O problema da indemonstrabilidade do livre-arbítrio: a culpabilidade jurídico-penal diante da nova concepção de homem da neurociência

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 10 – Janeiro/Junho 2010

O problema da indemonstrabilidade do livre-arbítrio: a culpabilidade jurídico-penal diante da nova concepção de homem da neurociência

The problem of the indemonstrability of free will: the criminal culpability and the new man of the neuroscience

Salah H. Khaled Jr. – Professor assistente de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Doutorando e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Mestre em História (UFRGS). Especialista em História do Brasil (FAPA). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Licenciado em História (FAPA). Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de Ambição de Verdade no Processo Penal (Desconstrução Hermenêutica do Mito da Verdade Real) – editora jusPODIVM, 2009 e Horizontes Identitários (A Construção da Narrativa Nacional Brasileira pela Historiografia do Século XIX) – EDIPUCRS, 2010.

Resumo: O presente artigo discute o problema da indemonstrabilidade do livre-arbítrio e seus reflexos para a culpabilidade diante da nova concepção de homem da neurociência. São abordadas questões relativas à própria fragilidade do conceito e os questionamentos que o mesmo enfrenta, a partir de autores consagrados no cenário nacional e de penalistas e neurocientistas alemães.

Sumário: 1. A culpabilidade jurídico-penal diante do “novo homem” da neurociência; 2. A insustentabilidade da culpabilidade baseada no livre-arbítrio; 3. A culpabilidade a partir da suposição de liberdade; 4. A culpabilidade pela personalidade ou caráter; 5. Considerações finais 6. Bibliografia

Palavras-chave: culpabilidade, direito penal, neurociência, livre-arbítrio.

Abstract: This article discusses the problem of the indemonstrability of free will and its consequences for the culpability, considering the new conception of man proposed by the neuroscience. The analysis deals with questions concerning the fragility of the concept and the questions that it faces, using renowned authors on the national scene and German criminalists and neuroscientists.

Keywords: culpability, criminal law, neuroscience, free will.

  1. A culpabilidade jurídico-penal diante do “novo homem” da neurociência

A questão decisiva para a concepção normativa pura da culpabilidade é o livre-arbítrio, expresso no critério positivo de um “poder de agir de outra maneira” que fundamenta o juiz de censura, ou seja, o juízo de reprovação pessoal diante da prática de um fato típico e antijurídico. Como refere Bitencourt, a partir do finalismo de Welzel a culpabilidade pode ser resumida como “a reprovação pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito, embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez”.[1][1]

Deixando de lado uma reconstrução histórica do conceito de culpabilidade – incompatível com as dimensões do presente artigo – podemos considerar que a culpabilidade em sua forma presente é um conceito de caráter normativo, que se funda na premissa de que o sujeito podia fazer algo distinto do que fez, e que, nas circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse.[2][2] A teoria do poder de agir de outra maneira de Welzel, Arthur Kaufmann e outros, considera que o autor é pessoalmente reprovado porque se decidiu pelo injusto, tendo o poder de se decidir pelo direito. Como refere Gomes, o objeto do juízo de culpabilidade é o poder de agir de outro modo (o agente, mesmo podendo agir de modo diverso, formou sua vontade em desacordo com o ordenamento jurídico).[3][3] Segundo Brandão, para que a culpabilidade se perfaça, “é necessário que o autor tenha optado livremente por se comportar contrário ao Direito” sendo que se ele não pode “[…] nas circunstâncias, comportar-se conforme o Direito, sobre ele não pode recair um juízo de reprovação”.[4][4]

O problema que a teoria do poder de agir de outra maneira suscita é evidente: a reprovação que é feita ao sujeito que praticou o injusto se sustenta na consideração de que este sujeito dispunha de liberdade para tal. Ou seja, parte de um pressuposto que é indemonstrável empiricamente: a concepção de homem enquanto ser livre, o que remete à tensão entre livre-arbítrio e determinismo. Se a reprovabilidade se dirige à configuração da vontade e se somente é possível reprovar ao agente como culpabilidade, aquilo a respeito do qual pode algo voluntariamente, o pressuposto básico para esse juízo de censura é necessariamente o livre-arbítrio do homem. Sendo assim, embora seja um juízo de ordem normativa, a censurabilidade inegavelmente depende de critérios que extrapolam a mera normatividade, o que representa um problema substancial para dogmática jurídico-penal.

Sem dúvida, a culpabilidade é o conceito mais debatido e questionado da teoria do delito. Como referem Zaffaroni e Pierangeli, ainda que em toda teoria do delito esteja presente o homem, é na culpabilidade que o enfrentamos mais do que nunca.[5][5] Segundo Cirino dos Santos, “o problema central da culpabilidade é o problema do seu fundamento – o chamado fundamento ontológico da culpabilidade – acentuado pela redefinição da culpabilidade como reprovabilidade: a capacidade de livre decisão do sujeito”.[6][6] Portanto, a culpabilidade tem como postulado uma determinada concepção de homem, residindo aí o problema central desse elemento da teoria do delito, uma vez que a tese da liberdade da vontade pressuposta pelo conceito é indemonstrável.[7][7] Logo, pode ser percebido que o conceito de culpabilidade baseado no poder de agir de outra maneira é um conceito alicerçado em premissas de difícil sustentação. Para Bitencourt, “o livre-arbítrio como fundamento da culpabilidade tem sido o grande vilão na construção moderna do conceito de culpabilidade e, por isso mesmo, é o grande responsável pela sua atual crise”.[8][8]

A questão-chave da culpabilidade se tornou ainda mais aguda recentemente, em função do livre-arbítrio estar sendo fundamentalmente posto em questão em função dos desenvolvimentos recentes no campo da neurociência. De forma sintética pode ser dito que a neurociência está sustentando uma “nova imagem do homem” na qual as concepções de culpabilidade e responsabilidade não teriam mais lugar, uma vez que tais conceitos somente poderiam ser considerados caso houvesse, de fato, livre-arbítrio. De acordo com Jurgen Kruger (físico e neurocientista), o livre-arbítrio como qualquer outro processo neurológico pode estar vinculado causalmente a uma diversidade de precursores materiais e, por conseguinte, não mais seria livre. [9][9]

Não seria exagero afirmar que a concepção de homem da neurociência põe em causa boa parte das premissas essenciais ao funcionamento da teoria do delito contemporânea e o faz a partir de uma linguagem que se mostra praticamente ininteligível para a dogmática jurídico-penal. Em alguma medida até mesmo as convicções mais arraigadas sobre o que representam as relações humanas parecem significativamente abaladas caso sejam aceitas essas premissas. Para Willaschek,

Nós homens somos uma parte do mundo natural. Nós estamos sujeitos às leis da natureza e nossas ações são produtos de processos e fatores naturais: nosso patrimônio, nossa educação e socialização, bem como os complexos processos neurológicos em nosso cérebro. Disso deduzem alguns neurocientistas a tese de que a idéia de livre-arbítrio é uma mera ilusão, cuja insustentabilidade é comprovada pela pesquisa neurobiológica. Trata-se nada menos do que uma nova imagem do homem: o entendimento tradicional do homem, de que é responsável pelo seu próprio fazer, deve ser substituído por uma imagem do homem que pode conviver sem conceitos como responsabilidade, merecimento e culpabilidade, pois estes conceitos seriam aplicáveis somente de modo que dispusessem de livre-arbítrio.[10][10]

A reação de Willaschek expressa justamente a repulsa de um penalista diante do que afirma a neurociência sobre a inexistência de livre-arbítrio. Não há como dizê-lo de outra forma: o discurso da neurociência assusta. A primeira reação instintiva de quem trabalha com a dogmática jurídico-penal é a de pura e simplesmente renegá-lo. Não deixa de ser uma saída conveniente: desconsiderar os argumentos da neurociência como alienígenas ao sistema de imputação penal e com isso blindar a dogmática de qualquer influxo neurocientífico. No entanto, essa não parece uma solução aceitável, ainda que seja bastante conveniente. Uma dogmática jurídico-penal que pretenda estabelecer um espaço de limitação ao poder punitivo em um contexto de reconhecimento da complexidade que é inerente ao real e à sociedade contemporânea não pode hermeticamente fechar-se sobre si mesma e ignorar os discursos de outros saberes. Deve, ao contrário, procurar o diálogo com esses saberes e renunciar ao monólogo jurídico, que se mostra tão insuficiente diante dos infinitos problemas que envolvem a incidência arbitrária do poder punitivo. Pura e simplesmente ignorar essa discussão não é uma hipótese que deve ser seriamente considerada, até porque a culpabilidade é em si mesma um conceito frágil e o enfrentamento com o questionamento da neurociência pode indiretamente contribuir para que o conceito seja repensado.

O primeiro passo para travar esse diálogo necessário é a afirmação de que o problema do livre-arbítrio conforma uma questão perene que vem sendo enfrentada pelo pensamento humano desde os primórdios de sua história. Nesse sentido, a neurociência apenas expressa uma nova forma de questionar a liberdade humana, a partir de pressupostos que lhe são muito peculiares. Segundo Gunther, “O conceito de culpabilidade penal é por si mesmo muito discutido, sobretudo a questão acerca de que se ele pressupõe o livre-arbítrio ou não”.[11][11] Por outro lado, talvez ele nunca tenha sido suscitado de forma tão aguda e polêmica como agora. Como afirma Klaus Günther,

Se nossas decisões e ações são predeterminadas de maneira absolutamente causal por meio de processos neurológicos, não resta nenhum espaço para o livre-arbítrio. E se a vontade não é livre, então um autor também não pode ser responsável por um crime, pois ele não poderia agir de outra forma naquela mesma situação e, portanto, também não poderia ter omitido o crime. Se a tão fundamental liberdade da pessoa é colocada em questão, sem dúvida o Direito, como um todo, é colocado na mesma situação.[12][12]

Gunther relata que alguns ilustres neurocientistas fundamentam nos resultados de suas pesquisas até mesmo a necessidade de abolir o juízo de reprovação penal da culpabilidade e de substituir a pena por medidas de segurança ou, enquanto isto for possível de acordo com os conhecimentos médicos, por intervenções e terapias.[13][13] Percebe-se nitidamente que em alguma medida a discussão passa pela demarcação de um lugar de fala autorizado e, logo, privilegiado para tratar da questão, o que implica em uma disputa que se assemelha muito a que foi travada no final do século XIX entre o saber jurídico e os saberes antropológicos, sociológicos e psiquiátricos. No entanto, o que está em jogo aqui é mais do que um estatuto de poder, é muito mais do que o estabelecimento de um lugar de autoridade quanto à possibilidade de responsabilização ou não pela prática de um injusto, ou seja, de um fato típico e antijurídico. Segundo Willaschek,

Aqueles que exigem uma nova imagem do homem sem a afirmação do livre-arbítrio e da responsabilidade pessoal, parecem pensar, antes de tudo, em uma revisão do direito penal: não só os violadores do direito psiquicamente doentes merecem compaixão em vez de pena; antes vale para qualquer delinqüente o fato de que suas ações são o produto inevitável de condições naturais e sociais, pelo qual ele não é responsável. Conceitos como culpabilidade e pena, sobre os quais se baseia nosso sistema jurídico penal, não pode mais se manter à luz desta imagem do homem “cientificamente esclarecida” – o resultado seria um tratamento mais humano com aqueles que são prejudicados pelos genes ou pela socialização.[14][14]

Embora o discurso pareça indicar uma humanização, dificilmente a assunção do discurso neurocientífico da inexistência do livre-arbítrio como “verdade” deixaria de provocar reflexos imediatos na intervenção jurídico-penal, que comprometeriam ao menos em parte sua estruturação enquanto sistema de limitação do poder punitivo. No entanto, como refere Gunther, para os neurocientistas que defendem a inexistência da liberdade de forma radical,

Um juízo de censura de culpabilidade fundado no livre-arbítrio seria, então, igualmente falso, como a crença de que determinados homens se entregariam a forças ruins ou seriam castigados por estas, por causarem desgraças ao mundo. A pena pela culpabilidade pareceria então igualmente injusta como a execução na fogueira.[15][15]

É evidente que tais conclusões não são (e nem devem ser) bem vistas pelos penalistas. A medicalização do discurso e das práticas penais tem precedentes históricos bastante conhecidos e boa parte das conclusões e possíveis conseqüências práticas dos argumentos da neurociência parecem conduzir a soluções lombrosianas, que certamente não apontam para soluções mais humanas. Para Willaschek, “[…] este impulso humano transforma-se na luz contemplada às avessas. Quem, permanentemente, não é capaz de imputação, torna-se de um sujeito maior em um objeto de cuidado social e de controle – e isto vale não só para delinqüentes, mas para todas as pessoas”.[16][16] Como refere Günther, uma das possíveis conseqüências das hipóteses deterministas dos neurocientistas é o abandono do conceito de culpabilidade do direito penal, a sua substituição por categorias neurocientíficas e a abolição, por conseguinte, da pena, para substituí-la por medidas de proteção da sociedade contra indivíduos perigosos.[17][17] Para os penalistas, o que se mostra conducente a uma caça as bruxas é exatamente o argumento neurocientífico levado às suas últimas conseqüências.

Portanto, é necessário opor ao discurso da neurociência um discurso no âmbito da normatividade, no âmbito da dogmática jurídico-penal. O problema dessa constatação reside no fato de que o discurso dogmático no campo da culpabilidade é nitidamente frágil, independentemente de ter seus pressupostos colocados em questão pela neurociência. Em outras palavras: o discurso é falho em si mesmo, uma vez que boa parte de seu embasamento é insustentável argumentativamente e empiricamente.

A concepção normativa da culpabilidade parte da idéia de que a reprovabilidade tem como pressupostos a possibilidade de compreensão da antijuridicidade da conduta e a autodeterminação do sujeito de acordo com essa compreensão. Zaffaroni e Pierangeli são taxativos ao afirmar que “o princípio da culpabilidade, entendido como ‘não há pena se a conduta não for reprovável ao autor’, deve necessariamente fundar-se na aceitação de que o homem é um ente capaz de autodeterminar-se”.[18][18] Segundo os autores, a análise mais superficial dos dispositivos do Código Penal indica que ele não se encaixa com o ponto de vista determinista, sendo o mesmo inexplicável se suprimida a liberdade de vontade.

Para Zaffaroni e Pierangeli, “a ordenação dos delitos da parte especial e a estrutura geral do código, que se filia ao direito penal da culpabilidade, são contrárias a toda pretensão biologista ou mecanicista de entendimento do homem”. [19][19] Portanto, o conceito de culpabilidade remete e é edificado sobre uma base de autodeterminação como capacidade do homem, que para os autores não pode ser eliminada, pois resultaria na eliminação da própria culpabilidade e conduziria a um direito penal de periculosidade. Sendo assim, os resultados das pesquisas no campo da neurociência (que afirmam a inexistência dessa capacidade de autodeterminação em função de uma nova imagem de homem) levariam – quase que necessariamente – a um direito penal de periculosidade, ou em outras palavras, um direito penal do autor.

Coloca-se aqui um grande problema, que é de particular importância para o que se deseja do direito penal: a reprovação pelo ato (reprova-se o homem pelo que fez, na medida de sua autodeterminação no caso concreto) ou a reprovação pela personalidade (reprova-se não pelo que se fez, mas pelo que se é). Parece claro que uma nova objetificação da pessoa seria a conseqüência direta da adoção desse paradigma: se no passado já foram perseguidos os hereges (Inquisição) e os delinquentes (Lombroso), uma nova dimensão de seletividade se abriria, com resultados potencialmente desastrosos. Como refere Gunther,

Se fosse abandonada a própria imagem de homem livre, na verdade, ninguém mais poderia ser punido. Se não se fundamentasse mais a pena na culpabilidade, subsistiria ainda tão só a proteção da coletividade como fim da pena. Portanto, no lugar da pena deveriam entrar as medidas de segurança, assim como elas já são praticadas hoje, por exemplo, no caso da medida assecuratória para o reincidente perigoso.[20][20]

Certamente que um direito penal do autor não é desejável (e nem sequer aceitável) em um Estado Democrático de Direito. Entretanto, o fato é que o conceito de culpabilidade embasado na autodeterminação (e, portanto, no livre-arbítrio) mostra-se ele próprio insustentável (em virtude de sua indemonstrabilidade) a não ser que a dogmática insista (futilmente) em manter-se isolada em uma redoma de vidro hermeticamente fechada. Definitivamente são necessários novos aportes teóricos e uma nova fundamentação para a culpabilidade. Não são poucos os penalistas que estão cientes da fragilidade inerente ao conceito. É o caso de Jorge de Figueiredo Dias, que procura determinar materialmente a culpa de que se trata no direito penal, tentando ir além da idéia de censura dirigida ao agente pela prática de um fato.[21][21]

  1. A insustentabilidade da culpabilidade baseada no livre-arbítrio

Figueiredo Dias aponta que “a liberdade da pessoa – por mais duvidosa que ela seja no seu se e no seu como – é o mais íntimo pressuposto comum de toda a consideração da culpa em sentido moderno”.[22][22] O autor considera que essa concepção conduz ao que chama de dogma da culpa da vontade, ou seja, conduz à liberdade como pressuposto do conceito material de culpabilidade.[23][23] Logo,

[…] culpa só pode ser a censurabilidade da ação, por o culpado ter atuado contra o dever quando podia ter atuado de acordo com ele. O poder de agir de outra maneira na situação, dir-se-á, é deste modo requisito irrenunciável do conceito de culpa: quer esta se veja diretamente na decisão livre e consciente da vontade a favor do ilícito, de que o poder de agir de outra maneira é pressuposto; quer ela se veja no cometimento do ilícito por um agente que detenha capacidade para se determinar de acordo com a norma, ou era permeável ao apelo normativo; caso em que o poder de agir de outra maneira é simultaneamente pressuposto e conteúdo material da culpa.[24][24]

Segundo Figueiredo Dias, esta maneira de encarar e de tentar resolver o problema faz com que o conceito encontre dificuldades inultrapassáveis, em dois níveis: a) indemonstrabilidade; b) insustentabilidade político-criminal.

No primeiro nível (indemonstrabilidade), Figueiredo Dias aponta que o “poder de agir de outra maneira” em que se traduz a liberdade consubstancial ao conceito material de culpa, teria de ser comprovável não apenas de forma teórica (para saber se tal poder existe) mas também de forma prática (para saber quando e em que medida se depara com ele, como capacidade real de uma pessoa individual, na situação concreta da ação). [25][25] Como o autor assinala, “[…] a pergunta pela liberdade da vontade que presidiu à prática de um fato humano (o poder individual de uma pessoa para, numa situação concreta agir de outra maneira) continua a ser, como foi sempre, uma pergunta sem resposta”.[26][26] Em suma, a psicologia e a sociologia sabem estar impossibilitadas de responder à questão do livre-arbítrio quer no seu se, quer no seu quando, quer ainda no seu quanto. Para Figueiredo Dias, a resposta dessas questões cabe à antropologia filosófica e à ontologia, o que o conduzirá a sua concepção de culpa pela personalidade ou caráter. No entanto, embora o autor seja muito bem sucedido em apontar os problemas, não parece que ele tenha sido tão feliz nas conclusões, como será visto posteriormente.

No segundo nível (insustentabilidade político-criminal), Figueiredo Dias considera que a própria função do princípio de culpa é posta em questão. De um lado, a afirmação do acusado de que não pôde agir de outra maneira não teria como ser contraditada (como fazer prova em contrário?) e isso conduziria à absolvição por força da presunção de inocência e in dubio pro reo; de outro lado, todos os delinqüentes imputáveis que vivessem em um ambiente criminógeno (os que mais necessitariam de ressocialização) teriam sua pena diminuída em função do seu reduzido poder de agir e do seu efeito sobre a função limitadora do princípio da culpabilidade, o que para ele não é aceitável. Além disso, o autor refere que a compreensão que vincula a essência da exculpação como residindo na falta de capacidade de motivação pela norma também conduziria a conseqüências político-criminalmente insuportáveis.[27][27] De fato, as críticas que Figueiredo Dias faz a essa concepção são difíceis de serem rebatidas.

Como enfrentar o problema? Ao que parece há aqui uma falsa alternativa: de um lado, o determinismo da neurociência que afirma a inexistência absoluta de livre-arbítrio humano, o que não parece aceitável; e de outro lado, na universalização (também determinista, pois ignora a particularidade existencial e irredutível de cada homem individualmente considerado) de uma liberdade enquanto tal para o conjunto dos homens, que se funda nas premissas do homem racional moderno e é essencialmente metafísica. Por ser metafísica ela não precisa (e não pode) ser demonstrada (ou sequer ser sustentada argumentativamente de forma satisfatória). Ou seja, é uma liberdade pura e simplesmente tomada como dada, como inerente aos homens enquanto seres racionais que por natureza são. De acordo com Cirino dos Santos, a estruturação de uma culpabilidade com base na teoria do poder de agir de outra maneira se desdobra em duas vertentes: a perspectiva concreta e a perspectiva abstrata. Na variante concreta, o poder de agir atribuído ao autor individual é indemonstrável e na variante abstrata, o poder de agir diferente é a atribuído a qualquer outra pessoa no lugar do autor, fazendo com que a reprovação não incida sobre o autor, mas sobre uma pessoa imaginária no lugar do autor.[28][28] Em ambos os casos, há uma suposição: ou dirigida diretamente ao autor, ou indiretamente através de um padrão de comportamento exigível ao homem racional naquele caso concreto. Não há como não reconhecer que os argumentos utilizados para fundamentar essa concepção não escondem a sua fragilidade.

Outro argumento muitas vezes utilizado para fundamentar o poder de agir de outra maneira é o de que o homem tem livre-arbítrio, pois seria inconcebível que não fosse assim. Dito de outra forma, o homem é livre e racional: como poderia não sê-lo se isso é um pressuposto para a própria vida em sociedade e para a nossa condução e responsabilização enquanto seres sociais? Willaschek sustenta a liberdade de forma semelhante, ao dizer que a idéia de que não há livre-arbítrio

modificaria fundamentalmente as relações privadas dos seres humanos entre si: nós não poderíamos considerar um amigo como cruel, caso ele nos abandonasse. Ele não tinha escolha. Em contrapartida, se ele nos ajudasse, o agradecimento por causa disso seria igualmente inconveniente. A amizade e o amor perderiam seus fundamentos, pois nós precisaríamos compreender todos os sinais de afeição como produto inevitável das forças naturais. Uma sociedade sem a idéia de livre-arbítrio e de responsabilidade, dificilmente pode ser imaginada. Em qualquer caso ela não seria desejada.[29][29]

Reduzindo o pensamento acima à sua essência, fica a impressão de que Willaschek está dizendo que mesmo que o livre arbítrio seja indemonstrável, não é possível conceber a sociedade de outra forma e, logo, é assim que as coisas necessariamente devem ser. Em suma, a liberdade não é afirmada a partir de elementos positivos, mas a partir da suposta impossibilidade de sua inexistência. Como não é possível sustentar esse argumento por si só, Willaschek procura uma alternativa viável para fazer frente ao discurso neurocientífico, de forma que o mesmo não invalide as premissas necessárias ao funcionamento do juízo de culpabilidade. Para ele, “a solução consiste em distinguir duas espécies de contextos e, com isto, duas espécies de causas: contexto avaliador, no qual nós atribuímos responsabilidade a pessoas por seu fazer, e contexto explanador, no qual nós explicamos cientificamente a conduta humana”.[30][30] O autor sustenta que

no entendimento cotidiano e penal, para a responsabilidade – e, com isto, para o livre-arbítrio como seu pressuposto – é necessário, por conseguinte, não mais do que a capacidade de se decidir segundo a ponderação dos motivos (e de forma “racional”) e de poder agir de acordo com isso. Quais condições causais inserem o homem nesta posição (por exemplo, a existência de um cérebro capaz de funcionamento), diferentemente, é algo que não exerce papel algum na atribuição de responsabilidade. As únicas causas que são relevantes no contexto avaliador, são aquelas que excluem a responsabilidade, na medida em que elas impedem ou dificultam decisões racionais e sua transposição. Na explicação das ciências naturais acerca da conduta humana, ao contrário, também outras causas podem exercer um papel, como, por exemplo, os processos metabólicos bioquímicos ou estruturas cerebrais específicas. Em princípio, em tais contextos explanadores todos os fatores causais podem ser relevantes.[31][31]

Para Willaschek, a “liberdade e responsabilidade não exigem mais do que a ausência de fatores que impedem uma decisão racional, isto é, uma decisão baseada na ponderação das razões”.[32][32] Em última análise, para o autor somos livres desde que nenhum ruído ou perturbação interfira em nossa capacidade de compreensão e autodeterminação. De acordo com o Willascheck, afirmar “que a maioria dos homens normalmente dispõe da liberdade neste sentido não é uma tese metafísica ousada, senão um fato da vida prática. Ela não é colocada em questão pela pesquisa cerebral”.[33][33]

No entanto, o problema reside justamente na ausência de um critério de fundamentação positivo para a liberdade do homem, que possibilite a realização do juízo de censura, com base nesse livre-arbítrio que seria inerente ao homem. Esse é um limite que o Willaschek nitidamente não é capaz de resolver satisfatoriamente. Em suma, o autor está sustentando que o homem dispõe de liberdade porque “a vida prática evidencia isso”. O problema é que não é convincente afirmar a existência da liberdade do homem sem valer-se de uma concepção de homem (o que segundo Willaschek cabe a outras instâncias) tendo como base a crença de que o homem é livre “porque não poderia ser de outra forma na vida prática”. Ainda que a tentativa de deslocamento do âmbito metafísico seja louvável (sua referência à vida prática), a argumentação não parece satisfatória e acaba simplificando a questão. Além disso, dicotomizar “avaliação do homem” e “explicação do homem” parece ser eminentemente improdutivo. Como avaliar sem um horizonte prévio de compreensão? Na verdade, o autor tem uma concepção de homem como dotado de livre-arbítrio (mesmo que não a fundamente positivamente), mas os argumentos que ele utiliza para justificar essa concepção não parecem capazes de superar os limites inerentes as ela. Em última análise, as críticas de Figueiredo Dias se sustentam e não são superadas pela proposição de Willaschek.

  1. A culpabilidade a partir da suposição de liberdade

Segundo Figueiredo Dias, diante das aporias da concepção que tem o livre-arbítrio como base, alguns sustentam o que ele chama de tentativas de “abstração” ou “generalização” do “poder de agir de outra maneira”. Tais concepções deslocam a consideração do poder que do agente se deve esperar ou exigir para: a) o poder do “tipo concreto” de homem a que o agente pertence; b) o poder do “homem médio”; c) a “permeabilidade ao apelo normativo” característica do agente imputável e capaz de conhecer o ilícito.

Nessas concepções ocorre um reconhecimento velado da indemonstrabilidade do livre-arbítrio, onde há uma “suposição de liberdade”.[34][34] Para Roxin, a culpabilidade deve ser compreendida como o comportamento injusto apesar da orientação normativa. Com isto não se quer dizer mais do que a capacidade psíquica de uma pessoa de se conduzir por si mesma, portanto, de reagir psiquicamente sobre as normas, de modo que ela inclua estas em sua condução do agir.[35][35]

Segundo Roxin, “não se significa com isto que o agente teria podido faticamente agir de outra maneira – coisa que na verdade nós não podemos saber – mas apenas que ele, em caso de capacidade de orientação intacta e assim de ‘apelabilidade’ normativa com aquela dada, é tratado como livre.[36][36] Roxin afirma que esta possibilidade de condução “na maioria dos casos é dada ao adulto sadio”. Quem tem essa qualidade, é “tratado como livre”, e esta seria uma “disposição normativa (…) da qual a valoração social do problema teórico-cognitivo e científico natural do livre-arbítrio é independente”.[37][37] Dessa forma, a capacidade de comportamento conforme a norma assume a noção de pressuposição daquela liberdade não demonstrável, desde que não perturbada por ruídos. O problema é que essa permeabilidade, apelabilidade ou dirigibilidade ao apelo normativo parece ter uma identidade com a liberdade de vontade, o que implicaria em alguma medida no mesmo problema.

Outra questão que surge é que por mais que seja conveniente abraçar essa concepção, não parece que ela seja sustentável ou se coadune com um conceito de culpabilidade como limite ao poder punitivo. A cisão proposta por Roxin entre lei e realidade (como não posso demonstrar a liberdade, assumo que ela existe) somente é justificável a partir do que se mostra necessário para a aplicação do critério. De fato, não há como negar que essa proposição resolve o problema de demonstrabilidade (pois prescinde dela, na medida em que deixa de ser relevante: o homem é tratado como livre). Mas é uma orientação político-criminalmente aceitável? Se coaduna com direitos e garantias fundamentais? Esse questionamento implicaria inclusive em críticas mais abrangentes à diluição proposta por Roxin da culpabilidade em uma categoria maior chamada responsabilidade, que consideraria inclusive as exigências de prevenção geral.[38][38] Sem adentrar o assunto, mas não deixando de fazer breve menção a ele, não parece que a consideração do que há de mais frágil no pensamento jurídico-penal (as teorias legitimadoras da pena) possa contribuir para limitar satisfatoriamente o poder punitivo.

De qualquer forma, não parece possível que o Direito Penal possa fazer frente ao discurso neurocientífico sem, em alguma medida, estabelecer uma concepção de homem que considere concretamente o homem como indivíduo passível de censura por seus atos. Pura e simplesmente tratar o autor “como se fosse livre” a partir da ausência de condições que afetem essa pressuposição não faz jus a essa pretensão e estrategicamente desviar-se do problema não parece a solução adequada, que é, no entanto, a mais adotada. Nesse sentido, Günther destaca a inexistência de um critério positivo de culpabilidade nos ordenamentos jurídico-penais, salientando que “o direito penal e o sistema de justiça criminal operam com uma espécie de suposição de normalidade.” Ou seja, “[…] o que se deve encontrar de modo regular é o que é ‘normal’. Se o autor corresponde ao critério, ele é culpável, se ele não corresponde, então inexiste culpabilidade e ele também não pode ser punido”.[39][39] De acordo com o autor,

a vantagem de tais definições negativas consiste em que o legislador não precisa estabelecer um determinado significado do conceito de culpabilidade com uma resposta possivelmente problemática à questão do livre-arbítrio. Porém, além deste fundamento pragmático existe, é de se supor, um ainda mais profundo. Na falta de uma causa de exclusão da culpabilidade ou de uma causa exculpante é sempre admitida a culpabilidade penal sem qualquer outra fundamentação positiva. Assim, considera-se qualquer delinqüente que, por exemplo, não sofre de nenhum dos chamados déficits internos, como culpável. Do mesmo modo, também no processo penal o acusado é considerado culpável sem o levantamento de outras provas, ou seja, circunstâncias especiais fazem esta hipótese parecer duvidosa. É praticada uma regra processual de exceção: a culpabilidade penal é aquilo que de resto subsiste quando não existe nenhuma das exceções jurídicas anteriormente determinadas. Então, assim diz a linguagem usual, o crime é censurável ao autor também individualmente, respectivamente pode-se proferir em relação a ele uma reprovação da culpabilidade.[40][40]

Mas afinal, o que é ser “normal” e, logo, passível de censura? Para a neurociência, a “normalidade” implica em ausência de liberdade. De que “normalidade” o Direito Penal parte? Pura e simplesmente “tratar como livre” é insatisfatório para uma concepção de juízo de censura que pretende estabelecer limites ao poder punitivo no momento da imposição da pena. Para Hassemer, sem a condição positiva da capacidade humana de responsabilidade não seria lógico e nem justo o juízo de censura da culpabilidade e a aplicação de pena, decorrendo daí a necessidade de estabelecimento de um critério dogmático nesse sentido.[41][41]

O que ocorre aqui é que a concepção que supõe a normalidade e com ela, a liberdade, mostra-se funcional – no sentido de atender as exigências básicas do sistema – , mas como Figueiredo Dias afirma, fica difícil de “[…] compreender como possa a culpa cumprir a sua função de limite da medida da pena se, no conteúdo material daquela, se trata só de algo cuja existência se presume em função de um padrão generalizante ou de um postulado político-criminal”.[42][42] Fica a questão: é aceitável que o critério que autoriza o juízo de censura seja a própria continuidade dogmática do conceito e funcionalidade do sistema de imputação penal? Ou seja, para que não caia por terra a teoria, se toma como realidade o que a teoria precisa para funcionar na prática? Isso soa como um utilitarismo no mínimo, exacerbado.

De forma semelhante à universalização do livre-arbítrio, na impossibilidade de prescindir da liberdade para o funcionamento da culpabilidade, resta outro determinismo: a universalização pura e simplesmente funcional da liberdade (o homem é tratado como se fosse livre, mesmo que não tenhamos como sustentar que ele é). Diante da dificuldade encontrada, Roxin responde de forma semelhante (e igualmente não convincente) a Willaschek. Se Willaschek sustenta que há livre-arbítrio, pois seria inconcebível que a sociedade funcionasse de outra forma e, logo (supostamente) é possível avaliar o homem independentemente de uma concepção de homem, Roxin propõe tratar os homens como livres mesmo que isso seja indemonstrável.

Em suma, na afirmação do livre-arbítrio pela dogmática jurídico-penal encontram-se três tipos distintos de generalização: a) livre-arbítrio como capacidade universal (metafísica) do homem racional, que se desdobra nas variantes abstrata e concreta; b) o homem é livre porque a sociedade como está torna isso evidente e exigível; c) o homem é tratado como livre, independentemente de uma formulação que sustente e constate isso.

As concepções de homem da neurociência, do homem racional moderno dotado de livre-arbítrio e do homem tratado como livre de Roxin guardam em si algo em comum: prescindem de uma dimensão existencial, ou seja, ignoram a historicidade da vivência humana, que é justamente a relação que Figueiredo Dias tenta fazer através de sua proposição.

  1. A culpabilidade pela personalidade ou caráter

Figueiredo Dias considera que através da via da culpabilidade pela personalidade ou caráter (que remonta a Aristóteles) pode ser superado o impasse, ligando o poder de agir de outra maneira antes que ao fato praticado, ao caráter ou personalidade do agente.[43][43] Segundo o autor, não se trata de substituir a responsabilidade pelo fato por uma responsabilidade pelo agente, mas sim de substituir a adscrição da culpa, sempre na base do fato, não à vontade que a este presidiu, mas ao caráter ou personalidade que no fato se exprime.[44][44] Para Figueiredo Dias, destacam-se nessa concepção as suas possibilidade teóricas, sua legitimidade ética e sua capacidade para dar resposta suficiente às exigências político-criminais. Para o autor, no entanto, ainda é necessário mais um deslocamento além da inclusão do caráter ou personalidade no conteúdo material da culpa: o poder de agir de outra maneira (que conduz ao livre-arbítrio) deve ser afastado em função da noção de um dever de conformação da pessoa, no seu actuar, às exigências do direito.[45][45]

O deslocamento que Figueiredo Dias propõe é de uma liberdade indeterminista (ou determinista porque universalizante) do livre-arbítrio por uma liberdade pessoal. Sem dúvida há aqui, uma possibilidade de avanço, pois ocorre um deslocamento do geral para o particular que leva em conta uma dimensão existencial ignorada pelo determinismo neurocientífico e pelo determinismo metafísico. Assim, Figueiredo Dias refere uma outra imagem do Homem: “não o Indivíduo abstrato e isolado, mas Pessoa concreta e situada, Homem socializado, no sentido de que vive em um mundo e de que é, assim, aquilo que através da ação objetiva no mundo e que o mundo subjetiva nele”.[46][46] Figueiredo Dias considera que a viragem do pensamento pela antropologia filosófica e uma nova compreensão do “eu” da consciência possibilitada por uma nova impostação do problema da oposição sujeito/objeto, parecem ter reunido as condições de solução da aporia, ao mostrarem com clareza que o “lugar” da liberdade vem a cobrir-se com a mais radical e originária das realidades: o existir humano.[47][47] Figueiredo Dias destaca que

o homem tem que se decidir a si e sobre si , sem que possa a qualquer momento furtar-se a tal decisão: neste sentido ele dá a si mesmo, através de sua ‘opção fundamental’, a sua própria conformação […] nisto residirá a autêntica liberdade pessoal do homem, sua característica irrenunciável: ele, no concreto existir, é sempre ser-livre.[48][48]

A partir dessa concepção, Figueiredo Dias afirma que a “[…] culpa é, materialmente, em direito penal, o ter que responder pela personalidade que fundamenta um facto ilícito-típico e nele se exprime”.[49][49] O autor acredita assim ter superado a questão do livre-arbítrio ao deixar de lado o “poder agir de outra maneira” em prol do dever de conformação da pessoa, no seu atuar, em conformidade com o direito. No entanto, ainda que sob outro enfoque, permanece, segundo ele, a crença na liberdade da pessoa. Figueiredo Dias afirma que o conteúdo da culpabilidade não é referido ao caráter (naturalístico) da pessoa, mas à sua personalidade como fruto de uma decisão livre (de uma opção fundamental) da pessoa sobre si mesma. Para ele, é um conceito capaz de, inclusive, fazer jus a função político-criminal de limitação da medida da pena.[50][50]

Ainda que o desejo de superação dos problemas e a formulação teórica sejam admiráveis, os problemas inerentes ao que Figueiredo Dias propõe são evidentes. Em primeiro lugar, ele novamente remete a uma concepção de livre-arbítrio que não é passível de demonstração, embora o deslocamento para o âmbito do dever aparentemente escamoteie o problema. Mas se é assim, novamente será necessário o livre-arbítrio para que a personalidade se forme em conformidade com o dever e se exprima de acordo com ele em determinadas circunstâncias que se relacionem a mandamentos e proibições penais. Em segundo lugar, parece claro que sua proposição perigosamente borra a distinção entre direito penal do ato e direito penal do autor.

É nesse sentido que Zaffaroni e Pierangeli não vêem como é possível fazer uma combinação de reprovação pelo ato e pela conduta de vida, porque ou a ação é reprovada na circunstância concreta em que atuou, ou o sujeito é por ela reprovado como resultado de sua conduta de vida; qualquer pretensão de combinar ambas as reprovações não pode conduzir a outro resultado senão o de cair na segunda, isto é, em uma culpabilidade de autor, chamada em nossos dias de “culpabilidade pela conduta de vida”.[51][51] Mesmo que Figueiredo Dias procure salientar que se trata de uma personalidade que no fato se exprime, sua proposição encontra grandes dificuldades diante dessa crítica.

  1. Considerações finais

Como última consideração (que certamente não têm caráter conclusivo) fica uma reflexão sobre qual poderia ser o caminho a seguir. A neurociência e sua nova concepção de homem ameaçam desconstituir boa parte do Direito Penal moderno, que inegavelmente é fundado sobre uma concepção de homem que é absolutamente idealizada e empiricamente indemonstrável. É preciso reconhecer que a concepção de culpabilidade enquanto baseada no livre-arbítrio de acordo com as premissas modernas é insustentável, independentemente do que propõe a neurociência. Nesse sentido, a neurociência é apenas mais um elemento de descrédito para a concepção de homem da modernidade, o que, todavia, não significa que suas proposições devam ser necessariamente tomadas como “verdadeiras”. Há que se ter um espírito de desconfiança em relação ao conhecimento científico; a própria história do pensamento europeu moderno e a elevação da ciência à condição de religião demonstram isso inequivocamente. Não é mais aceitável que o discurso científico seja tomado como verdade e que isso automaticamente invalide todos os argumentos que não preenchem os requisitos da cientificidade.

Na realidade a neurociência somente se coloca como um problema tão grande para a dogmática jurídico-penal porque é constitutivo da sociedade moderna que o conhecimento científico (a partir das premissas clássicas das ciências naturais) seja concebido como expressão da verdade. Essa hierarquização de saberes conduz ao entendimento de que todas as outras leituras do mundo (como a arte, a literatura, as ciências humanas e a filosofia, enfim) sejam consideradas como inferiores. A dogmática jurídico-penal é necessariamente, uma ciência humana, o que invariavelmente a coloca em uma posição inferior no edifício do saber para aqueles que idolatram uma determinada concepção de ciência, que certamente não é a única possível, nem a única existente. Talvez a saída para o problema seja enfatizar ainda mais esse caráter de ciência do espírito do direito penal: abandonar as pretensões metafísicas e lutar por uma dogmática jurídico-penal mais ligada à vivência humana, que abandone uma concepção idealizada de homem livre enquanto ser racional. Isso não significa renunciar ao direito penal.

Para que isso possa ser feito com eficácia, o discurso jurídico-penal terá que, necessariamente, rever boa parte de seus pressupostos. Uma vez que reconhecidamente o livre-arbítrio é indemonstrável empiricamente, mas também, imprescindível para a funcionalidade do sistema, isso significa que, em alguma medida, a liberdade terá que ser tomada como dada (a menos que se reconstrua completamente a dogmática jurídico-penal a partir de outras bases). O caminho mais próximo parece ser o proposto por Roxin. No entanto, a solução de pura e simplesmente “tratar como livre” parece pecar pela excessiva generalização e ser incapaz de fazer valer a função de limite da pena da culpabilidade. É necessário, em alguma medida, deslocar a generalização para um âmbito mais próximo da vivência humana e isso significa, em alguma medida, abrir mão da pretensão universal que é tão cara ao Direito Penal (algo que outros ramos do direito já fizeram, mas que teria um peso imenso no âmbito penal). Isso implicaria necessariamente em considerações diversas no que se refere à permeabilidade ao apelo normativo dos sujeitos concretos em questão e à eventual consideração de atenuação da culpabilidade em função disso, procurando enfatizar o seu caráter de limite na imposição da pena. A idéia de co-culpabilidade em alguma medida procura corresponder a esse ideal.

O fato é que independentemente da fragilidade de suas bases modernas, o direito penal ainda se constitui em um mecanismo de proteção e garantia – ainda que falho e limitado – que certamente é desejável diante dos caminhos tortuosos a que a neurociência poderia nos conduzir. Isso significa que o discurso da dogmática jurídico-penal deve procurar se contrapor (na medida do possível e sem radicalismos) ao discurso neurocientífico.

Isso não significa que os neurocientistas sejam exatamente um inimigo a ser combatido, até porque não compactuam de uma uniformidade de pensamento, assim como também não compactuam dessa uniformidade os próprios penalistas. De acordo com Kruger, “[…] permanece cientificamente incomprovado se a vontade é livre ou não, ou ainda, se a categoria de conceitos “livre/não-livre” de modo geral é aplicável à vontade”. O autor afirma que “Sem que surjam novos aspectos e sem que novos resultados possam ser extraídos das pesquisas, a neurociência deve entregar a questão do livre-arbítrio à humanidade”.[52][52] Que um neurocientista tenha dito isso pode não significar que a neurociência reconheça a liberdade do homem, mas significa ao menos, que o espaço para o diálogo existe e não seria sensato que os penalistas não fizessem uso dele.

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[1][1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p.370.

[2][2] ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro V.1: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.518.

[3][3] GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: parte geral: volume 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.558.

[4][4] BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de janeiro: Forense, 2008, p.201.

[5][5] ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Op. Cit., p.517.

[6][6] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008, p.287. Grifos do autor.

[7][7] Ibid., p.287.

[8][8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p.357.

[9][9] KRUGER, Jurgen. Neurociência e livre-arbítrio: sobre a vinculação entre a consciência e seus fundamentos neurológicos. Trad. Pablo Rodrigo Alflen. In: Politische Meinung, 2004, n.º 420, p. 27.

[10][10] WILLASCHEK, Markus. A vontade livre – um fato da vida prática por que a pesquisa cerebral não pode colocar em questão o livre-arbítrio? Trad. Pablo Rodrigo Alflen. In: Forschung Frankfurt 4/2005, p.51.

[11][11] GÜNTHER, Klaus. Responsável pelos próprios atos? O direito penal e o conceito de culpabilidade – uma velha discussão com novos impulsos. Trad. Pablo Rodrigo Alflen. In: Forschung Frankfurt 4/2005, p. 26.

[12][12] Ibid., p. 26.

[13][13] Ibid., p.27.

[14][14] WILLASCHEK, Markus. Op. Cit., p. 52

[15][15] GÜNTHER, Klaus. Op. Cit., p. 29.

[16][16] WILLASCHEK, Markus. Op. Cit., p. 52.

[17][17] GÜNTHER, Klaus. Op. Cit., p. 29.

[18][18] ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Op. Cit., p.522.

[19][19] Ibid., p.522.

[20][20] GÜNTHER, Klaus. Op. Cit., p.29.

[21][21] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.471.

[22][22] Ibid., p.471. Grifos do autor.

[23][23] Os portugueses usam o termo culpa com o sentido de culpabilidade.

[24][24] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. Cit., p.477.

[25][25] Ibid., p.477.

[26][26] Ibid., pp.477-478.

[27][27] Ibid., p.479.

[28][28] SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit., p.289.

[29][29] WILLASCHEK, Markus. Op. Cit., p. 52

[30][30] Ibidem, p. 52

[31][31] Ibidem, p. 52

[32][32] Ibidem, p.53.

[33][33] Ibidem, p.53.

[34][34] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. Cit., pp.480-481.

[35][35] GÜNTHER, Klaus. Op. Cit., p. 29.

[36][36] APUD FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. Cit.,. p.481.

[37][37] APUD GÜNTHER, Klaus. Op. Cit., p. 28.

[38][38] Ver D’AVILA, Fábio Roberto. O direito e a legislação penal brasileiros no séc. xxi: entre a normatividade e a política criminal. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.) Criminologia e Sistemas Jurídico-penais Contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008, pp.307-335.

[39][39] GÜNTHER, Klaus. Op. Cit., p. 29.

[40][40] Ibid., p.29.

[41][41] HASSEMER, Winfried. Culpabilidade. In: Revista de Estudos Criminais, 2001, n.03, p.19

[42][42] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. Cit., p.481.

[43][43] Ibid., p.481.

[44][44] Ibid., p.482.

[45][45] Ibid., p.483.

[46][46] Ibid., p.483.

[47][47] Ibid., pp.484-485.

[48][48] Ibid., p.485. Grifos do autor.

[49][49] Ibid., p.486.

[50][50] Ibid., p.487.

[51][51] ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Op. Cit., p.523.

[52][52] KRUGER, Jurgen. Op. Cit., p. 30.