O poder de punir (menos): sobre a contenção das pulsões inquisitoriais

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 02 – Janeiro/Junho 2006

O poder de punir (menos): sobre a contenção das pulsões inquisitoriais

Augusto Jobim do Amaral – Advogado, Professor de Criminologia e Direito Penal da Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS; Especialista em Ciências Penais pela PUCRS e Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra.

E-mail: aamaral@upf.br

Resumo: Partindo da ilegitimidade do sistema penal contemporâneo, o presente artigo tem por escopo desenvolver um arrazoado sobre uma postura garantista, limitadora das arbitrariedades do aparelho jurídico-estatal. Traça-se um quadro geral do perfil minimizador das violências das agências judiciais de controle penal, potencializadas pelo estilo inquisitorial que emerge no processo penal.

Sumário: 1. As pulsões inquisitoriais do discurso; 2. “O Rei está nu e a sua Guarda está à beira de uma crise de nervos”: sobre o local de fala.

Palavras-chave: Estado – Violência – Poder Punitivo – Crítica Processual Penal

  1. As pulsões inquisitoriais do discurso

No processo penal, por agora nossa preocupação de debate, afirmou-se ao longo de sua tortuosa construção uma preferência entre alguns saberes em luta, ou seja, saiu-se vencedor um paradigma metodológico que, surgido na Europa no século XII, abarcou todo o mundo e obscureceu o pensamento dialógico: a “inquisitio”.

Foi o processo de acumulação do poder punitivo inquisitorial ou de investigação que ajudou a desenvolver o valor instrumental da verdade (o útil é o verdadeiro), tornando mais do que nunca nebulosa a separação entre verdade e poder. Daí ao rebaixamento do ser humano à categoria de objeto dominado não tardou nada. “Onde a ‘inquisitio’ prepondera, o perigo permanece oculto e é o perigo extremo, onde o ser humano assume a figura de senhor da terra e de todos os seres – inclusive os humanos que, desse modo, se tornam artefatos do ‘dominus’”.

Veja-se que a visão policial-vigilantista do saber tem sua retomada atrelada à própria estatização da justiça penal na dita idade média.  Nos XII e nos XIII vê-se uma espécie de segundo nascimento do inquérito com o reaparecimento do Direito Romano e a decadência do Direito Germâmico (feudal). Neste imperava o sistema de prova – épreuve – em que o litígio se resolvia (quem tinha razão) por uma série de desafios nos quais se medida a força do indivíduo – rompida ou não a inércia por uma intervenção externa, não uma pesquisa sobre a verdade: provas de importância social, provas do tipo verbal, provas mágico-religiosas, provas físicas (ordálias) etc. Caracterizava-se por ser uma estrutura binária, em que se aceitava ou não a prova, havia simplesmente a vitória ou fracasso (ausência de sentença); sobretudo, ainda, por ser automática, não existia a necessidade de um terceiro além dos adversários, senão para garantir a regularidade do procedimento.

Contudo este sistema de práticas judiciárias dá lugar, com a mudança da sociedade feudal européia ocidental, a uma condição de possibilidade de saber capital para os séculos seguintes: o inquérito. Antes é imperativo que se tenha presente que na sociedade feudal a circulação dos bens se dava principalmente pela rivalidade militar e contestação belicosa, onde a riqueza era o meio pelo qual se exercia tanto a violência quanto o direito. Por outro lado, havia também os litígios judiciários que eram uma outra forma de “circular” os bens. Com os mais poderosos tentando controlar esta sistemática – destaque-se o maior deles, o monarca –, a conseqüente concentração das armas e do poder judiciário incipiente da época nas mãos dos mesmos personagens fica de fácil visualização.

Consolida-se, assim, este processo com a formação das grandes monarquias medievais do XII, onde emerge uma justiça que vai impor-se do alto, em que todos os indivíduos deverão submeter-se a um poder exterior; aparece o procurador, representante do soberano, que vai dublar a vítima, com poder de apossar-se dos procedimentos judiciários; e, sobremaneira, a noção de ofensa de um homem a outro é substituída pela idéia de infração ao soberano, dano à própria lei do Estado que agora exige reparação. Abandona-se a épreuve, pois afinal o Rei/Procurador não poderá arriscar sua própria vida e bens em todas as provas a que for chamado. Daí a necessidade de (re)adoção do modelo do inquérito que já tinha existido no Império Carolíngio. Modelo este de gerenciamento para as questões tributárias que a igreja manteve para a gestão de seus próprios bens. É a chamada “visitatio” que consistia no trabalho do bispo em percorrer a sua diocese instituindo primeiro a inquisição geral – “inquisitio generalis” – perguntando a todos os que deviam saber sobre faltas, crimes e etc. que teriam acontecido na sua ausência; se necessário se passava à inquisição especial – “inquisitio specialis” – exatamente para apurar os ocorridos. Evidentemente se coloca em destaque a tese de FOUCAULT acerca da dupla origem do inquérito: uma origem administrativa ligada ao surgimento do Estado e a outra religiosa, eclesiástica. A Igreja como único corpo coerente à época tem, então, seu modelo facilmente incorporado pela nascente figura estatal.

“O Modelo – espiritual e administrativo, religioso e político, maneira de gerir e de vigiar e controlar as almas – se encontra na Igreja: inquérito entendido como olhar tanto sobre os bens e as riquezas, quanto sobre os corações, os atos, as intenções, etc. É esse modelo que vai ser retomado no procedimento judiciário. O procurador do Rei vai fazer o mesmo que os visitantes eclesiásticos faziam nas paróquias, dioceses e comunidades. Vai estabelecer por ‘inquisitio’, por inquérito, se houve crime, qual foi ele e quem o cometeu”.

Com isto, é oferecido ao olhar um procedimento impregnado de categorias religiosas que supostamente seria resultado do progresso de racionalidade, mas que em correto era um verdadeiro exercício de poder e de transmissão do saber. Identifica-se agora crime-pecado (lesão à lei e falta religiosa), e mais ainda, estabelecida estava uma forma geral de saber que fez aumentar o poder real até o fim da idade média (XVII e XVIII) enormemente.

Este intróito coloca os traços determinantes do que se poderia chamar de revolução inquisitória, elemento importantíssimo quanto tratamos de garantias no processo penal. Ela serviu, como se viu, para satisfazer as exigências comuns a dois mundos: eclesiástico (heresia) e civil (criminalidade). Seu automatismo repressivo foi, assim, fomentado por um lado por uma tecnocracia (vertente laica) e por outro lado pela vertente eclesiástica representada pela ordem dos dominicanos.

As complexas estruturas assim, segundo CORDERO, emergiram paulatinamente, mas é com o Concílio de Latrão (1215) que a revolução se anuncia organicamente. Antes houve o Concílio de Verona (1184) e a união do Lúcio III com o Imperador Frederico Barbaroxa; a Bula Vergentis in Senium (1199) de Inocêncio III – a qual preparava o terreno para a repressão canônica e as modificações processuais equiparando heresia e crime de lesa majestade. Ainda houve a estabelecimento das bases jurídicas efetivas realizadas pelo Constitutio Excomuniamus (1231) do Papa Gregório IX – ano em que se institui o Tribunal da Inquisição; entretanto é com a Bula Ad extirpanda de Inocêncio IV (1252) que a tortura é institucionalizada como meio de prova e o aparato assume figuras definitivas.

Discurso este que tem sua fundação em dois escritos principais: o Mallus Maleficarum ou Martelo das Feiticeiras de 1487 e o Manual dos Inquisidores de 1376 (re)elaborado em 1578. Aquela obra, segundo ZAFFARONI, BATISTA, SLOKAR e ALAGIA, com uma incrível sofisticação racionalizante, foi a primeiro complexo interdisciplinar de uma ciência total do direito penal – três teorias perfeitamente integradas: a criminológica, a penal e a processual penal. Nada estranho não se examinar rotineiramente a fundo tal texto no contexto acadêmico, na medida em que é fundador do moderno saber jurídico-penal e “não se pode mostrar, como obra fundacional, um trabalho que postula e legitima as crueldades e as racionaliza com argumentos baseados em disparates finissimamente veiculados”.

Evidentemente que no “maior engenho jurídico que o mundo conheceu e conhece”, nas palavras de COUTINHO, o que conta é o resultado. De expectador o magistrado torna-se amplo protagonista e o investigado, culpado ou não, sabe algo importante (nesta semiótica tudo se torna importante) e está obrigado a dizer-lo. De um elemento impassível na contenda, torna-se um ilimitado órgão ativo na alimentação do aparato, que se move a partir do estímulo de fluxos verbais, no qual “concepita un´ipotesi, vi edifica cabale induttive, l´assenza del contraddittorio apre um vuoto lógico aperto al pensiero paranoide, trame lambiccate eclissano i fatti”. Desta forma, como um rito fatigante e ausente de qualquer formalidade, é que o catedrático italiano trilha a identificação deste estilo: privilegia-se as imputações em razão da prova num explícito exercício de “psicoscopia”.

O imputado torna-se um mero objeto da investigação, daí a desnecessidade, desde esta construção “pura”, de partes processuais. Tudo se resume a buscar sinais do delito e fazê-lo dizer, mirando a extração de uma verdade histórica. A “bulimìa inquisitória”, empreendida, como dito, portava-se indiferente à qualquer limite legal, tinha apenas que multiplicar “i flussi verbali: bisogna che l´imputato parli; il processo diventa sonda psichica”.

Saliente-se que a assunção da expressão “estilo” dá-se em virtude de não conseguir ver minimamente a maneira inquisitorial como um verdadeiro processo. Ainda que não seja algo por si determinante na diferenciação entre “processo” acusatório e inquisitivo, ainda assim não se pode descuidar da importância do actus trium personarum. Assim se resolve o “processo” inquisitivo numa contraditio in terminis, pois não há um juiz imparcial e duas partes (parciais, é importante que se diga) enfrentando-se entre si. A essência do processo – se assim se queira – está na existência de um magistrado que não seja acusador ao mesmo tempo e que não transforme o acusado em objeto do procedimento. Portanto, da mesma forma, dizer-se “processo acusatório”, tornar-se um pleonasmo.

O auge da dinâmica inquisitiva é alcançada com o Code Louis XIV Ordonannance criminelle de 1670. Tal sistema fora visto como perfeito (e ao que se propunha, o era), enriquecido pelo tecnicismo inquisitivo, a sua obsessão chega a uma pureza quase metafísica. Este monumento do engenho inquisitorial, frise-se, era um modelo de partes: a ação pública competia aos procuradores do rei (Tit. III, art. 8): vê-se desde já o caráter secundário deste elemento de diferenciação quanto ao modelo acusatório.

Com a revolução francesa a antiga maquinaria experimentou algumas reformas, entretanto manteve-se a figura do juiz-ator, ou seja, a instrução seguia a lógica do magistrado trabalhando sozinho, fora de todo debate na elaboração da matéria processual, arquétipo este de fundamental influência nos modelos europeus continentais seguintes.

Mesmo que eliminada entre 1790 e 1800, a Ordenança Criminal Francesa é reencarnada em 1808 no Code d´instruction criminelle – Código Napoleônico, fonte que irão remontar os sistemas processuais do XIX e XX. Nomenclatura esta “instrução” que nada tinha referência ao debate diante de jurados, por exemplo, mas desenhava os atos realizados pelo juiz instrutor. Era o procedimento dividido em duas fases: instrução e debate; havendo, não obstante, uma escancarada desigualdade de peso efetivo entre elas. De um momento ao outro se passava da obscuridade à luz plena, da inquisição ao espetáculo acusatório, tudo isto travestido em aparente igualdade: “là um labirinto scritto e segreto, ‘tourné tout entier du côte’ degli interesse repressivi, come voleva l´Ordonnance; ‘ici tout est publicité, débats oraux, libre défense et pleine discussion’”.

Predominantemente inquisitivo na primeira fase: escrita, secreta, dominada pela acusação pública, excluída a participação do imputado e de sua defesa; com uma fase sucessiva de processamento oral, pública e adversativa, entretanto destinada a converter-se numa mera repetição da primeira etapa. Assim surgiram os monstruosos sistemas mistos compostos de larga instrução em perfeito estilo inquisitório; um preço razoável a ser pago pelos defensores da Ordonannance criminelle, pois os debates seriam até suportáveis em contrapartida à extensa restauração instrutória.

Para que se tenha delineamentos mais ou menos precisos, imperativo caracterizar o sistema inquisitório, enfim, como faz COUTINHO, fundamentalmente a partir da gestão da prova confiada ao magistrado – que amplamente vai ao encalço de todos os fatos mesmo que são colocados na acusação, guiado por sua visão particular do fato. Princípio este que desmarcara o ideário de um processo misto colocado pela dogmática tradicional. Não se pode falar em sistemas mistos, na medida em que todos hoje o são, em maior ou menor grau. O sistema de inspiração napoleônica foi a conjugação de outros dois, mas não possui um princípio reitor próprio – pois é primário que não pode haver um princípio misto –, não é um terceiro sistema, senão formalmente. “Os sistemas inquisitório e acusatório não podem conviver ‘não só porque a ‘contaminatio’ é irracional no plano lógico, como também porque a prática desaconselha uma comistão do gênero’”.

É o estilo acusatório que, em contrapartida, determina um espetáculo dialético, um combate aberto, com normas claramente referentes, sobretudo, aos tribunais. Opostas as tensões em luta, desde um jogo limpo com alternância de discursos, têm-se como valor único o respeito (ético) às regras do jogo numa operação técnica, no qual o processo deve ser insensível à sobrecarga ideológica, derivada da observação inquisitorial. Há, sim, um certo e necessário formalismo acusatório – invólucro do limite, da garantia à arbitrariedade –, já que se afasta o resultado obtido de qualquer modo: “quanto meno spazio occupa l´organo guidicante, tanto più pesano i riti”. Suma, o estilo acusatório implica controvérsia e inclusive as incentiva, enquanto o modo inquisitório possui automatismo perfeitos e nada fica ao acaso.

Em suma, ainda que não seja nosso propósito exaurir o tema acerca de ambos os modelos, o que deve ficar evidente é a opção, na esteira de FERRAJOLI, por uma determinada figura de juiz e de processo: um sistema processual acusatório em que se concebe um juiz como sujeito passivo rigidamente separado das partes, e um processo como uma contenda entre iguais, iniciada por uma acusação, sobre a qual recaia a carga da prova; um processo com contraditório, oral e público. Afasta-se, pois, de qualquer idéia de um processo penal que possua um magistrado que proceda de ofício, ainda mais quanto na busca e valorização da prova; construído desde uma instrução escrita e secreta, em que estão excluídos ou limitados o contraditório e o direito de defesa.

  1. “O Rei está nu e a sua Guarda está à beira de uma crise de nervos”: sobre o local de fala

Por certo que nenhum fragmento de saber jurídico-criminal pode se descolar de uma clara percepção de história. A esta altura já pôde ficar clara que se abdica radicalmente de ideários ‘a la Fukuyama’ de um “fim da história”. Pretende-se, sim, articular dos dois espíritos que têm pesado sobre nossa civilização: o ser e o devir. Frente a uma socialidade permanentemente excitada pela perspectiva de mudança e perplexa pela falta de estabilidade, os estilhaços estão postos e não há mais condições de buscar alguma narrativa salvadora. As exigências cotidianas gritam pela transposição destes planos – melhor – pela amálgama saudável entre o devir e o ser. O Primeiro é aquele que permite a crítica constante e a possibilidade de novas formas criativas, ou seja, jamais se fecha à irrupção do novo; já este proporciona a continuidade, dá a direção, leva a considerar sempre os pedaços do real que nos desafiam dia-a-dia.

Enfim, deve-se dar uma abertura na compreensão lingüística do outro, ou seja, ter uma consciência ético-crítica frente aos acontecimentos. E aqui não se está a se reeditar um debate estéril entre moderno e pós-moderno que apenas reproduz uma lógica linear que retoma às velhas periodizações da história cultural. Se há ou não ruptura, isso pouco importa, cabe aos “futurologistas” ou aos interessados daqui a algum tempo fazer uma análise retrospectiva. Futilidades que simplesmente esquecem de resolver a posição do agora… Tenta-se – desde um postura política de rechaço peremptório ao inumano e a partir da noção de um futuro aberto, afirmativo da vida – resistir e (re)escrever o saber jurídico, mormente o penal – que dentro de uma realidade conflitiva entre “O” ser atomizado (cidadão) e “Um” ente todo poderoso (Estado) ganha contornos de tragédia. Toma lugar privilegiado, assim, o processo penal com vida concreta e com sua dinâmica peculiar.

As opções e as referências são postas claras. O saber jurídico deve dizer-se a que serve. Ainda que se saiba das falácias de um sistema que se pretende harmônico e coerente, no quadro de uma Constituição republicana, cabe velar por mecanismos que proponham o poder de controlar, limitar, reduzir a força das agências jurídicas de criminalização. Longe se está de retornar à “ilusão da segurança jurídica” inerentes a um Estado Policial, entretanto se trata de defender uma resposta minimamente segura no quadro de um Estado Constitucional de Direito. Não se pretende ser politicamente neutro, mas definir de antemão desde um método construtivo e limitador aos impulsos arbitrários do poder de punir. Suma, o que se trouxe até aqui foi a necessidade de não se submeter à servidão de um Estado legal dogmático.

A deslegitimação do sistema penal é um dado da situação operativa inafastável e leva à consideração de que o poder punitivo é sempre exercido de modo irracional. Assim deve-se trabalhar com as diretrizes de um direito penal ético e garantidor assumindo plenamente esta realidade de poder. O Direito Penal, e desde sua realidade dinâmica – o processo penal, deve sim conviver, tragicamente, com os transbordamentos do Estado de Polícia (exceção) contido em cada Estado de Direito. Nas palavras de ZAFFARONI, BATISTA, SLOKAR e ALAGIA, deve-se programar o exercício do poder jurídico como um ‘dique’, levando-se em conta que os níveis das águas das arbitrariedades sempre os ultrapassam. Procura-se filtrar estas pulsões irracionais reduzindo os danos causados com uma “contra-pulsão jurídica” ao poder punitivo do Estado policial, ou seja, como um claro limite, presente nas sucessivas situações processuais. A postura do operador jurídico, não apenas do magistrado, deve estar ciente de seu caráter trágico, sempre resistindo ao poder punitivo.

“Se o poder punitivo é uma força irracional e o direito penal deve dar passagem somente àquela parte dela que menos comprometa a racionalidade do estado de direito, a seleção penal deve ser racional, para compensar – até onde puder – a violência seletiva irracional da torrente punitiva”.

É a pluralidade de atitudes, nos mais diversos momentos potencializados no acertamento caso penal, segundo a idéia de salvaguardar a jovem experiência do Estado Constitucional de Direito.

Assim, o discurso que se põe vai no sentido de construir um feixe de elementos que permita às agências jurídicas um exercício de contenção ao ilimitado, arrasador e estrutural poder punitivo estatal, com o cuidado de que o próprio discurso não ofereça argumentos puramente políticos, assistemáticos e conjunturais como em algum momento poderia aparentar as incipientes práticas alternativas vistas antes. Assim, devem se articular o máximo de dados de realidade que se possa angariar, longe dos “metafisicados homogenizantes” – se quiserem, chamemos de esfera do “ser” – com um discurso progressivamente redutor das violências punitivas com base nos princípios constitucionais e internacionais limitadores – âmbito programático do “devir”.

Entre destroços humanos e institucionais que ficam pelo caminho do sistema penal, entende-se que com o ideário de reduzir danos se estará minimizando o sofrimento produzido pelas mais diversas fontes de arbitrariedade do poder institucional, e se valoriza o que há de vital e construtivo sob a aparência de desumanidade.

Não se busca, de forma alguma, dar novo fôlego a nenhuma teoria da pena – empreender novo esforço na doentia tentativa de legitimá-la –, mas encará-la de maneira agnóstica. Por certo, deve-se retomar o debate do liberalismo penal interrompido pela “polícia positivista” – evidentemente não como uma (re)visita ao museu – contudo para extirpar o germe antiliberal do discurso. Há mais de um século já colocava TOBIAS BARRETO o caráter eminentemente político de qualquer conceito de pena, e em suas clássicas palavras: “quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.

Nega-se assim o viés declarado e não cumprido das inúmeras teorias de justificação da pena – “vizio ideológico” e “meta-etico”, pois é a pena uma manifestação fática afastada de qualquer fundamentação jurídica racional, fator que se agrava e contribui para a total deslegitimação do sistema penal, ainda mais quando tratamos da realidade latino-americana.

Enfim, traz-se novamente o papel do direito como limite da política, na medida em que o discurso penalístico se afasta da (re)condução/(re)legitimação de alguma teoria da pena, e como numa guerra, a programação deve obedecer uma estratégia de salvar vidas humanas, similar à tarefa da “Cruz Vermelha” que evidentemente não tem poder para acabar com os conflitos bélicos. Não mais uma teoria justificante do direito de punir, mas um apanhado teórico-normativo capaz de impor certos limites, com fins específicos de evitar mais sofrimento. Este deve ser o objetivo imediato das agências judiciais de acordo com um discurso que estabelece limites máximos de irracionalidade tolerável. Em certa medida esta será a tarefa do discurso jurídico-penal, mais especificamente quanto ao modelo processual penal de garantias.

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Para que não reiteremos exaustivamente as citações à obra, frise-se que o apanhado histórico feito aqui tem como fonte principal FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003. Ciente se está que quando Foucault refere “inquérito”, diz respeito ao procedimento inquisitorial, o que não afasta a grande contribuição para a análise relativa à construção deste saber policialesco que, sem dúvida alguma, transportou-se para o processo penal. Neste sentido, ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal, p. 497.

CORDERO. Franco. Guida alla procedura penale, p. 32. Apud COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coord.). Rio de janeiro: Renovar, 2001, p. 22.

FOUCAULT. Michel. A verdade e as formas jurídicas, p. 71.

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CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale, p. 51. Apud CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.18.

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CORDERO. Franco. Procedura penale, p. 333 e p. 373.

MONTERO AROCA, Juan. El Derecho Procesal en el Siglo XX. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 106-107. Em outro local ainda, MONTERO AROCA, Juan. Princípios del Proceso Penal: una explicación basada en la razón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 28-30.

CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale, p. 47. Por certo, novamente se diga, que não estamos a desdenhar o caráter essencial da separação entre juiz e acusação como um importante elemento constitutivo do modelo teórico acusatório, na medida em que representa a condição para a terzeità – imparcialidade – e é um pressuposto para que a carga da prova recaia sobre a acusação.

CORDERO. Franco. Procedura penale, p. 66.

Cf. MONTERO AROCA, Juan. El Derecho Procesal en el Siglo XX, p. 108-112.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal, p. 24.

Na experiência prática, hoje em dia ambos os modelos teóricos, acusatório e inquisitivo, por óbvio, nunca aparecem em estado puro, apenas mesclados com outros. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoria del Garantismo Penal, p. 564.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal, p. 39. É compreendida, segundo Cordero, a época do surgimento do processo misto como “garantismo criptoinquisitório”. CORDERO. Franco. Procedura penale, p. 284. Assim, para entendê-lo, faz-se mister observar o fato de que misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação por conta dos elementos (todos secundários, inclusive a existência de partes), que de um sistema são emprestados para o outro. Em nosso sistema, ainda que exista um arremedo de ônus da prova (art. 156 do Código de Processo Penal: “A prova da alegação caberá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução, ou antes de proferir a sentença, determinar de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”) é verdade e próprio que o juiz deve sair à cata da prova, denunciando o caráter inquisitorial do nosso sistema processual. Eis aí o núcleo do sistema, e a sua adequada forma de identificação: a gestão da prova. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Direito processual Penal Brasileiro. Revista de Estudos Criminais (01). Porto Alegre: !TEC/Nota Dez, 2001, p 29.

Para tal, imprescindível a análise de PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

CORDERO. Franco. Procedura penale, p. 99.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoria del Garantismo Penal, p. 564.

NEGRI, Antonio. Kairós, Alma Vênus e Multitudo: nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

BAUMER, Franklin. O Pensamento Europeu Moderno. Vol. I (séculos XVII e XVIII). Vila Nova de Gaia: Edições 70, 1990, p. 40.

LYOTARD, Jean-François. O Inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 33.

ANDRADE, Vera Regina. A Ilusão da Segurança Jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

BOÈTIE, com seu Discours de la Servitude Volontaire – redigido quando o autor tinha 18 anos de idade em 1548, e publicado completamente em 1557 – já colocava as raízes de uma acepção garantista do poder como tendentemente “mau”, referido no capítulo primeiro, na medida em que, submetido a um senhor, nunca se pode certificar completamente que seja “bom”, pois sua posição lhe possibilita ser “mau” quando quiser. O pior é que este “mau encontro” – nascimento do Estado – (que mau encontro foi este que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?) faz o homem esquecer que é livre, trata-se de uma servidão consentida, consente-se o seu “mal”, e o mais insensato que é Ele parece não mais senti-lo. BOÈTIE, Etienne la. Discurso da Servidão Voluntária. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp.16 e 19. Antecipando a decadência e a alienação, depois retomadas por pensadores como Nietzsche e Marx, é que o autor põe esta “questão trans-histórica” – pois escapa à tentativa de resguardar seu pensamento no seu século – de como o homem foi desnaturado, querendo, além de obedecer, servir e (mais) querer servir à “Um”. Assim, o amor cego à lei, ou se quiserem, o medo da liberdade, faz de cada um dos súditos um cúmplice do Príncipe: a obediência ao tirano exclui a amizade entre os súditos. CLASTRES, Pierre. Liberdade, Mau encontro, Inominável. O Discurso da Servidão Voluntária, p. 122.

A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias são características estruturais, não apenas esporádicas de qualquer sistema penal. Nas palavras de ZAFFARONI, diz-se que esta postura trata de uma referência teórica sincrética que se chama realismo marginal. Primeiramente, que renuncia a qualquer modelo ideal em virtude da urgência em se colocar em marcha a redução da violência punitiva, por outro lado, nunca perde de vista o nosso viés  – de país que passou por um simulacro de modernidade – que releva mais nitidamente as características estruturais  do sistema penal ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Renavan, 1991, p. 174. Já dentro deste local crítico (“a margem”), emergem algumas questões que devem ser examinadas e que são levantadas por MARTINS para que não haja muita imprecisão: não dará a pensar o facto de a presente optimação das margens, vertida na revalorização de algumas categorias periféricas (…), ser hoje promovida por esses mesmos centros? (MARTINS, Rui Cunha. A Fronteira Antes de sua Metáfora: Cinco Teses Sobre a Fronteira Hispano-Portuguesa no Século XV. Dissertação de Doutoramento em História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Coimbra: 2000, p. 441). Há que se atentar, como faz o autor português, que a própria crítica pós-moderna foi que permitiu que o “centro” fosse o primeiro a conscientizar-se de sua própria crise de centralidade, a aperceber-se do potencial de zonas de ensaio das “margens”. Quer dizer, em tempos de irrupção paradigmática, acaba por haver um (re)investimento, um reforço, e a cristalização das centralidades dominantes exatamente nas margens. É o paradoxo da demarcação emancipatória: o centro aprendeu a esconder-se nas fronteiras, quer travestido de margem, quer multiplicado numa pluralidade centros. (MARTINS, Rui Cunha. O paradoxo da demarcação emancipatória. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 59, fevereiro 2001, pp. 37-63.). Exatamente é o que deve se dar conta o discurso que se propõe marginal, ou mesmo de fronteira – aqui o discurso da transdisciplinariedade desempenha o mesmo papel como alternativa à “crise da ciência moderna”. Enfim, ver-se em que medida não se está a reincorporar o fantasma “normalizador” que se pretendia afugentar. Um olhar complexo impõe que se invista além das dicotomias, “centro” e “margem”, sob o preço de não se enxergar as influências e reciprocidades, bem como as contradições internas existentes no interior de cada um dos pólos; senão “nunca se perceberá que aquilo que serve parar oprimir também pode ser utilizado como instrumento libertador” (CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Lisboa: Quarteto Editora, 2004, p. 156).

ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal, p. 156.

Aqui a figura do trágico é trazida à tona, vez mais ressaltando sua atualidade indicadora, não atrelada à presença de “finais felizes” redentores e idealizados de sistemas totalitários, mas reveladores da limitação do humano e a humildade de suas empreitadas. Há que se estabelecer uma diferença básica, através de uma leitura psicanalítica, entre a compreensão nietzschiana do trágico (o pathos dionisíaco) e a compreensão negativa do trágico (o pathos dialético). Vias trágicas que expressam duas formas de se pensar o desejo. A moral da negatividade trágica diz que o desejo é falta. A ética da afirmação trágica pensa o desejo como vontade de poder. É a tese de BRUNO, desde DELEUZE, que coloca este “sim” afirmativo do “acaso”, como componente da construção de uma ética da produção da diferença: uma forma é a concepção negativa, que pressupõe uma releitura da tragédia à luz da dialética; a outra é a afirmação nietzschiana, dionisíaca, do trágico. Acreditamos que a ambigüidade da tragédia ática torna pertinente duas leituras. Trata-se de um confronto de interpretações que podemos nomear como o ‘sim contra o não’. De um modo simplificado, é, por um lado, o ‘sim’ da leitura de Nietzsche, propondo um conceito de trágico para além dos gregos, já que eles, com exceção de Heráclito, não foram suficientemente trágicos; por outro, o ‘não’ da dialética que estava presente no mundo grego e ganhou uma dimensão planetária a partir do ‘pathoscristão. BRUNO, Mário. Lacan e Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 215.

ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal, p. 162.

Ainda que a dogmática tradicional (Frederico Marques, Tourinho Filho, Ada Pellegrini Grinover, Hélio Tornaghi e outros) se incline para a o conceito de lide carnelutiana (conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida ou insatisfeita), com algumas alterações, difundida no Brasil por LIEBMAN no pós-guerra, como conteúdo do processo penal, dividimos o entendimento de COUTINHO que vê a jurisdição com função de fazer o acertamento do fato, e o processo é o meio que utiliza para concluir se o réu deve ser punido ou não. Caso penal que denota dúvida, incerteza quanto à aplicação da sanção. Foi ao sustentar a noção de lide, no início, que CARNELUTTI plantou a semente de uma malfadada Teoria Geral do Processo, na medida em que o processo penal passou a ser raciocinado desde uma natureza patrimonial, mercantil, enfim, civilista. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1989. “Por primário, não se há de construir uma teoria, muito menos geral, quando os referenciais semânticos são diferentes e, de conseqüência, não comportam um denominador comum. Pense-se apenas nos casos citados, ou seja, entre DPP e DPC o princípio unificador, o sistema e o conteúdo são distintos, resultando daí uma TGP plena de furos e equívocos, alguns intransponíveis, no DPP naturalmente. Urge, portanto, uma teoria geral do direito processual penal arredia à falta de ensancha da teoria geral do direito processual civil, pelo menos para poder-se ter uma base mais coerente no momento de uma reforma que pretenda não ser só de verniz”. COUTINHO, Jacinto. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às reformas processuais. Escritos de Direito e Processo Penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. WUNDERLICH, Alexandre. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 140.

Sem prejuízo do já escrito no capítulo primeiro e de um necessário aprofundamento da temática, o que se quer passar fundamentalmente é o sentido novo adquirido no Estado Constitucional de Direito, com características estruturais próprias, de inúmeros conceitos jurídicos básicos, que tomam vulto renovado ao serem (re)contextualizados. O fator constitucional, sim, impõe uma lógica diversa do então Estado Liberal que o precedeu; põem em cheque as estruturas legais oficiais oriundas de um pensamento descompassado que não encontra mais justificação senão naqueles retrógrados modelos herdados de sistemas totalitários. Por todos, ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Trotta, 1997, p. 09.

Cf. GUINDANI, Miriam. Violência e Prisão: Viagem em Busca de um Olhar Complexo. Tese de Doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Gradação da Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Porto Alegre: 2002.

“Il grande pericolo del ritorno al diritto penale liberale è quello di tornarvi dimenticando quei germi che esso conteneva: cosa che non va fatta. Assumiamo daí vecchi liberali i principi liberali, ma teniamo accuratamente da parte i germi di illiberalismo contenuti nelle loro teorizzazioni”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl, La rinascita del diritto penale liberale o la ‘Croce Rossa’giudiziaria. Le Ragioni del Garantismo: Discutendo con Luigi Ferrajoli. GIANFORMAGGIO, Letizia. Torino: Giappichelli, 1993, p 386. Em outras palavras, o que se deve evitar é o germe da ideologia da defesa social, nó teórico e político fundamental do sistema punitivo que passou a compor tanto a filosofia comum nas ciências jurídicas quanto às every day theories. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 2 ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos\Instituto Carioca de Criminologia, 1999, pp. 41-48.

Este é o ponto capital. O defeito das teorias usuais consiste justamente no erro ao considerar a pena como uma conseqüência do direito, logicamente fundamentada. BARRETO, Tobias. O fundamento do direito de punir. In: Menores e loucos. Obras Completas (t. V). Edição do Estado de Sergipe: 1926, p. 149 e p. 151.

FERRAJOLI, Luigi. Note Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su Diritto e Ragione. In: Le Ragioni del Garantismo: Discutendo con Luigi Ferrajoli, pp. 498-499. Não apenas possuem um vício ideológico e meta-ético, mas antes há uma pura confusão entre os esquemas de explicação de porque se aplicam as penas (porque existe a pena?), com os modelos normativos de justificação (porque deve existir a pena?), ou seja, a assunção da explicação como justificativa e vice-versa. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoria del Garantismo Penal, pp. 324- 328.

SILVA FILHO, José Carlos da. Da ‘Invasão’ da América aos Sistemas Penais de Hoje: o discurso da ‘inferioridade’ latino-americana. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Notadez⁄!TEC, Nº 7, 2002, pp. 103-135. Neste sentido, conferir BERGALLI. Roberto. Fallacia garantista nella cultura giuridico-penale di lingua ispanica. Le Ragioni del Garantismo: Discutendo con Luigi Ferrajoli. GIANFORMAGGIO, Letizia. Torino: Giappichelli, 1993, pp. 191- 198.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, La rinascita del diritto penale liberale o la ‘Croce Rossa’giudiziaria, p 393.

CARVALHO, Salo de. Teoria Agnóstica da Pena: O Modelo Garantista de Limitação do Poder Punitivo. Crítica à Execução Penal: Doutrina, Jurisprudência e Projetos Legislativos. CARVALHO, Salo de (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 30.