam ser tomadas unicamente pelo Estado e não de forma colaborativa. Para que  comunidade seja vítima efetivamente, deve haver um sentimento de que a coesão   entre os seus membros foi lesada de alguma forma. A hipótese aqui levantada é a de que, esse elo que faz de um grupo de pessoas uma “comunidade” chama-se capital social, uma rede de reciprocidade e confiança que cria  um sentimento comum passível de ser ferido por um ato infracional.

  1. Capital Social: bem comum, confiança e reciprocidade

Com o conceito de Capital Social ocorre o mesmo que com o de  Comunidade, não há ainda uma definição precisa e a maioria dos autores recorre a definições relacionadas com suas funções, ressaltando ora aspectos da estrutura social ora o uso desse recurso por indivíduos.

Coleman (1990)[11] trabalha com o conceito no plano individual, apontando a capacidade de relacionamento do indivíduo, sua rede de contatos sociais baseada em expectativas de reciprocidade e comportamento confiáveis que, no conjunto, melhoram a eficiência individual. Para o autor, no plano coletivo, o capital social ajudaria a manter a coesão social, pela obediência às normas e leis, assim como pela negociação em situação de conflito com a prevalência da cooperação sobre a competição, o que resultaria em um estilo de vida baseado na associação espontânea, no comportamento cívico, enfim, numa sociedade mais aberta e democrática. Também para Putnam (1993/96)[12], um dos pioneiros nos estudos sobre capital social, este se reflete no grau de confiança existente entre os diversos atores sociais, seu grau de associativismo e o acatamento às normas de comportamento cívico, tais como o pagamento de impostos e os cuidados com que são tratados os espaços públicos e os “bens comuns”.

Pode ser ainda entendido como um bem coletivo que garante o respeito de normas de confiança mútua e de comportamento social em vigor por meio de normas horizontais entre pessoas que afetam o bem-estar do grupo. Vai mais além das divisões sociais existentes (mesmas classes sociais, pessoas da mesma religião, membros do mesmo grupo étnico, redes sócio-profissionais)  e inclui o ambiente social-político em que se situa a estrutura social. Traduz-se ainda pelas normas, as formas de governo, o regime político, a eficácia social do direito, o sistema judiciário (a justiça e sua aplicação), o respeito das liberdades civis e políticas, onde são valorizadas as formas de organização das  instituições sociais como referência de qualidade de capital  social.

Enquanto o capital humano é produto de ações individuais em busca de aprendizado e aperfeiçoamento, o capital social se fundamenta nas relações entre os atores sociais que estabelecem obrigações e expectativas mútuas, estimulam a confiabilidade nas relações sociais e agilizam o fluxo de informações, internas e externas. Em vez de controles e relações de dominação patrimonialistas, o capital social favorece o funcionamento de normas e sanções consentidas, ressaltando os interesses públicos coletivos[13].

Neste trabalho, capital social é definido como o somatório de recursos inscritos nos modos de organização da vida social de uma população e por isso sua relevância na constituição nos processos restaurativos.

O capital social corresponde a recursos cujo uso abre caminho para o estabelecimento de novas relações entre os habitantes de uma determinada região e daí sua relação com o conceito de comunidade. Nas palavras de Putnam:

“Assim como o capital convencional no caso dos mutuários convencionais [do crédito bancário], o capital social serve como uma espécie de garantia, estando porém disponível para os que não têm acesso aos mercados de crédito regulares. Não dispondo de bens físicos para dar em garantia, os participantes, na verdade empenham suas relações sociais. Assim o capital social é usado para ampliar os serviços de crédito disponíveis nessas comunidades e para aumentar a eficiência com que aí operam os mercados”[14]

Entendendo que a Justiça Restaurativa visa justamente reparar o mal causado à sociedade, restabelecendo o relacionamento entre as pessoas que foram de alguma forma atingidas por um ato infracional, pode-se pensar na hipótese de o Capital Social  ser um aspecto determinante na viabilidade de tal modelo. O controle sobre o risco de comportamentos não cooperativos só é efetivo se os atores interiorizarem os elementos morais pressupostos na colaboração entre eles. Existem sanções pela conduta “desviante”, mas elas só funcionam pela presença de recursos morais que têm a virtude de aumentar conforme seu uso e dos quais a confiança é o mais importantes. É verdade que a confiança por si só nem sempre é um atributo de nobreza nas relações sociais, como ensina Putnam: “(…) a regra de reciprocidade que é o elemento decisivo pelo qual o capital social gera instituições propícias à participação cívica.” [15]

Para que haja uma reparação a um grupo é necessário que exista um vínculo entre os indivíduos a ser rompido por uma prática lesiva, se não há um capital social, uma rede que tenha sido afetada de alguma forma, os processos restaurativos podem não possuir razão de ser. As infrações continuariam a agredir à legislação e não a uma estrutura que vai além do infrator e da vítima direta. Na perspectiva de Putnam e de Coleman o capital social é esse conjunto de recursos (boa parte dos quais simbólicos) de cuja apropriação depende em grande parte o destino de uma certa comunidade, a reciprocidade e a confiança entre os atores sociais. [16]

Finalmente, a noção de capital social permite ver que os indivíduos não agem independentemente, que seus objetivos não são estabelecidos de maneira isolada e seu comportamento nem sempre é estritamente egoísta. Neste sentido, as estruturas sociais podem ser vistas como recursos a construção de novos modelos de Justiça, como um ativo de capital de que os indivíduos podem dispor. O capital social, conclui Coleman  “não é uma entidade singular, mas uma variedade de diferentes entidades que possuem duas características em comum: consistem em algum aspecto de uma estrutura social e facilitam algumas ações dos indivíduos que estão no interior desta estrutura”.[17]

  1. À guisa de conclusão

A proposta deste trabalho é levantar questionamentos a respeito da viabilidade de instauração de práticas restaurativas, ressaltando que a “comunidade” e o “capital social” podem (e devem) ser elementos fundamentais para avaliar a sustentabilidade de uma Justiça Restaurativa. Talvez a falta de experiências concretas faça com que as discussões a respeito dos possíveis limites de implementação desses novos processos estejam vinculadas a legislação, representação de advogados e participação voluntária,  deixando de lado  as limitações que podem ser encontradas quando o “leque” de atores é aumentado, no caso a comunidade e sua organização.

Partindo do entendimento de Putnam (1993/1996), que enfatiza as raízes históricas mais longínquas da formação, no norte da Itália, de um espírito cívico, salientando que nas regiões onde a cidadania era frágil ou inexistente não haveria como evitar que as organizações locais fossem a reiteração dos processos convencionais de dominação.  É possível concluir  que não há como pensar em um modelo de Justiça Restaurativa sem entender que vive-se em um contexto onde a cidadania por meio da participação popular ainda está em processo de desenvolvimento, ou seja, talvez a comunidade que se espera participante e colaborativa esteja sendo idealizada. Cabe lembrar, que uma comunidade pode ser muito punitiva e repressiva. Segundo Putnam[18], a cooperação supõe alguma forma de pressão, constrangimento, em suma, daquilo que em sociologia se chama “controle social”.

Há poucas experiências de práticas restaurativas, mas nas que estão sendo desenvolvidas, como  no Japão e  na Nova Zelândia, pode-se observar a importância de uma “comunidade” e seu capital social. As pesquisas locais desses países mostram que os infratores e vítimas consideram os processos restaurativos utilizados em infrações envolvendo adolescentes mais justos do que os convencionais. Entende-se que nesses países a Justiça Restaurativa possui um respaldo cultural que vem se transmitindo há muitas gerações, e que o quê se está buscando é formalizar um procedimento baseado em valores e crenças que de alguma forma sempre existiu e que faz parte da lógica das pessoas. Partindo dessa idéia, conclui-se que a falta dessa rede de reciprocidade e confiança poderia ser um impeditivo crucial para que fossem implantadas essas novas alternativas não retributivas.

Essa confiabilidade buscada não se constrói sem a presença do Estado, acredita-se que a realidade  e o contexto cultural das pessoas transpassa qualquer conceito e está por traz de qualquer noção que se possa ter de comunidade e de capital social, não há como pensar em justiça sem ter em conta a desigualdade social e a miséria em que as pessoas vivem. Como diria Foucault:

O sentido que se apreende e que se manifesta de forma imediata, não terá porventura realmente um significado menor que protege e encerra; porém, apesar de tudo transmite outro significado; este seria de cada vez o significado mais importante, o que significado que está por baixo.”[19]

Dessa forma, conclui-se que há muito a ser investigado e discutido sobre aspectos  da aplicabilidade de práticas restaurativas e que há aspectos sociológicos que podem ser limitadores se não forem pensados como determinantes no processo, podendo, como ressaltou Putnam, vir a ser uma repetição de antigos padrões onde não há participação efetiva das pessoas.

  1. Referências Bibliográficas

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[1] Bazemore & Walgrave, 1999:65-66 in apud JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359&gt;. Acesso em: 18 out. 2006. (2006).

[2] NETO, Pedro Scuro, Renato Tardelli Pereira. A justiça como fator de transformação de conflitos: princípios e implementação. Contribuição ao Simpósio Internacional da Iniciativa Privada para a Prevenção da Criminalidade. NEST/Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha, São Paulo, abril de 2000.

[3] ZEHR, H. Changing Lenses: A New Focus for Crime and Justice. Scottsdale: Herald Press, 2003:71

[4] NETO, Pedro Scuro, Renato Tardelli Pereira. A justiça como fator de transformação de conflitos: princípios e implementação. Contribuição ao Simpósio Internacional da Iniciativa Privada para a Prevenção da Criminalidade. NEST/Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha, São Paulo, abril de 2000.

[5] Marx & Engels A ideologia Alemã,Vol.I. In BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

[6] JACCOUD Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa In: Slakmon, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, org., 2005. Justiça Restaurativa (Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD,2005).

[7] JACCOUD, 2005.

[8] BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2003.

[9] BAUMAN,2003: 8

[10] JACCOUD, 2005

[11] COLEMAN, James S. Foundations of Social Theory .Londres: The Belknap Press of Harvard University Press,1990.

[12] PUTNAM, Robert. Comunidade e Democracia – A experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas,1993/96.

[13] ABRAMOVAY, Ricardo. O capital social dos territórios: repensando o desenvolvimento rural.Economia Aplicada – volume 4, n° 2, abril/junho 2000.

[14] PUTNAM, 1993/1996:178-179.

[15] PUTNAM (1993/1996:184).

[16] ABRAMOVAY,2000.

[17] COLEMAN (1990:302).

[18] (1993/1996:190).

[19] FOUCAULT, M. Um diálogo sobre os prazeres do sexo: Nietzche, Freud e Marx. São Paulo: Landy, 2000, p. 48.