Perspectiva sociológica e pluralismo jurídico

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN 1809-2721

Número 01 – Julho/Dezembro 2005

Perspectiva sociológica e pluralismo jurídico: a necessidade de superação do bacharelismo-tecnicista na formação do profissional do direito

Elizabete David Novaes – Doutora em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras – UNESP-Araraquara. Profa. Dra. na disciplina de Sociologia Geral e do Direito I e II da Faculdade de Direito das Faculdades COC – Ribeirão Preto-SP.

E-mail: eldavid@terra.com.br

 Resumo: O artigo trata da necessária aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno jurídico, percebido como fenômeno socialmente construído, discorrendo a respeito da importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Entende-se que a Sociologia, junto com as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação “ingênua”, decorrente de um positivismo normativista, sem percepção crítica e transformadora por parte dos operadores da Lei. Considerando-se que o direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais, entende-se que, na realidade social concreta este fenômeno não transparece como simples expressão da vontade da classe dominante, nem tampouco como simples reflexo das determinações econômicas. Aponta-se assim que o direito moderno institui-se como mediador entre as classes. Aponta-se assim, para a necessidade da eclosão de um novo paradigma jurídico, que esteja presente na formação do profissional do direito adequado às necessidades do real.

Sumário: 1. Introdução; 2. A perspectiva sociológica na formação do profissional do direito; 3. O pluralismo jurídico e o profissional do direito; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas.

Palavras-chave: Fenômeno jurídico – formação sociológica – profissional do direito

  1. Introdução

Consideramos fundamental a aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno jurídico, percebido como fenômeno socialmente construído e, para tanto, pretendemos discorrer a respeito da importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Esta matéria visa, fundamentalmente, contribuir para a superação de uma visão tecnicista, esvaziada de conteúdos humanistas, que tantas vezes acomete a formação legalista do bacharel em Direito. Entendemos que a Sociologia, junto com as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação “ingênua”, decorrente de um positivismo normativista, sem percepção crítica e transformadora por parte dos operadores da Lei.

Consideradas como eixo da formação crítico-reflexiva, as disciplinas humanistas devem estar imbricadas entre si, num trabalho de formação transdisciplinar que  permita a compreensão do Direito como fenômeno pluridimensional, multifacetado e complexo, capaz de atuar como instrumento não somente de repressão, mas também (e principalmente) de mudança e transformação.

Podemos afirmar que a Sociologia, voltada para a compreensão do fenômeno jurídico, representa um importante passo para uma concepção dialética do Direito, compreendido, portanto, como processo – capaz não só de representar os interesses dominantes das estruturas sociais vigentes mas, principalmente, caminhar para a ruptura dessas estruturas. Entendemos então, que o Direito não é simples ideologia (embora se recubra desta também), mas um processo histórico, significado pela ação concreta e constante, decorrente do embate das forças sociais presentes na sociedade que o constrói.

Por outro lado, quando o Direito é tratado como instrumento emanado unicamente do Estado, possuindo a lei como sua única expressão, favorece a consolidação de uma formação positivo-normativa, cuja função passa a ser muito mais informar do que formar o bacharel em Direito. Tal tratamento fortalece o tecnicismo, impondo uma padronização da linguagem e da leitura dos códigos, justificando e reproduzindo a realidade social. Como conseqüência, formas sociais são reproduzidas, garantidas e mantidas as hegemonias e ideologias, sem que se percebam as possibilidades de transformação desta realidade. Daí a importância de transcender a visão tecnicista, bem como de transcender a visão unilateral e unidimensional, que não absorve as contradições e os movimentos do real, especialmente aqueles que apontam para a existência de um pluralismo jurídico.

Tomando por base essas colocações, entendemos que o profissional do direito não deve ler o universo como se esse fosse meramente um livro de direito, já que o universo social do qual o direito faz parte é sempre maior que o próprio direito, não podendo ser reduzido a este. Pelas  palavras de Jean Carbonnier, afirmamos que “uma certa insignificância do Direito deve ser um dos postulados da sociologia jurídica: o direito é como uma espuma na superfície dos relacionamentos sociais ou interindividuais”  (Carbonnier, 1999, p 47).

  1. A perspectiva sociológica na formação do profissional do direito

A Sociologia do Direito possui bases originais em Emile Durkheim, especialmente a partir dos estudos que o autor faz acerca da solidariedade social, garantida nas sociedades complexas, pela divisão social do trabalho e por um tipo de direito restitutivo. Esta perspectiva esteve voltada marcadamente para estudos sobre as formas de controle social, preocupadas em fechar ou cimentar as “brechas” que se produzem na realidade social, e que são frutos de contradições e antinomias do direito. De acordo com Gurvitch (1999), esta forma de conceber o direito apresenta problemas que devem ser superados, uma vez que não leva em conta a questão da pluralidade das fontes pelas quais o controle é produzido e exercido, não permitindo que sejam consideradas as diferentes hierarquias de controle social, segundo diferentes contextos históricos e culturais.

Uma significativa contribuição para a sociologia do direito foi a do jurista austríaco Eugen Erlich, que em 1912 escreveu os Fundamentos da Sociologia do Direito, afirmando que “a Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se primeiramente ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto pode ser observado” (Ehrlich, 1999, p.113). Segundo Ehrlich, as leis são parte das regulações sociais e, desse modo, o código civil  não expressa toda a complexidade do direito,  uma vez que o que a lei propõe nem sempre se efetiva realmente.

Evidentemente, o documento só mostra aquele segmento do direito vivo que está documentado. Como se pode, pois constatar aquela parte do direito vivo, que não está incorporada em documentos, a qual é grande e bastante importante? Não há outros meios a não ser abrir os olhos, Informar-se através de uma observação atenta da vida, entrevistar as pessoas e anotar suas respostas. (Ehrlich, 1999, p. 113 ).

A partir dessas rápidas inferências às idéias de Ehrlich, podemos perceber o caráter precursor do autor no que diz respeito à elaboração de uma sociologia do direito, pautada na investigação empírica e concreta dos fenômenos jurídicos, evidenciando o caráter social de que estes são revestidos.

Partindo do pressuposto de que o Direito é multidimensional, podemos afirmar que uma de suas dimensões é tomada como objeto de estudo da sociologia, cabendo a ela investigar as causas e os efeitos das leis. Compreendendo que as leis são fenômenos sociais, historicamente construídos, é possível afirmarmos que há causas sociais para a existência de determinadas leis, bem como efeitos ou conseqüências sociais destas leis sobre a realidade social em que são forjadas. Em outras palavras, a sociologia investiga o impacto social das leis numa dada sociedade. Não se trata de observar ou julgar valorativamente as leis (o que é papel da filosofia do direito) e sim, investigar os valores sociais que nutrem a existência de determinadas leis, bem como sua eficácia social. Desse modo, apontamos para a importância da pesquisa científica de cunho sociológico, que seja voltada para o universo jurídico, envolvendo estudos de representações sociais, percepção de valores e expectativas sociais acerca do direito, da justiça, das leis e inovações jurídicas.

A sociologia jurídica examina a influência dos fatores sociais sobre o direito e as incidências deste último na sociedade, ou seja, os elementos de interdependência entre o social e o jurídico, realizando uma leitura externa do sistema jurídico. (Sabadell, 2000, p. 49)

A sociologia jurídica, em seu desenvolvimento histórico como disciplina, apresenta inúmeras diversidades, tanto pelo seu amplo leque de objetos de investigação, bem como pelas teorias que lhe fundamentam. Como ciência social, é marcada por diferentes “olhares”, que garantem a observação da realidade jurídica por diferentes prismas e dimensões. Acerca da importância da sociologia nos cursos de Direito, afirmam Faria e Campilongo:

As grandes transformações que atingiram o Brasil durante os últimos anos – das quais são um importante desdobramento os movimentos em favor dos direitos humanos e de acesso à Justiça, procurando tornar mais efetiva a idéia de que o direito é “universal” e tentando forjar, por meio de lutas políticas, formas alternativas de lei capazes de atenuar as desigualdades sócio-econômicas, abriram caminho para o questionamento da estrutura vigente dos cursos jurídicos. Isso fez com que muitos juristas, pondo em questão as fronteiras tradicionais do direito com as ciências sociais, substituindo abordagens lógico-formais por outras mais críticas e problematizantes, historicizando a análise do direito, identificando os pressupostos ideológicos da dogmática jurídica implícitos na cultura “técnica” dos operadores dos códigos, colocando em novos termos o conceito de “juridicidade”, retomando a discussão em torno do pluralismo jurídico, dando um novo tratamento ao problema das fontes do direito e convertendo a eficácia do direito num dos temas obrigatórios da reflexão dos juristas, passassem a defender uma ampla reformulação estrutural desses cursos. (Faria e Campilongo, 1991, p. 25-26)

O que podemos observar é que a sociologia jurídica caminha para uma reflexão acerca da cisão ou distanciamento existente entre o direito formalmente vigente e o direito socialmente eficaz. Isto passa a se evidenciar à medida que o direito se torna um objeto de investigação autônomo para a sociologia, distanciando-se da filosofia do direito e da dogmática jurídica, clamando interesse sociológico pela emergência das lutas sociais movidas por grupos de interesses específicos, referentes aos novos e plurais direitos sociais (estudantes, negros, mulheres, sem-terra, etc.).

Assim, tratar sociologicamente o Direito é supor que este se situa numa realidade socialmente construída e possui, em sua essência, um caráter social, bem como um caráter histórico, uma vez que se constitui a partir de relações sociais historicamente determinadas. O direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais. Possui uma historicidade e, por isso, quando se fala da origem do direito, fala-se da origem de certo direito, quando se diz defender o direito, o que se defende é uma certa concepção de direito (Lyra Filho, 1982). Isso nos reporta à direta associação entre direito e política, direito e história, direito e realidade social, evidenciando que o direito é concreto, vivo, contínuo processo em construção e transformação. Desse modo, a sociologia aplicada ao estudo do direito deve estar voltada para o desmascaramento das idéias jurídicas, revelando objetivos e interesses que se ocultam por trás dessas idéias. Para tanto, é necessário que a dogmática jurídica não prepondere, para que a investigação sociológica não seja por ela abafada. Isso é fundamental para entendermos a própria realidade social na qual o direito se situa e atua, como forma de intervenção racional de controle social e de expansão das liberdades.

A norma jurídica, assim como as demais normas que regulam a vida social, emana da sociedade. Utilizando-se dos instrumentos e instituições voltados para a constituição do direito, a norma jurídica fundamenta-se nos objetivos, crenças, valores e interesses (sociais, políticos, econômicos) que prevalecem na estrutura social vigente. Realidades sociais diferenciadas condicionam, historicamente, ordens jurídicas também diferenciadas, operando a existência de uma forte relação entre conjuntura global e normatividade jurídica. Do mesmo modo, cada processo nacional ou grupal expressa uma realidade particular a que correspondem instituições também particulares, dentre elas, as instituições jurídicas, sobre as quais recaem os condicionantes sócio-culturais reforçados pelos costumes, pela moral e pelos valores sociais.

Entendendo que o contexto social em que vivemos apresenta-se marcado por determinações de classe, de raça/etnia e de gênero, sabemos que o poder, entidade metafísica e abstrata, ao expressar-se concretamente, apresenta-se como proprietário dos meios de produção, branco e adulto e, certamente, masculino. É nesse contexto de relações de poder bem definidas que as leis são promulgadas, normas instituídas, códigos acatados.

Podemos apontar um exemplo bastante elucidativo das desigualdades e discriminações sociais que são reproduzidas e, muitas vezes, abafadas pelas leis em vigor até que, após muitas lutas e reivindicações, sejam modificadas. Segundo a advogada Alessandra Teixeira, o fato dos homens presos terem o direito a visita íntima contrasta com a ausência desse direito para as mulheres presas no Estado de São Paulo. Embora formalmente tenha sido superada a visão de que a visita íntima pudesse ser uma regalia ou um privilégio do apenado, ainda não foi percebida como um direito que deve também ser estendido às mulheres presas, e não somente aos homens. Trata-se, segundo a autora, de mais uma forma de violência de gênero e discriminação sexual a que a mulher é submetida, reforçada pelo tratamento jurídico-penal a ela destinado.

O abandono da mulher presa é perpetuado pelo sistema penal, que além de criminalizar, tradicionalmente, as condutas das classes desfavorecidas, lhes aplica o tratamento penalizador o mais estigmatizante e feridor de seus direitos fundamentais. (Teixeira, 2001, p. 04)

Num de seus ilustrativos trabalhos de pesquisa, Sérgio Adorno elabora uma crítica à máxima do pensamento político clássico, forjada no interior do liberalismo do Estado Moderno, que afirma a igualdade de todos perante as leis. O autor aponta que este princípio ateve-se a uma eficácia simbólica que esteve (e está ainda) em desequilíbrio  com a eficácia material, o que o leva a questionar a relação estabelecida entre justiça social e igualdade jurídica. Aplicada esta reflexão sobre as condições jurídicas no Brasil, Sérgio Adorno aponta que a distribuição de justiça alcança somente alguns cidadãos; enquanto o acesso aos serviços judiciais é dificultado e as decisões judiciárias são discriminatórias (Adorno, 1999).

Afirma Adorno que o foco da atenção processual é voltado para elementos subjetivos, como o comportamento criminoso, virtudes e vícios dos personagens envolvidos no processo judiciário, os dramas da vida cotidiana, a busca de comportamentos considerados dignos, justos, normais, universais. No decorrer dos processos penais, o crime deixa de ser um drama social, quando outros fatores – além do próprio crime – passam a concorrer para a condenação ou absolvição dos réus: investigação da vida pregressa e dos antecedentes dos agressores e vítimas, imaginação hipotética de situações e circunstâncias, dedução de prováveis comportamentos de vítimas e agressores. Assim, o processo judiciário aparece como um constructo social, permitindo a contaminação por inúmeros preconceitos, interpretações deturpadas e informais que podem ser confundidas com a interpretação racional dos códigos. Objetividade e subjetividade se mesclam e se confundem.

Essas contribuições de Sérgio Adorno permitem desfazer a imagem de que a justiça possa ser cega e neutra, uma vez que revela a complexidade dos processos judiciais, descaracterizando a dimensão puramente técnica e jurídica dos agentes e aparelhos de condenação. Conclui o autor, portanto, que a justiça penal é incapaz de traduzir diferenças e desigualdades em direitos, incapaz de fazer da norma uma medida comum, incapaz de fundar o consenso em meio às diferenças e desigualdades (Adorno, 1999).

  1. O pluralismo jurídico e o profissional do direito

Buscamos salientar o caráter social do direito para fazê-lo emergir como instrumento de garantia da igualdade e justiça, que não pode ser ignorado na formação do profissional do direito. Para este profissional, torna-se fundamental considerar o direito como processo, entendendo-o como realidade móvel, flexível, dialógica e não  estritamente “lógico”, no sentido de não estar aprisionado ao formalismo das leis e à coerência dos fatos. O direito nasce da luta de classes, dos conflitos sociais, do permanente desejo de libertação e superação das desigualdades. É processo em devir, produto e produtor das transformações históricas.

Nessa perspectiva, entendemos que o direito, na sociedade capitalista, não é a pura e simples expressão da vontade da classe dominante. Nem é o simples reflexo das determinações econômicas, que uma concepção simplista da relação entre infra-estrutura e superestrutura poderia nos fazer crer. Podemos dizer que o direito moderno, pela sua função ideológica, institui-se como mediador entre as classes, uma vez que, para que o direito apareça como justo é necessário que possa manter uma lógica coerente com os critérios de igualdade, que possa ser utilizado como um  obstáculo à exploração desenfreada da classe dominada pela classe que está no poder. Trata-se aqui, de ocuparem-se as “brechas”, as lacunas que o próprio direito deixa, para o exercício da justiça.

Assim, fundamental distinguir entre direito e lei, uma vez que o direito deve ser entendido como um sistema de relações e interesses classistas, codificados através da lei, porém, não se reduzindo a ela. De certa maneira, podemos falar em aplicação do direito através da lei – podendo ser entendida esta lei como instrumento muitas vezes injusto para a classe oprimida, se representar os interesses arbitrados pela classe dominante e garantidos pelo Estado. Contudo, também podemos interpretar o Direito como libertador, se considerarmos que sua fonte de emanação não se restringe ao Estado, podendo nascer dos embates e lutas sociais que marcam a vida cotidiana. Nesta perspectiva, o Direito ganha poder de ação dialética, revelando sua essência contraditória e, conseqüentemente, transformadora. Para que isso se concretize, contudo, torna-se fundamental construir um “direito comprometido”, um direito que seja fruto do “conflito entre o direito posto, vigente e eficaz, contra um direito potencial que emerge das lutas dos dominados, dos destinatários esmagados na ordem jurídica posta.” (Aguiar, 1980, p.183)

Depreendemos assim, que o direito, dialeticamente compreendido, emerge como um mediador entre as classes, um mediador entre as contradições do real. Lembrando Roberto de Aguiar, sempre que existe direito é porque existe um problema que o gerou. O direito não nasce da concordância e do consenso, pelo contrário, ele nasce do conflito  das contradições (Aguiar, 1980).

Numa sociedade de classes, a diversidade de interesses favorece uma diversidade de consciências jurídicas e, conseqüentemente, a emergência de diferentes fontes de Direito. Nessa perspectiva, nem todo o direito pode ser visto como direito estatal, bem como, não podemos reduzir o direito à política e à ideologia da classe dominante. O direito estatal é parte de uma totalidade, que por sua vez pode ser percebida como um momento no processo de totalização. Tal percepção nos faz compreender o caráter processual e transitório do direito – histórico, portanto!  Em outros termos, o Direito é constituído pela, e constituinte da realidade social.

Uma vez que consideremos o direito como um fato social de profundo significado, possuidor de um caráter voltado para a normatividade e o controle social, falar em mudança social é, necessariamente, falar em mudança do direito. De acordo com Roberto Lyra Filho, as normas devem ser expressão do direito móvel, aquele que está em constante progresso. Mas quando o direito é confundido com o legalismo, com normas envelhecidas, tornando-se “direito em si”, torna-se reificado, perdendo seu caráter de processo, de instrumento de mudança social. O direito não nasce metafisicamente, ele é fruto de um processo de lutas, fruto de oposições e conflitos, avanços e recuos. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições fazem brotar as novas conquistas (Lyra Filho, 1982).

Segundo tal perspectiva, a proposta de mudança implica num complexo processo social, marcado por transformações da sociedade civil. Em tal empreitada, emerge como fundamental o papel do profissional do direito e sua inserção nas lutas democráticas. Caberá a este profissional desempenhar a função de um intelectual orgânico, capaz de construir a contra-hegemonia, no sentido que dá Gramsci, a esses conceitos (Arruda Jr., 1997). Daí a necessidade de formação de um profissional com perspectiva sociológica, capaz de dialogar com a realidade concreta, que dá vida e eficácia às normas legais.

Sob tal ótica, percebemos a sociedade civil como sede principal das lutas transformadoras, uma vez que é a sede do pluralismo que serve de base para os movimentos  sociais comunitários. A medida que os profissionais do direito questionam os “descaminhamos do sistema normativo”, marcado pelo excesso de formalismo, pelo reforço das situações de injustiça e pelos critérios arbitrários de decisão, inicia-se a construção, o fortalecimento e a emergência de juridicidades latentes. Nesta percepção, o conceito de anomia ganha um papel central, agora reinterpretado, porque fica “vinculado à crise estrutural e ao desgaste de valores”, mostrando a presença de uma imposição ideológica que não corresponde efetivamente aos valores existentes, nem tampouco à realidade concreta.

Torna-se essencial adotar-se uma perspectiva crítico-dialética, na tentativa de relacionar anomia e mudança, voltando-se para a possibilidade de ruptura da ordem vigente. Fundamental perceber o conflito latente entre legalidade e legitimidade, uma vez que a legalidade expressa o interesse e forças predominantes na sociedade de classes (considerada ideologicamente como sociedade global), enquanto a legitimidade está voltada para as subculturas e grupos econômica e politicamente minoritários, que também possuem suas normas e códigos.

Essa percepção passa necessariamente pelo resgate do pluralismo jurídico, que compreende o direito como essencialmente múltiplo e heterogêneo, significando que num mesmo espaço social podem coexistir diversos sistemas jurídicos, já que existe uma pluralidade de fontes. Por meio da correlação entre anomia-legitimidade, estabelece-se a importância e a possibilidade da criação de espaços sociais alternativos para o exercício do direito, na construção de algo que podemos denominar de “legalidade alternativa”.

Como forma de ilustrar essa idéia, tomemos como exemplo os bairros de periferia: espaços sociais de luta que possibilitam a transformação da realidade social por meio da ação cotidiana. Observemos os grupos de moradores de bairros que, unidos por laços de vizinhança, amizade ou parentesco, voltam-se para a discussão de problemas concretos, experimentados na realidade dos bairros em que vivem, tornando-se  com isto embriões de organização popular, defendendo seus interesses, identificando necessidades e fortalecendo-se nas formas de resistência que favorecem as reivindicações sociais e o alargamento de direitos (Novaes, 1999). A esta realidade devem estar atentos os profissionais do direito em formação, capazes de articular o universo jurídico às lutas sociais e políticas, voltando-se para as representações sociais que animam o direito vivo.

  1. Considerações finais

Evidenciamos a ação dos chamados movimentos populares que caracterizam uma anomia emergente, por meio do fortalecimento da capacidade de mobilização e organização das lutas populares, ao ponto de oferecerem propostas concretas de democracia da sociedade e alternativas para o estabelecimento de um poder popular. Entendemos que aqui se encontra uma importante fonte de ação política e de exercício do direito, constituído sobre o pluralismo jurídico, que necessariamente passa por uma compreensão sociológica da realidade jurídica e social por parte do profissional do direito.

Por isso, amarrando as considerações e reflexões tecidas até o momento, apontamos para a necessidade da eclosão de um novo paradigma jurídico, que  esteja presente na formação do profissional do direito adequado às necessidades do real. Um paradigma calcado na construção e reconhecimento de um pluralismo participativo e democrático, capaz de perceber a emergência de novos direitos nascidos dos movimentos sociais populares. Tais profissionais, verdadeiramente comprometidos com a eficácia real das leis por meio de sua legitimidade, contribuirão para a legitimação de novos sujeitos de direito, democratizando os diferentes espaços sociais e favorecendo a busca por formas alternativas de resoluções de conflitos que fortaleçam a sociedade civil e a construção da verdadeira cidadania. Como explicita Antonio Carlos Wolkmer,

Este pluralismo ampliado e de novo tipo, além de possuir certos pressupostos fundantes de existência  material e formal, encontra  a força de sua legitimidade nas práticas sociais de cidadanias insurgentes e participativas. Tais cidadanias são, por sua vez, fontes autênticas de nova forma de produção dos direitos, direitos relacionados à justa satisfação das necessidades desejadas. (Wolkmer, 2001, p. 347)

O profissional do direito que não estiver afeito a estas percepções e perspectivas, estará concorrendo para reproduzir os anacronismos do bacharelismo e as arbitrariedades do tecnicismo, em prejuízo da realização de um ideal de justiça que favoreça uma sociedade igualitária, que sirva a um direito sustentado nas bases sólidas da eficácia social, e não engessado no limitado formalismo das leis.

  1. Referências bibliográficas

ADORNO, Sergio. “Crime, justiça penal e desigualdade jurídica” IN: SOUTO, C. e FALCÃO, J. Sociologia e direito. São Paulo: Pioneira, 1999.

AGUIAR, Roberto. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980.

ARRUDA Jr., Edmundo Lima. Direito moderno e mudança social. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1997.

BOTTOMORE, T.B. Introdução à sociologia. Rio de Janeiro: TC Editora, 1987.

CARBONNIER, Jean. “As hipóteses fundamentais da sociologia jurídica teórica” In: SOUTO, C. e FALCÃO, J. Sociologia e direito. São Paulo: Pioneira, 1999.

DALLARI, Dalmo. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996.

DINIZ, Melillo. “Qual a verdadeira face do direito?” In: Sousa Jr., José Geraldo (org) Introdução crítica ao direito: o direito achado na rua. V.1. Brasília: UNB, 1993.

EHRLICH, Eugen. “O estudo do direito vivo” In: SOUTO, C. e FALCÃO, J.Sociologia e direito. São Paulo: Pioneira, 1999.

FARIA, J.E. e CAMPILONGO, C.F. A sociologia jurídica no Brasil. Porto Alegre: Fabris Editor, 1991.

GURVITCH, G. “Sociologia do direito: resumo histórico-crítico” In: SOUTO, C. e FALCÃO, J. Sociologia e direito. São Paulo: Pioneira, 1999.

JUNQUEIRA, Eliane Botelho. A sociologia do direito no Brasil: introdução ao debate atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993.

LYRA Filho, R. O que é direito? São Paulo: Brasiliense, 1982.

NOVAES, Elizabete David. Solidariedade e sociabilidade: mulher, cotidiano e política na periferia de Araraquara. Tese de doutorado. FCL/UNESP-Araraquara , 1999.

RIBEIRO, Paulo Jorge e STROZENBERG, Pedro (orgs). Balcão de Direitos: resoluções de conflitos em favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

SOUSA Jr., José Geraldo. Para uma crítica da eficácia do direito. Porto Alegre: Fabris Editor, 1984.

SOUSA Jr., José Geraldo (org) Introdução crítica ao direito: o direito achado na rua. V.1. Brasília: UNB. 1993.

SOUTO, Cláudio. e FALCÃO, Joaquim. Sociologia e direito. São Paulo: Pioneira, 1999.

WOLKMER, A. Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa-Omega, 2001.

TEIXEIRA, Alessandra. Jornal Juízes para a democracia. Ano 5, nº 124 – jun/jul – 2001.