REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721
Número 11 – Julho/Dezembro 2010
Pensar a soberania a partir de Giorgio Agamben
Thinking of sovereignty from Giorgio Agamben
Marcus Cesar Ricci Teshainer: Formado em Psicologia pela PUC – SP, mestre e doutorando em ciências sociais pela PUC – SP, bolsista CNPq e doutorando convidado de Sophiapol- Paris ouest – Nanterre, Paris X com bolsa de estágio doutoral CAPES.Graduando em Direito pela PUC – SP
E-mail: ideafix@uol.com.br
Resumo: Este artigo pretende estudar o conceito de soberania apresentado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, considerando os textos: Homo Sacer – Il potere sovrano e la nuda vita (1995); Stato di Eccezione – Homo Sacer II, 1 (2003); Il Regno e la Gloria – Per una genealogia dell´economia e Del governo – Homo Sacer II, 2 (2007) e Quel Che Resta di Auschwitz – Homo Sacer III (1998). Pretende-se revelar a importante contribuição de seu pensamento para a filosofia política contemporânea, bem como a crítica apresentada pelo autor através de estado de exceção. Para tanto, foi feita uma leitura sistemática dos textos relacionados ao tema, focando, sobretudo, a argumentação sobre soberania feita pelo autor. Neste artigo busca-se esclarecer e revelar a conceituação de Agamben sobre o assunto.
Sumário: 1.Introdução; 2.Soberania; 3.Lei Escrita e Lei Viva; 4.Estado de Exceção; 5.Governabilidade; 6.Referências Bibliográficas
Palavras Chave: Agamben, soberania, estado de exceção, política, biopolítica.
Abstract: This article intends to study the concept of sovereignty proposed by the Italian philosopher Giorgio Agamben, considering the texts: Homo Sacer – Il potere sovrano e la nuda vita (1995); Stato di Eccezione – Homo Sacer II, 1 (2003); Il Regno e la Gloria – Per una genealogia dell´economia e Del governo – Homo Sacer II, 2 (2007) e Quel Che Resta di Auschwitz – Homo Sacer III (1998). It intends to reveal the important contribution of his thought for the contemporary political philosophy and his criticism through the state of exception. To achieve this results, we performed a systematic reading of texts about this theme, focusing mainly on his argument about sovereignty. This article aims to clarify and reveal the Agamben’s concepts on the subject.
Key words : Agamben, sovereignty, state of exception, political science, biopolitics
Giorgio Agamben, filósofo italiano, vem discutindo o conceito soberania de forma renovada e atualizada, trazendo novas discussões para a filosofia política. Revendo as teorias clássicas do conceito, o autor propõe esta discussão no seio da biopolítica, conceituação formulada pelo filósofo francês Michel Foucault, considerada por Agamben para pensar o paradigma da política moderna.
Este estudo pretende apresentar o conceito de soberania em Agamben, a partir da leitura dos textos, Homo Sacer – Il potere sovrano e la nuda vita (1995); Stato di Eccezione – Homo Sacer II, 1 (2003); Il Regno e la Gloria – Per una genealogia dell´economia e Del governo – Homo Sacer II, 2 (2007) e Quel Che Resta di Auschwitz – Homo Sacer III (1998), por se tratarem dos textos nos quais o autor desenvolve sua teoria política a partir do conceito biopolítica.
Partindo da afirmação Aristótelica apresentada por Foucault de que o homem moderno é um animal cuja vida está em questão na política, Agamben esboça, através do conceito de vida-nua, uma nova maneira de pensar a própria vida, considerando-a como puramente biológica. Isso representa uma novidade em relação às formulações foucualtianas, que afirmavam a vida como um conceito unitário, ou seja, Agamben retoma e atenta para a dupla conceituação que a filosofia grega dá para o termo vida: zoé, a vida natural, e bios, a vida contemplativa dos filósofos.
Agamben afirma que, no entender da filosofia política clássica, zoé não concerne aos problemas da pólis, no entanto, considera que, na contemporaneidade, a vida natural (zoé) entrou no campo da pólis, de modo que a vida nua (zoé) passa a ser secretamente o foco do investimento político. A vida nua é excluída do discurso político contemporâneo, mas completamente incluída na prática soberana.
Desta forma, torna-se importante para Agamben entender a relação entre política e vida, para assim compreender o conceito de soberania, que tem a vida nua como núcleo.
Partindo das teses foucaultianas, Agamben (1998, p.78) afirma que a cisão fundamental que coloca a vida no centro do problema político está na diferenciação entre povo e população. Enquanto povo é um corpo essencialmente político, no seio deste emerge o conceito de população, que é um corpo essencialmente biológico.
A partir desta cisão, a administração soberana do Estado trata de controlar a natalidade, a mortalidade, a saúde e a doença. Com o nascimento da biopolitica cada povo democrático torna-se um povo demográfico.
Ainda comentando Foucault, Agamben (2007, p. 125) afirma que o nascimento do Estado populacional e o primado dos dispositivos de segurança coincidem com o relativo declínio da função soberana e com a emergência em primeiro plano da governabilidade, o que define o problema político essencial do nosso tempo.
De maneira mais clara, o que define a governabilidade é o que Agamben traz das teses de Foucault, dizendo que a característica da biopolítica é o direito do soberano de matar, ou melhor, de fazer viver e deixar morrer. Porém, Agamben (1998, p.145) acrescenta um terceiro elemento a esta fórmula, que seria característica da biopolítica do século XX: fazer sobreviver.
O filósofo italiano compreende, portanto, que a ambição suprema da biopolítica é criar uma separação no corpo humano entre corpo vivente e corpo falante, ou seja, entre zoè e bios e esta ambição de separação é o que o autor denomina de sobrevivência.
Para Agamben (2007, p. 159) não existe uma substância de poder, apenas uma economia de poder. Com o declínio da soberania e a emergência da governabilidade, o poder de Estado intensifica a administração do poder e, no contexto da biopolítica, isso representa administrar e controlar as populações.
Como afirma Agamben (1995, p. 141), na passagem da política para a biopolítica o súdito passa a ser cidadão, isso significa que o nascimento entendido como vida natural passa a ser o princípio da soberania. Deve-se ter em mente que o princípio da biopolítica não é o homem político e consciente, mas sim a vida nua. Desta forma, diferentemente do que acredita o constitucionalismo clássico, o nascimento não torna o sujeito político soberano por pertencer ao povo, mas liga o sujeito à soberania por ser vida-nua, ou seja, seu objeto.
Cabe perguntar o que é esta função em declínio na biopolítica – a soberania – e cabe questionar o que o filosofo italiano entende por este conceito.
Soberania, no entender agambeniano se apresenta como um duplo corpo, que precisa ser retomado a partir do absolutismo.
Agamben (1995, p. 113) parte da idéia absolutista francesa de que o rei não morre jamais para afirmar o caráter inumano da soberania. Na França, quando o rei morria, uma série de rituais insistiam em afirmar a permanência do rei e esses rituais só cessavam com a coroação do novo monarca, que era investido de realeza. Isso revela o caráter impessoal da soberania, como um espaço vazio, absoluto, inumano e imortal.
Agamben (1995 p.31) diz que a soberania não é um posto ocupado por um sujeito hierarquicamente superior, mas a inscrição no corpo da norma da exterioridade que a anima e dá sentido. O soberano decide a normalidade das relações da vida, o que é importante para a funcionalidade da lei.
Compreende-se, então, que soberana é a lei que torna o sujeito soberano e não o sujeito que ocupa um determinado cargo. É a lei que visa controlar a vida das pessoas, vida esta que contemporaneamente é vida nua, vida natural. Esta vida não está inscrita no ordenamento e, desta forma, está excluída, mas por outro lado está controlada pelo poder soberano, de modo que a vida nua está incluída e excluída: incluída porque é controlada e excluída porque não é ordenada.
Cabe perguntar como a vida, estando fora do ordenamento jurídico, pode ser controlada pela lei soberana?
Esta explicação pode ser obtida por meio do paradigma político do estado de exceção, que revela um dentro e um fora, já que exclui o ordenamento sem deixar de estar inserido no próprio ordenamento.
Para Agamben (1995 p.151), o resultado desta definição do dentro e fora revela uma novidade moderna, que é a valoração da vida como um bem supremo pelos meios políticos e jurídicos. Discussões sobre temas como a eutanásia ou o aborto colocam na balança os diversos argumentos nos quais a vida é valorada. A lei, a administração pública, a ordem do Estado preocupa-se significativamente com a vida dos cidadãos.
Desta forma, deve-se entender a exceção como estruturante da soberania, pois o modo pelo qual a vida é incluída e excluída revela este estado limite do ordenamento, de excluir a si próprio, estando incluso em si. Em outras palavras, para Agamben (1995, p.68), a soberania é a lei além da lei, ou seja, a indiscernabilidade entre lei e vida: o próprio estado de exceção.
Discordando de Schmitt e Kelsen, a soberania para Agamben não é exclusivamente política, nem exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito e muito menos a norma suprema do ordenamento jurídico. Ela é “a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão” (Agamben 1995, p.34)
Conseqüentemente, para Agamben (1995, p. 118), ao contrário do que pensam os filósofos políticos modernos para os quais o espaço político é o espaço da cidadania, da liberdade e do contrato social, no contexto biopolítico, do ponto de vista soberano, o único espaço político é a vida nua. Assim, a violência soberana não se funda em um pacto, mas na exclusão e inclusão da vida nua na lei. O que leva à conclusão de que a vida-nua é o elemento político originário da contemporaneidade.
Levando em consideração a vida-nua como elemento originário da política, Agamben (2003, p. 89) chega à conclusão de que se o soberano é a lei viva, ele não se obriga a ela. A identidade entre soberania e lei representa sua ligação com a ordem jurídica.
A situação de o soberano ser a lei viva e ao mesmo tempo não se obrigar a ela, demonstra a soberania como nomos e anomia ao mesmo tempo.
Tem-se demonstrado o duplo corpo do soberano, aquele imortal, transcendente, representado pela lei, e aquele mortal, imanente, representado pela pessoa que aplica a lei.
A conseqüência revelada por Agamben (2003, p. 91) de identidade entre soberano e lei é a criação de uma cisão que divide a lei em escrita e viva, esta superior e subordina a escrita.
Agamben (1998, pp. 16-17), lendo O Processo de Kafka, afirma que a lei escrita se apresenta unicamente na forma de processo, contém uma intuição profunda sobre a natureza do direito que não é norma, mas juízo. Mas a essência da lei é o processo e se todo o direto é só direito processual então execução e transgressão, inocência e culpa, obediência e desobediência se confundem e perdem importância. O objetivo último da norma seria assim produzir o juízo, não punir ou premiar, nem fazer justiça nem descobrir a verdade.
Para Agamben(1998, p.22), é importante realçar a diferença entre ética e direito. No campo da ética não se pensa em culpa ou responsabilidade, temas que são pensados apenas no campo do direito.
Como é possível uma lei escrita que não vigora e uma lei viva que vigora?
Entendendo a soberania como a lei vivida, Agamben (2003, pp. 51-2) percebe que a força de lei é um estado tal em que atos que não tem forma de Lei, tem força de lei, situação presente no estado de exceção que é uma situação tal onde a força de lei não tem lei. Deste modo, o estado de exceção não é uma confusão de poderes, mas sim o isolamento da força de lei da lei[1][1] É uma situação em que potência e ato estão separados.
O estado de exceção é um momento de ruptura da norma, em que a força de lei atua suspendendo a aplicação da norma.
Na linha do pensamento de Agamben (1998, PP.62-3) é um erro entender o estado de exceção como uma situação ditatorial. Na realidade, o estado de exceção é um estado no qual o direito é retirado e esvaziado.
A soberania só ganha interesse na análise quando ligada à vida, seu objeto fundamental. Como diz Agamben (1995, p. 134), com a vida nua os modelos políticos clássicos, como direita e esquerda, liberalismo e totalitarismo, perdem significado pois, enquanto a análise clássica enfoca o melhor modo de administrar o Estado, a biopolítica foca a vida como objeto político. Neste sentido, pouco importa se é política de esquerda ou de direita, pois, para a análise feita por Agamben, qualquer uma das duas objetiva a mesma coisa: a vida nua.
Com a política tornando-se biopolítica, altera-se o referencial dos conflitos políticos. As linhas divisórias tornam-se indistintas, a soberania dilui-se nas figuras como a do médico, a do educador, a do cientista e de todos aqueles que atuam, olham e controlam a vida como objeto. A figura soberana torna-se institucionalizada, ocasionando uma cisão no direito, ou seja, um espaço onde a lei vigora, mas não tem força, um campo cinza do ordenamento jurídico em que a soberania se apresenta apenas como estado de exceção.
Segundo Agamben (2003, p. 9), o direito público e constitucional não se debruçou devidamente sobre a questão do estado de exceção ou por considerá-lo como uma questão de fato e não um verdadeiro problema jurídico, ou por entendê-lo como um problema político e não jurídico constitucional, mas, na verdade, tal estado se apresenta como a forma legal onde não pode haver forma legal.
Assim, para Agamben (2003, pp. 42-3), a lacuna do ordenamento jurídico não é uma carência do texto legislativo que deve ser integrada pelo judiciário, mas a suspensão do ordenamento para garantir sua existência. A lacuna não é interna à ordem, mas guarda a relação desta com a realidade. O estado de exceção, portanto, se apresenta como uma lacuna fictícia que se abre para garantir a existência e a aplicação da norma. O estado de exceção é o momento em que a aplicação da lei é suspensa, mas em que ela mesma se mantém em vigor.
Entre o direito público e o fato político, entre a ordem jurídica e a vida forma-se uma terra de ninguém, onde se constitui o estado de exceção, e somente revelando essa terra de ninguém é que se pode descobrir a diferença entre político e jurídico ou entre direito e vida.
O estado de exceção, atualmente, traduz a tendência contemporânea de uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica de governo (Agamben 2003, p. 24).
Deve-se ter claro que, para Agamben (1995 p. 24), não é a exceção que leva à suspensão da regra, mas a regra que, ao ser suspensa, dá lugar à exceção. Como há no ordenamento uma lei que permite o soberano suspender a regra, é possível que a regra dê lugar à exceção e mantenha-se em relação a ela.
Se a força de lei não tem forma, mas tem força, de onde emana esta força? Da governabilidade.
A força de lei ganha sentido quando tratada no âmbito do governo, o que leva o filósofo italiano a afirmar que o Estado moderno assume a dupla característica da máquina governamental, que é a do poder legislativo ou soberano e a do poder executivo ou de governo. Na esfera soberana o Estado moderno legisla de modo transcendente e universal, deixando livres as criaturas de quem cuida e, na esfera governamental segue detalhadamente os mandos legislativos, constrangendo os indivíduos relutantes na conexão implacável das causas imanentes e os efeitos que a sua própria natureza contribuiu para determinar. Este é o paradigma democrático de governo (Agamben 2007, p. 159).
Governar significa tornar efetivo os mandos legislativos/soberanos, sem os quais o governo seria impossível.
No estado de direito moderno tanto o modelo democrático como o absolutista convergem no sentido da lei regular a administração e o aparato administrativo aplicar e seguir a lei.
A máquina governamental moderna objetiva a economia no sentido de governar os homens e as coisas.
Deve-se levar em conta, portanto, que para Agamben a soberania é menos importante que o governo. O soberano apresenta dois corpos, um que corresponde à própria pessoa e outro que o articula no sistema de representações políticas. Assim, na passagem do absolutismo para a era da biopolítica, a lei torna-se soberana, lei que só é aplicada enquanto estado de exceção, ou seja, é a suspensão da lei que conduz a máquina governamental a cuidar da vida dos cidadãos.
Agamben (2007, p. 303) entende que as análises da democracia moderna erram quando acreditam serem verdadeiros o primado do poder legislativo e a irredutibilidade do governo à simples execução. O que se vê hoje é a soberania popular esvaziada de sentido.
O pensamento político ocidental, segundo o filósofo italiano, erra também ao conceber o governo como poder executivo, o que faz com que a reflexão se reduza a termos mitológicos, como a lei, a vontade geral, a soberania popular etc. O problema central da política não é a soberania, mas o governo, não é a lei, mas a polícia, ou seja, a máquina governamental que se forma e se mantém em movimento.
O paradigma de governo e o estado de exceção coincidem na idéia de oikonomia, de uma práxis de gestão que governa o curso das coisas. Agamben (2007, p. 63) revela que em direito se faz uma contraposição entre cânone e economia, e exceção se define como uma decisão que não aplica estritamente a lei, mas utiliza a economia (administração da casa).
Para Agamben, portanto, o estado de exceção é o paradigma moderno da política, uma situação na qual a lei existe em forma, mas não vigora de fato, deixando que vigore uma outra lei, aquela que se forma a partir da governança, ou seja, a administração pura e simples, que o filósofo identifica com etimologia da palavra economia, a administração da casa. É importante revelar que o objeto desta administração não é o Estado, mas a vida natural dos cidadãos.
Sendo assim, no estado de exceção, o soberano pode decidir qual vida vale ou não ser vivida. Quando há um discurso jurídico e legislativo sobre o aborto ou a eutanásia, discute-se qual vida pode morrer sem que se cometa homicídio. Na era da biopolítica, esse poder deixa de ser exclusivo do estado de exceção para se tornar uma discussão sobre o ponto em que a vida deixa de ser interessante politicamente. Na biopolítica, soberano é aquele que decide sobre o valor ou desvalor da vida como tal. (Agamben, 1995, p. 157)
Quando vida e política estão articuladas, toda a vida se torna sacra e toda política se torna de exceção.
Em conclusão, Agamben contesta o paradigma político clássico, focado em três poderes que acredita na soberania popular. Para este autor, soberana é a lei, porém, uma lei que não vigora, pois sua maior força é a de suspender todo o ordenamento para que a administração da vida dos cidadãos torne-se mais importante que a gestão do Estado.
Para o filósofo italiano, a mudança de foco da administração do governo do povo, conceito político, para a gestão da população, conceito demográfico, é fundamental pois é o momento em que a lei perde sua força na aplicação de direitos e passa discutir conceitos morais em torno da excelência de determinadas vidas. Para Agamben, a partir do momento em que os governos passam a administrar mortalidade e natalidade, passam a discutir aborto ou eutanásia, emitem parecer sobre pesquisas com células tronco, não se legisla mais direitos, mas trata-se de valores morais, cujo único objeto é a vida natural dos indivíduos.
Por isso, estado de exceção torna-se paradigma político na contemporaneidade, pois a lei não versa sobre direito de todos, mas sobre a vigência e vigilância de uma determinada vida eleita naturalmente boa.
No direito brasileiro pode-se recorrer ao artigo 5º da Constituição Federal Brasileira que diz em seu caput:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)
Fica claro que o direito à vida está ordenado no sistema de leis brasileiro, uma vida que não é particular, subjetiva, mas a vida em seu sentido amplo, natural, no sentido que Agamben toma como vida nua. Como diz José Afonso da Silva (2007), vida, no texto constitucional brasileiro tem acepção não somente biológica, mas biográfica, ou seja, um processo, até deixar de ser vida, para ser morte (p. 197). É também no texto da lei que se encontra a definição de quando começa e termina esta vida descrita no texto constitucional. É o ordenamento que determina como os cidadãos brasileiros podem gozar de seus corpos preenchidos de vida, dos modos de exercer sua capacidade de trabalho e os limites de gozar sua sexualidade.
Todo este aparato jurídico em torno do conceito de soberania demonstra a atualidade do pensamento de Agamben. Demonstra que o ordenamento brasileiro não foge à análise cunhada pelo filósofo quando afirma que a lei soberana muito mais do que administrar o poder, administra a vida dos cidadãos.
Afirmar o direito á vida no ordenamento jurídico nos remete ainda a mais um pensamento de Agamben, aquele que afirma ter forma, mas não ter força, pois qual é a força que pode ter uma lei que apenas garante o direito à vida? Qual a sanção caso tal direito não seja respeitado?
Há de se afirmar que são normas programáticas, que sua vigência atinge o espectro normativo com a finalidade de criar uma unidade legislativa que garanta tal direito. Podemos afirmar que tal lei é uma lei que administra todo o ordenamento para determinado sentido? Se sim, é uma lei que só ganha força em forma de ato, de exercício, ou seja, de governabilidade.
Então, confirma-se mais uma vez um preceito agambeniano: a lei que tem força, mas não tem forma, é a que vige, a lei daqueles que governam.
Podemos dizer, assim, que no Brasil também vigora o estado de exceção como paradigma político, situação em que o ordenamento inteiro é suspenso a partir de uma norma interna a ele próprio. A lei ordenada se traduz apenas em processo, os ritos jurídicos, as discussões dos tribunais, tudo se resume à forma. E a lei que tem força é aquela que emana fora do ordenamento, das forças governantes do Estado Brasileiro.
Agamben, Giorgio; Homo sacer – Il potere sovrano e la nuda vita, Piccola Biblioteca
Einaudi, Torino, 1995
______________; Quel Che resta di Auschwitz – L’ archivioe il testimone ; Bollati Boringhieri, Torino, 1998.
____________ ; Stato di Eccezione ; Bollati Boringhieri, Torino, 2003.
____________ ; Il Regno e la Gloria – per una genealogia teologica dell economia e del governo; Universale Bollati Boringhieri, Torino, 2007.
Da Silva, José Afonso; Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, São Paulo, 2007.
[1][1] (Agamben escreve essa força de lei sem lei da seguinte forma: força de lei).