O “pensamento brasileiro” e o bacharelismo: uma revisão conceitual do fenômeno bacharelístico

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 14 – Janeiro/Junho 2012

O “pensamento brasileiro” e o bacharelismo: uma revisão conceitual do fenômeno bacharelístico

The “Brazilian thought” and bachelorism: a conceptual review of the bacheloristic phenomenon

Ricardo Prestes Pazello – Professor de Antropologia Jurídica na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutorando em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Pesquisador do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL/UFPR) e do grupo de pesquisa Direito, Sociedade e Cultura (FDV/ES). Integrante do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), do Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani (Santos-Milani) e do Instituto de Filosofia da Libertação (IFiL). Colunista do blog assessoriajuridicapopular.blogspot.com

E-mail: ricardo2p@ufpr.br

Resumo: O presente ensaio insere-se na tentativa de buscar uma revisão conceitual do fenômeno do bacharelismo. Tal análise vincula-se ao que se propôs chamar de “pensamento brasileiro”, expressão que tem por fito dimensionar uma dada parcela da literatura brasileira que é tida como intérprete de sua realidade. Repisando áreas transdisciplinares do conhecimento, o que se chamou de “pensamento brasileiro” recorre à história, à sociologia, à filosofia e, entre outros, ao direito. Entrementes, o trabalho caracterizou-se primordialmente pela análise do que se costumou chamar na literatura historiográfica, mesmo a jurídica, de fenômeno do “bacharelismo”, buscando articular as suas análises com a intenção de realizar a crítica de sua formulação como estereótipo ou fetiche.

Sumário: 1. Prolegômenos; 2. “Pensamento brasileiro”: contexto e pressuposto; 2.1. Um Brasil pela raiz; 2.2. A voz dos donos e os donos do poder; 3. O bacharelismo: entre o fetiche e o estereótipo; 4. Fontes bibliográficas

Palavras-chave: Pensamento Brasileiro; Bacharelismo; Pensamento Jurídico Brasileiro; Crítica Jurídica.

Abstract: This essay is part of an attempt to find a conceptual review of the bacheloristic phenomenon. This analysis is linked to what is proposed to call “Brazilian thought” which aim is to scale a given parcel of Brazilian literature that is taken as an interpreter of its reality. Returning disciplinary areas of knowledge, that is called “Brazilian thought” refers to the History, Sociology, Philosophy and, among others, Law. Thus, this paper was characterized primarily by the analysis of what is named, in historiographical literature, even legal, bacheloristic phenomenon, seeking to articulate their analysis with the intention to make the criticism of its formulation as a stereotype or fetish.

Key-Words: Brazilian Thought; Bachelorism; Brazilian Legal Thought; Critic of Law.

 

  1. Prolegômenos

O direito brasileiro não pode se ressentir de seu passado. A história o constitui e como tal não deve ser olvidada. Assim como para um povo é fulcral o conhecimento de sua origem e caminho pelos tempos, para o direito – igualmente integrante da história de um povo – o desvelar contínuo e corajoso do que se passou tem de significar um desiderato sempre a se promover. Não totalmente desprovido de razão, Caio Prado Júnior diria que “todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‘sentido’”.[1] Assim introduz ele sua obra principal, ainda que possa ser alvo de críticas quanto a sua concepção de projeto histórico. No entanto, parece que, à distância, sim, há um certo “sentido” na história. E pode haver não como um projeto objetivamente lapidado, mas como algo que flui e ao fazê-lo provoca conseqüências, experimentos, quotidianidades.

Sendo assim, como ignorar o fato de que em terras brasileiras, “em que se plantando tudo dá”, germinou-se um direito desligado das aspirações populares e voltado para as elites políticas e econômicas? É inegável a constatação de que “a trajetória de nossas instituições jurídicas fundadas numa cultura liberal-individualista e numa tradição patrimonialista, estatal e formalista” determinou o tolhimento de múltiplas formas de se conhecer o direito, de se resolver os problemas de acordo com a diversidade inerente às populações que aqui viveram e que aqui chegaram, de tal modo a sacralizar “o modelo unitário, restritivo e alienígena”.[2]

Há, contudo, de se verificar que a despeito de o Brasil – e sem dúvida toda a América Latina – ter nascido a fórceps para a civilização ocidental moderna,[3] sua história não foi unívoca, dicotômica, homogênea. Tampouco se pode crer que, pelo fato de ter havido uma violência originária em sua constituição, é necessário riscá-la dos antecedentes históricos do hoje. Não. O mister contemporâneo é superar as limitações, as agonias, as opressões que soem vicejar, e uma das ferramentas mais versáteis para tanto é o conhecimento histórico, cuja função mais premente é auscultar o inaudível para apropriadamente transformá-lo.

É nessa perspectiva que este trabalho pretende se construir. Seu objeto é analisar o fenômeno jurídico do bacharelismo, desde uma revisão conceitual inserida na história. Assim, não bastará uma análise dos textos nacionais clássicos acerca do tema, notadamente as obras de Alberto Venâncio Filho e Sérgio Adorno, mas será igualmente preciso imiscuir na discussão contextualização histórica que permita antever os aspectos relevantes que condicionam seu exame. Tal abordagem se preocupará, em um primeiro momento, em abordar a existência do que aqui se denominou “pensamento brasileiro”. Representam-no, para os fins cá postos, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro.

Ao se ver que há quem, ainda hoje, precisa admoestar o “jurista atual”, a fim de que ele não se perca em um acriticismo contumaz, em um nefando modo de encarar a realidade, reduzido à interpretação de textos legais e de uma história institucionalizada, consegue-se entender o quão importante se mostra verificar o comportamento do “jurista do passado”, pois o resgate que se impõe ao direito passa por

“um resgate, todavia, que se poderá conseguir plenamente somente se se enrobustecer a nossa consciência crítica e, em vista desse enrobustecimento, consigamos colocarmo-nos num observatório liberado de crenças indiscutíveis e das liturgias culturais que desembocam naqueles lugares comuns que são o pântano asfixiante de todo homem de cultura. Em outras palavras (…), se se fizer aquele banho epistemológico que o jurista mais desperto sem dúvida começou a fazer, mas que deve se estender à sonolenta maioria silenciosa ainda imersa numa cômoda preguiça”.[4]

Eis então o propósito de se enfrentar o problema, já não mais meramente acadêmico, do bacharelismo brasileiro, o qual ganha relevância ao se observar que a inovação epistemológica ou a postura crítica não se fazem meramente a partir dos discursos, vez que suas práticas se encontram sobejamente arraigadas nas velhas maneiras de se manejar o direito. Contudo, a suprassunção dialética de um novo momento para os bacharéis de hoje não cabe na visão estereotipada do bacharelismo imperial e tampouco logrará êxito com a percepção enviesada pela fetichização da atividade dos juristas de ontem.

  1. “Pensamento brasileiro”: contexto e pressuposto

Como já se ressaltou, a pesquisa partirá de um referencial próprio, o “pensamento brasileiro”. Elegeu-se, para sua problematização, Sérgio Buarque de Holanda, com seu “Raízes do Brasil” e Raymundo Faoro, com seu “Os donos do poder”, devendo-se a este acrescentar uma obra de cunho metodológico, qual seja, “Existe um pensamento político brasileiro?”.

Já Antônio Cândido referira-se à tríade histórica que, juntamente com Faoro, serve de parâmetro para se refletir acerca de um “pensamento brasileiro”. São palavras do historiador e crítico literário:

“Os homens que estão hoje um pouco para cá ou um pouco para lá dos cinqüenta anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de passado e em função de três livros: Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, publicado quando estávamos na escola superior. São estes os livros que poderemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”.[5]

Hoje, mais de quarenta anos depois do que disse Cândido (o texto é de 1967), considera-se como iniludíveis suas palavras. A experiência no ensino superior, na faculdade de direito, leva à preocupação no tocante ao que significa ser bacharel causídico; mas sobretudo viver no Brasil, Brasil latino-americano que precisa se voltar para os seus, constitui tarefa crítica cuja maior exigência é a de não se amesquinhar nos tradicionais padrões científicos. Apesar de já não tão radicais, e mesmo criticáveis, os integrantes da tríade servem como exemplo e apontam para a necessidade de contínua interpretação do nacional para que o passado reste como modelo (muitas das vezes, talvez a maior parte delas, modelo que não se deve repetir) e apresente-se como conhecimento de si mesmo, muito mais que formação de identidade nacional, mas como símbolo de coesão e convergência para um futuro que seja capaz de unir na diversidade.

2.1. Um Brasil pela raiz

O primeiro dos intérpretes nacionais a aqui figurar de forma protagonista é Sérgio Buarque de Holanda.  O livro de 1936, alterado pela proficiência científica do autor no decurso dos anos, aproveita-se como exegese consolidadora de uma temática que seria reincidente na esfera da história do direito. Faz-se referência ao “bacharelismo”, muito próprio de um país em que a educação de nível superior medrou como privilégio das classes sociais dominantes, sendo, inclusive e por muito tempo, o curso de direito o único e principal para a formação da burocracia estatal.

Em um capítulo denominado “Novos Tempos”, Sérgio Buarque examinou a questão do bacharel. Antes, porém, e seguindo o título de seu livro, procurou a gênese da formação do brasileiro, o que iria desembocar naquela década de trinta, à qual já se referiu. A busca pela interpretação do atual, acorreu a Sérgio Buarque e aos outros partindo-se do passado. O livro “Raízes do Brasil” parte das fronteiras com a Europa, de um suposto achamento, mais pertinente com a idéia de conquista, de uma colonização exploradora, enquistada que esteve no latifúndio, na monocultura e na escravidão. É de lá que a herança portuguesa logra se fixar nas terras do além-mar brasileiro. A análise quase que weberiana de Sérgio Buarque leva a compreender a índole “aventureira” e “semeadora” do colonizador português, deixando como espólio uma sociedade rural voltada para a dicotomização do trabalho manual ante o intelectual, e fazendo crer de nosso imo um tanto quanto cordial, cordial ao ponto de se fazer eclético e conciliador ao extremo.[6]

Sendo este o contexto, o tema do bacharelismo aparecerá como estertor de uma sociedade já patrimonialista e altamente concentrada de rendas e saberes. De acordo com Sérgio Buarque, no Brasil o positivismo – dogmático – obteve grande sucesso. Os seguidores de Comte criam no triunfo das novas idéias. Negavam, porém, de todo, a realidade brasileira, chegando Benjamin Constant, “fundador” de nossa república e de sugestivo nome, a desprezar a política nacional. Foram, por um tempo, a aristocracia do pensamento brasileiro.  

No Brasil, costumou-se sempre importar preceitos e os fazer adequar a uma realidade que não lhes era cabível, para sustentar privilégios. Eis o exemplo da democracia que, no máximo, serviu para aniquilar uma autoridade incômoda. Os movimentos pretensamente reformistas se deram de cima para baixo (independência, república), foram das minorias, elites, nada dizendo ao povo. A aristocracia nacional passou de agrária para citadina; das grandes senhorias às citações livrescas. Esqueceu-se a quotidianidade e passou-se à dedicação da escrita, da retórica, da gramática e do direito formal. Dom Pedro II foi um exemplo disso.[7] O aristocratismo foi preservado por meio da imaginação cultivada, leituras francesas, presunção, alheamento do mundo, erudição formal, teorias estrangeiras e concepções simplistas da vida (que não exigissem grande esforço mental). Há, então, o ressaltar de uma das características do intelectual brasileiro: seu pensamento simplista, sua preguiça de pensar. É o caso da miragem da alfabetização em massa. Segundo alguns, seria a redenção nacional, nos moldes dos Estados Unidos da América do Norte, o Brasil se tornaria das maiores potências do mundo, o que, de fato, por si só, não quer dizer nada mais que alfabetização em massa. Assim, de acordo com Sérgio Buarque, as panacéias brasileiras, no fundo, representam um desencanto com a nação, suas condições reais. Só se construindo um país, novo, nos moldes do que foi pensado fora, é que haveria solução, na visão do aristocrata intelectual tupiniquim.[8]

Por trás deste cenário se encontra, no entanto, uma característica peculiar do brasileiro, qual seja, o cultivo do individualismo: “ainda no vício do bacharelismo ostenta-se também nossa tendência para exaltar acima de tudo a personalidade individual como valor próprio, superior às contingências”.[9] O brasileiro, aqui, é visto de uma forma generalizada, muito mais voltado para os setores sociais bastante próximos às esferas de poder. Estariam imbuídos, entrementes, no culto à personalidade; raramente se dedicando a objetos exteriores. Avessos à morosidade, à monotonia, bem como à disciplina. Daí as atividades liberais comprazerem-nos, por serem um acidente ao indivíduo, e não um fim, como uma carreira a ser seguida. Nesse sentido, afirma Sérgio Buarque de Holanda: “ainda hoje são raros, no Brasil, os médicos, advogados, engenheiros, jornalistas, professores, funcionários que se limitem a ser homens de sua profissão”.[10] O bacharelismo, pois, serve ao culto da personalidade, degringolando o horror ao fatigante. Aqui ele reinou como soeu ocorrer com os Estados Unidos, à Independência:

“poucas terras, por exemplo, parecem ter sido tão infestadas pela ‘praga do bacharelismo’ quanto o foram os Estados Unidos, durante os anos que se seguiram à guerra da independência: é notória a importância que tiveram os graduates na Nova Inglaterra, apesar de todas as prevenções do puritanismo contra os legistas, que à lei do Senhor pareciam querer sobrepor as simples leis humanas. (…) advogados de profissão foram em sua maioria os membros da Convenção de Filadélfia”.[11]

Ou com Portugal: “em quase todas as épocas da história portuguesa uma carta de bacharel valeu quase tanto como uma carta de recomendação nas pretensões a altos cargos públicos”.[12]

A respeito de Portugal, inclusive, cabe ressaltar o fato de que um jovem brasileiro do século 18 que, indo graduar-se em terras lusitanas, na tradicional Universidade de Coimbra, no curso de medicina, escreveu um panegírico às avessas a Portugal, um poema ressaltando que a Estupidez, expulsa do continente europeu onde reinava, procurava nova sede e a encontrou nas plagas lusas. Ao poema, vocativo do poeta, exorta:

“dize somente que o fruto que daqui levam os legistas é a pedanteria, a vaidade e a indisposição de jamais saberem. Enfarinhados unicamente em quatro petas de Direito Romano, não sabem nem o Direito Pátrio, nem o Público, nem o das Gentes, nem Política, nem Comércio, finalmente, nada útil. Que os Canonistas saem daqui com o cérebro entumecido (sic) com tanto Direito de Graciano, sem crítica, sem método, engolindo, com alguns verdadeiros, imensos Cânones apócrifos, dando ao Papa, a torto e a direito, poderes que lhe não competem por título nenhum e desbulhando os Reis dos que por Direito da Monarquia lhes são devidos. Com estes não te abras mais, e acrescenta só que é melhor morar em uma casa vazia do que em uma cheia de trastes velhos e desconcertados, onde reina a desordem, a confusão e a imundície”.[13]

Apesar de longa, vale a pena a citação por sua ferina graça.

2.2. A voz dos donos e os donos do poder

Na outra ponta da lança, encontra-se como base a obra de Raymundo Faoro. Primeiramente, o de “Existe um pensamento político brasileiro?”; em seguida, o de “Os donos do poder”. Já não mais um autor da clássica tríade, tendo sido, todavia, premiado em 1959 pela Academia Brasileira de Letras por sua primeira versão de “Os donos do poder”, Faoro possibilitará a ponte para se pensar o invólucro sócio-histórico brasileiro, o qual perpassa o tema do bacharelismo.

Em rápidas linhas, pode-se situar a problemática do pensamento político brasileiro, na versão de Faoro. Do legado português, ter-se-ía constituído uma forma bastante própria de se pensar o nacional: a partir do estado. Não à-toa a existência de movimentos separatistas por todo o período colonial desembocar numa pacificação, em prol da manutenção das fronteiras. O estado, ente além-continental, a não bastar ter destroçado os habitantes originais de nosso território, ter espoliado o negro de sua terra, vinculou uma forma burocratizada de se pensar a nação. O próprio período imperial revelaria isso, com as incursões de Duque de Caxias para a manutenção das bordas brasileiras.

Reduzindo um tanto a problematização de Faoro em “Existe um pensamento político brasileiro?”, pode-se encontrá-la no cerne do que ele chamou de “duas rotas”. Trata-se do liberalismo ante uma possível visão democrática.

“O elemento nacional compõe a corrente emancipacionista, larvarmente nativista, preso à crise colonial. (…) O elemento nacional está no sentido certo: não se trata de um pensamento nacional, de um país como Nação, mas como núcleos não homogêneos, com um projeto – apenas como projeto – nacional. As circunstâncias – a dissolução do sistema colonial – teriam configurado as bases de uma consciência histórica, estamental e virtualmente de classe, sem que se possa configurar uma situação revolucionária, pelo menos no seu momento inicial, pela ausência de projeto”.[14]

Com a chegada da família real, em 1808, e a conseqüente abertura dos portos, a causa liberal se desliga da nacional. Os interesses econômicos suspendem-se e falam mais alto. No entanto, a emancipação política teria de ser corolário lógico, a despeito de economicamente manter-se o país agrilhoado aos grandes centros europeus. A estrutura colonial totalmente abalada faria surgir um estado com propensões ao absolutismo, mas com um liberalismo de fachada, concernente às elites, diga-se de passagem, muito afeitas ao modo escravista de produção.

Por fim, entretanto, a conclusão a que se poderia chegar é a de que o liberalismo foi muito mais uma tática para o absolutismo do que uma transição para o modelo que hoje se conhece como social-democrata. Não se trataria de democracia e sim de burocracia.

“A ossificação do modelo liberal, o absolutismo mascarado de D. João VI e de D. Pedro I, pela voz de seus intérpretes, soldado ao liberalismo restaurados, desclassificou todas as concepções liberais autenticamente liberais. O constitucionalismo, que se apresentou como o sinônimo do liberalismo, seguiu rumo específico, particularmente na Carta outorgada de 1824. O ciclo se fecha: o absolutismo reformista assume, com o rótulo, o liberalismo vigente, oficial, o qual, em nome do liberalismo, desqualificou os liberais. Os liberais do ciclo emancipador foram banidos da história das liberdades, qualificados de exaltados, de extremados, de quiméricos, teóricos e metafísicos”.[15]

Apesar de não ser essa a temática do trabalho, mostra-se interessante resgatar tais visões, para que as épocas das quais se trata não se esvaiam em inconcretudes diversas. Por mais meta-discursiva que se apresente a argumentação – ao se tratar de um pensamento brasileiro que pensou o pensamento brasileiro – enfrenta-se o risco das redundâncias para chegar, com suficiente arcabouço, ao escopo maior da compreensão histórico-jurídica do bacharelismo.

Adentrando em outras sendas faorianas, as de “Os donos do poder”, percebe-se que em sua visão aplaina o estado brasileiro uma camada político-social: o estamento burocrático. O estado é maior que a nação. O povo só o pode ver quando de circunstanciais eleições e quotidianos impostos. A escola, por sua vez, serve à burocracia:

“o bacharel, o pré-juiz, o pré-promotor, o pré-empregado, a véspera do deputado, senador e ministro, não criam a ordem social e política, mas são seu filho legítimo. O sistema prepara escolas para gerar letrados e bacharéis, necessários à burocracia, regulando a educação de acordo com suas exigências sociais”.[16]

Segundo Faoro, desde colonização isto já se dera, com os “bacharéis” de outrora, os jesuítas, prontos a dar seu tom cultista e conceptista a sua catequese.  Assim,

“o caminho da nobilitação passava pela escola, pelos casarões dos jesuítas, pela solene Coimbra ou pelos acanhados edifícios de Olinda, São Paulo e Recife. O alvo seria o emprego e, por via dele, a carruagem do estamento burocrático, num processo de valorização social decorrente do prestígio do mando político. Educação inútil para a agricultura, talvez nociva ao infundir ao titular o desdém pela enxada e pelas mãos sujas da terra, mas adequadas ao cargo, chave do governo e da administração. Os jovens retóricos, hábeis no latim, bem falantes, argutos para o sofisma, atentos às novidades das livrarias de Paris e Londres, com a frase de Pitt, Gladstone e Disraeli bem decorada, fascinados pelos argumentos de Guizot e Thiers, em dia com os financistas europeus, tímidos na imaginação criadora e vergados ao peso das lições sem crítica, fazem, educados, polidos, bem vestidos, a matéria-prima do parlamento. Olhados à distância terão o ar ridículo dos velhos retratos, com os versos finos dedicados a musas e damas mal alfabetizadas. Falta-lhes a voz áspera, o tom rude, a energia nativa dos colonos norte-americanos e dos políticos platinos, menos obedientes ao estilo europeu, mais homens, menos artistas e mais dotados do encanto poético”.[17]

A longa descrição tem seu sentido. Mostra o autor uma caricatura que ficaria para a posteridade. Vistos à distância do tempo os bacharéis de outrora parecem, sim, ridículos, mas não menos ridículos apresentam-se os que se “bacharelizaram” hodiernamente, regurgitando profusamente a “doutrina” européia mais em moda, com a perspectiva neoliberal que lhe subjaz.

Continua Faoro, demonstrando que o serviço público é a caça maior do bacharel. Destarte, um patronato, o qual significa aparelhamento para expansão e sustentação da aristocracia nacional. Aristocracia burocratizada, é claro, na qual o “poder é o poder, como Jeová é o que é”[18]. Sendo, então, a forma estamental, seu conteúdo é patrimonialista. Os cofres públicos devem estar cheios para servir aos interesses pessoais, na compra das graças. No senado vitalício, o comando; na câmara eleita, uma confraria de pedintes. O povo, inibido, sente que o estado não é ele; o povo, impedido, pois a elite diz não ter o povo capacidade de autogovernar-se ou governar-se democraticamente. E por quê? Porque o sistema não lhe permite a participação, decretando-se um inexpugnável círculo vicioso.

Este é, enfim, o panorama que se nos apresenta, dentro do contexto do que se denominou “pensamento brasileiro”, bem como de sua adoção como pressuposto metodológico, a partir do qual se visualizará a temática do bacharelismo, já esboçada nas perspectivas de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. A despeito de imperar em suas perspectivas tom um tanto quanto negativista e caricaturizador da figura do bacharel, preconceitução da qual se pretende afastar, afiguram-se referidos autores como o conjunto embasador de uma interpretação própria, uma interpretação do Brasil.

  1. O bacharelismo: entre o fetiche e o estereótipo

A partir de agora, tendo em vista os lineamentos previamente estipulados, o objetivo será o de enveredar-se pelos caminhos que se fizeram ao longo da discussão do bacharelismo[19] jurídico brasileiro, em especial o discutido da década de 1970 para cá. Constituem-se, assim, como fontes indispensáveis desta análise os livros de Alberto Venâncio Filho, “Das arcadas ao bacharelismo”, de 1977, e de Sérgio Adorno, “Os aprendizes do poder”, de 1988. Ambos, com proficiência, analisam a questão do bacharelismo sob uma angulação que tende a desvalorizar o ensino jurídico nacional, em seus primeiros arroubos institucionais. É por isso que se trará à discussão opinião diversa, soando como contraponto a uma tal perspectiva, a partir da que buscaremos re-conceituar, ou melhor – para fugirmos da pedanteria que envolve uma conceituação deste porte –, definir de modo mais sereno o que se quer dizer com o fenômeno do bacharelismo tupiniquim.

Em primeiro lugar, porém, é preciso filiar-se ao entendimento que considera o fenômeno jurídico brasileiro como

“o conjunto de padrões e significados que circulavam e prevaleciam nas instituições jurídicas brasileiras do Império (faculdades, institutos profissionais de advogados e magistrados, o foro, e, em alguns casos, no parlamento), e que atribuíam uma tipicidade ao direito brasileiro. A cultura jurídica brasileira é um fato histórico antropológico que se dá a partir dos elementos (humanos, doutrinais, sociais, econômicos, etc.) presentes na sociedade brasileira desta época e dentro de aparatos institucionais localizáveis dentro das vicissitudes históricas brasileiras”.[20]

Assim sendo, soa incompatível uma análise que procure desqualificar o pensamento jurídico brasileiro por sua índole macaqueadora que, mesmo que assim se apresente, afigura-se como fato histórico digno de reflexão, tanto por ser constituinte, por assim dizer, genético do que hoje se proclama no âmbito das letras jurídicas nacionais, quanto por ter possuído influência sobre a população brasileira da época imperial, a qual não deixa de ser menos população brasileira por conta do importacionismo jurídico daqueles tempos. Desse modo, objetar pela índole imitadora do direito brasileiro em sua história não pode representar a desfaçatez de esquecê-la e dizer que história jurídica só há no prelo do direito europeu continental ou insular.

Partindo-se de Alberto Venâncio Filho, tem-se que o Império do Brasil só conheceu duas faculdades de direito: a de São Paulo e a de Olinda, posteriormente, de Recife. Muitos, porém, foram os seus problemas: desde as instalações até os quadros docente e discente. A vida acadêmica dos estudantes teria servido grandemente como ante-sala para o parlamento. O jornalismo, o teatro, a política, a literatura, as sociedades secretas, a música e os novos ideários permeavam-lhes o quotidiano. Em especial, na literatura, tem-se a influência enorme do Romantismo, que fez parir das mais importantes personagens das letras nacionais, tais como Álvares de Azevedo, Castro Alves, Fagundes Varela, José de Alencar, Tobias Barreto, entre outros. É interessante a este respeito mencionar a

“predestinação que levou mais tarde a Faculdade de Direito de São Paulo a inscrever no frontispício de suas arcadas não o nome de três jurisconsultos, mas o nome de três poetas: Álvares de Azevedo, Castro Alves e Fagundes Varela. É também uma singular coincidência que nenhum dos três poetas consiga completar o curso jurídico, morrendo com os estudos ainda incompletos”.[21]

Pode-se observar, inclusive, que o papel da literatura foi fulcral para a formação do bacharel à época do Império.

O primeiro dos três nomes inscritos nas arcadas de São Francisco, Álvares de Azevedo, talvez o maior baironiano brasileiro, poeta paradigmático do mal-do-século, tinha como temática contínua de sua poesia a boemia, o que demonstra que o novo clima, cultural por excelência para aqueles jovens recém-saídos do lar paterno, envolvia-lhes numa nova atmosfera, da qual a pueril ciência do direito tupiniquim não dava conta:

“PUFF

Ceei à farta
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras.
Faço o quilo; ao repouso me abandono.
Como o Papa Alexandre ou como um Turco,
Me entrego ao far niente e bem a gosto
Descanso na calçada imaginando.

NÍNI

Embalde quis dormir. Na minha mente
Fermenta um mundo novo que desperta.
Escuta, Puff: eu sinto no meu crânio
Como em seio de mãe um feto vivo.
Na minha insônia vela o pensamento.
Os poetas passados e futuros
Vou todos ofuscar… Aqui no cérebro
Tenho um grande poema. Hei de escrevê-lo,
É certa a glória minha!

PUFF

A idéia é boa:
Toma dez bebedeiras – são dez cantos.
Quanto a mim tenho fé que a poesia
Dorme dentro do vinho. Os bons poetas
Para ser imortais beberam muito.”[22]

Por seu turno, Castro Alves, também poeta romântico, mas já da geração conhecida pela grandiloqüência condoreirista e pelo engajamento político, sendo cognominado de “O Poeta dos Escravos”, devido a sua luta abolicionista, demonstra satiricamente seu descontentamento pelo conhecimento manualesco, o que já denota uma forma de ensino, e seu deslumbre pela vida boêmia na qual eram inseridos os estudantes da faculdade de direito:

”Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua,
Ladram de tédio vinte cães vadios.

Nini formosa! por que assim fugiste?
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vês?… Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.

A passos largos eu percorro a sala
Fumo um cigarro, que filei na escola
Tudo no quarto de Nini me fala
Embalde fumo… tudo aqui me amola.
(…)
Pego o compêndio… inspiração sublime
P’ra adormecer… inquietações tamanhas…
Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação… de aranhas…”[23]

 

Outro gênio literário da época, Fagundes Varela, conhecido pelo seu tristíssimo “Cântico do Calvário”, em louvor a seu filho morto em tragédia pessoal, também pode bem demonstrar os afazeres múltiplos da época, com relação ao jornalismo, atividade a qual é sobejamente citada pelos intérpretes do bacharelismo como das funções que mais formavam o estudante de direito.[24] Declamava o poeta, em ode à imprensa:

“Não impunhas a espada, não manejas

A pesada espingarda,

Não derramas o sangue nas pelejas,

Não vestes uma farda.

 

Combates no terreno da verdade,

Mas então peito a peito;

Plantas o pavilhão da liberdade

Nas raias do direito.

(…)

Respeitam-te as nações, o povo opresso

A ti os olhos ergue,

Santa imagem da glória e do progresso,

Filha de Gutemberg!

 

Se os mandões o erro e a cobiça

Procuram te abafar,

Ergues o gládio heróico da justiça,

Triunfas sem lutar!

(…)

Protetora do gênio e da ciência,

De quanto sente e pensa!

Da humanidade eterna consciência,

Salve, divina Imprensa!”[25]

Ainda na seara dos grandes nomes da literatura nacional, parece impossível não mencionar José de Alencar, um dos ícones da prosa romântica brasileira, mas que teve sua formação em direito e boa parte de sua vida dedicada à política. Deveras interessante é uma de suas obras jurídicas, intitulada “A Propriedade”, na qual discorre o autor de “O Guarani” acerca dos direitos reais em geral. É um manual, mas nem por isso deixa de possuir um tom inegavelmente literário. Em uma das passagens, após discorrer longamente sobre a divisão entre direitos reais e obrigacionais (matéria mui pertinente até hoje entre os civilistas), assevera que inconsistências há, inúmeras, nas demasiadas classificações e ficções jurídicas.

“Nessa escala vai a lei civil e a sciencia descendo de degráo em degráo até a extrema baixeza. Ahi forçada pela força irresistivel da verdade, compellida pelos interesses rebeldes que á sombra della se foram gerando é arrastada á um dedalo inextricavel de contradicções e absurdos onde se perdem os mais vigorosos e possantes engenhos.

         De balde tenta ella assumir alguma vez a eminencia que lhe compete; não o conseguirá emquanto tiver a base de argilla como a estatua de Minos”.[26]

Nome que não pode restar esquecido é o de Tobias Barreto. De cariz liberal, Tobias Barreto foi das maiores figuras do direito pátrio. Contra o positivismo e o evolucionismo spenceriano, ele praticamente inicia uma tradição filosófica que dá vazão a “uma abertura de horizontes, uma entrada de novos ares e, sobretudo, a atualização da cultura do país com as grandes correntes do pensamento moderno, libertada do exclusivismo da cultura portuguesa”.[27] Abertura esta, porém, condicionada à demasiada influência alemã, sendo que a Escola do Recife, como ficou conhecido seu movimento, também foi ironicamente chamada de Escola teuto-sergipana ou Escola de Tobias. Para demonstrar sua insatisfação com as condições sociais brasileiras,[28] tentou fundar um Clube Popular cujo destino foi ter fracassado, sem porém ter se esvaído sua concepção originária, como se relata a seguir:

“O Clube Popular Escadense, meus senhores, não nutre a pretensão, que seria rídicula, de vir levantar um dique de resistência contra a corrente de tantos males, cujo ligeiro esboço acabo de fazer; mas tem o intuito de incutir no povo desta localidade um mais vivo sentimento do seu valor, de despertar-lhe a indignação contra os opressores e o entusiasmo pelos oprimidos. E há momento, já disse com razão alguém, há momentos, em que o entusiasmo também tem o direito de resolver questões…”[29]

Percebe-se, de pronto, que, conforme a crítica a Sérgio Adorno,

“não parece um procedimento adequado, por isso, separar o conhecimento do jurista do século XIX do conteúdo de oralidade de que ele se revestia, procurando-se, obviamente em vão, a ‘produção de conhecimento’ do jurista como se ele fosse um cientista acadêmico do século XX. Igualmente não parece adequado o procedimento de Adorno em separar o saber do jurista deste período do saber literário e retórico (sobretudo da cultura clássica), como também, enfim, não parece adequado separar a prática do jurista da sua atividade política e jornalística. Tudo isso formava uma unidade, que constituía a própria identidade do homem das letras jurídicas do século XIX. Enfim, Adorno parece buscar no século XIX algo que lá não existe: um cientista do direito, imerso numa academia com padrões germânicos, perdendo de vista que a cultura jurídica no século XIX tinha outro matiz”.[30]

Aparenta-se, então, consistente a idéia de que a interpretação do bacharelismo não deva passar pelo restritivo veio da consideração de uma “melhor cultura jurídica”, pois esta é diferente da “cultura jurídica”, entendida e valorada desta ou daquela forma.[31]

Percorra-se, em breves linhas, o caminho tomado por Sérgio Adorno ao analisar a questão do bacharelismo. Parte o referido autor da contradição originária – aquela já esboçada a partir de Raymundo Faoro – entre o liberalismo e a democracia. Significativo é, pois, ressaltar o subtítulo de seu livro ora analisado: “O bacharelismo liberal na política brasileira”. Parece ser escopo próprio de sua reflexão a tentativa de mostrar que a elite dos quadros estatais formados pelas faculdades imperiais de direito estava atrelada a uma forma própria de pensar, o pensamento liberal, pouco afeito à democracia e muito mais ligado a um aristocratismo, legado lusitano e dos áridos tempos coloniais. Num segundo momento, passa o autor a discorrer acerca da fundação dos cursos jurídicos, sua discussão em parlamento já independente e pós-constituição de 1824, em consonância com a construção do Estado Nacional.

O terceiro momento porém do desenvolvimento de seu pensamento apresenta-se como o mais interessante aqui, uma vez busca demonstrar que

“a cultura jurídica no Império produziu um tipo específico de intelectual: politicamente disciplinado conforme os fundamentos ideológicos do Estado; criteriosamente profissionalizado para concretizar o funcionamento e o controle do aparato administrativo; e habilmente convencido senão da legitimidade, pelo menos da legalidade da forma de governo instaurada.

Nesse contexto político-cultural, a Academia de São Paulo constitui-se no espaço par excellence do bacharelismo liberal”.[32]

Daí por diante incorrerá o texto numa conceituação confusa do que seja o ensino jurídico, uma vez que sua não explicitação pode fazer cair em erros recorrentes na explicação da prática pedagógica do direito.

Chama-se, aqui, de discurso estereotipado do bacharelismo a prática de sua visualização em desconformidade com o seu contexto histórico, numa imputação meramente palavresca do profissional do direito, como se isso não constituísse seu próprio quefazer, não só aqui mas sempre que tal profissional desempenhe papel salutar. Revela-se pouco apropriada (para não dizer acientífica) a qualificação que Adorno buscou dar ao profissional do direito no Império, introduzindo-o na idéia de bacharel.[33] Assim, são exemplos pensamentos como este:

“Paradoxalmente, outros grandes jurisconsultos que o Império conheceu, egressos da Academia de Direito de São Paulo, não foram – nenhum deles – membros do corpo docente desse estabelecimento de ensino. (…) A titulação de doutor passa, a partir de 1856, a estar associada à iniciação em outras carreiras. Essa observação sugere não apenas a pouca importância conferida à docência universitária quanto ao fato de que a titulação, enquanto prática acadêmica, tinha outro significado simbólico, que não o aprimoramento intelectual de futuros professores, estando muito mais associada ao processo de apropriação de prestígio de fomento pelas elites políticas, durante quase todo o curso da sociedade brasileira sob a vigência do regime monárquico”.[34]

No entanto, não se faz uma tal ressalva para consignar que à época imperial existia sim um ensino acadêmico intramuros capaz de habilitar o jurista, acadêmico que egressaria da faculdade e apto estaria para as funções causídicas, como o quer Ricardo Marcelo Fonseca:

“sobretudo a partir da segunda metade do século os testemunhos são eloqüentes quanto à existência de alguns grandes mestres nas academias, que marcaram as gerações subseqüentes. Nomes como Tobias Barreto, Francisco Paula Batista, Aprígio Guimarães no Recife e em Olinda e Duarte de Azevedo e João Monteiro em São Paulo, indubitavelmente foram responsáveis pela circulação de idéias jurídicas (embora não só) que marcaram a atuação das faculdades de direito em suas épocas. Não seria crível que estes (entre vários outros) professores da faculdade de direito – que, é de se lembrar, constituíam quase que as únicas instituições de ensino superior no Brasil da época e as únicas faculdades de direito – fossem absolutamente desconsiderados pelo corpo discente que estaria mais preocupado em atividades políticas e jornalísticas”.[35]

De fato, não é disso que se está a tratar. Não se quer dizer que houve um ensino jurídico que qualificou o bacharel e por isso a visão do fenômeno bacharelístico estaria mitigada. O que se quer evidenciar, ou melhor, trazer à luz é o fato, isto sim, de que o conceito de bacharel abarca atividades adjacentes, não puramente “jurídicas”, demonstrando também seu azo no que concerne ao que distinguimos como interpretação crítica do fetiche do bacharel – ou seja, sua postura ideológica. Assim sendo, parece que o ensino jurídico no Império foi, realmente, precário e que a assertiva de Sérgio Adorno não está de todo equivocada: “nesse sentido, é ao jornalismo que deve ser imputada a responsabilidade pela formação jurídico-política e, nessa condição, teve marcado significado no processo de homogeneização da elite”.[36]

O que não se perfilha, entretanto, é que isto tenha sido o único fator de formação acadêmico-jurídica.[37] Contundente e aceitável também é a crítica à razão ornamental, feita por Roberto Gomes, em quem se pode entender que a “fascinação pelo cidadão bem falante conduziu à desgraça (e à graça) algumas carreiras de políticos e professores – e gerou o triunfo do bacharel. Ah, as delícias da Razão Ornamental!”[38] Nesta crítica, porém, se pode perceber que ao lado da razão ornamental há as profissões sendo exercidas, ainda que mitigadas pelo aparelhamento da burocracia imperial, questão muito própria daquele momento histórico. No entanto, tenta-se ir um pouco além, quase que radicalizando: como estudantes de direito – e com isso assumindo todas as conseqüências que as paixões de quem está por dentro de parcela desta história do ensino jurídico nacional provocam – deve-se lobrigar na figura do bacharel não a de um notável jurisconsulto; tampouco, a de um jurista versado em método interdisciplinar de ensino.

Pode-se, pois, denotar de toda esta incursão pelo mundo do bacharelismo brasileiro que, sim, o bacharel é formado na altura das abstrações e, em geral, pouco aprende sobre a prática jurídica nos bancos escolares. No entanto, vê-se nisso um pouco da necessária formação humanista, que pode ser encontrada até nos dias presentes, pois “a presença do bacharel em Direito é uma constante na vida brasileira”.[39] De fato, não se apreende o conhecimento estritamente jurídico no quotidiano do ensino superior em direito, mas é isto que qualifica o jurista, profissional do direito, que amanhã pretenderá transformar a torpe realidade social que o rodeia e que em parte ajuda a conservar, a não ser escravo dos dogmatismos e atuar com um quê de liberdade em sua sociedade, e não só mendigar cargos públicos, como faziam os antigos bacharéis.

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[1] PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. p. 7.

[2] WOLKMER, Antonio Carlos. Instituições e pluralismo na formação do direito brasileiro. In: ROCHA, Leonel Severo (org.). Teoria do direito e do estado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. p. 16.

[3] A este respeito, Enrique Dussel justapõe que, ao se conquistar o que hoje se chama América, inaugura-se a primeira “hegemonia mundial”, de forma que “o acontecimento fundante”, para a origem da modernidade, “foi o descobrimento da Ameríndia em 1492”. DUSSEL, Enrique Domingo. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Tradução de Ephraim F. Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 57.

[4] GROSSI, Paolo. A formação do jurista e a exigência de uma reflexão epistemológica inovadora. Em: _____. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 99.

[5] CÂNDIDO, Antônio. O significado de “Raízes do Brasil”. Em: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 9.

 

[6] Mais contemporaneamente, Roberto Gomes se referiu ao ecletismo como não só “entre-nós apenas um movimento, o primeiro a se estruturar, ou o simples reflexo de uma determinada situação política e social. Produto direito da indiferenciação intelectual brasileira, que por sua vez é produto da dependência cultural que até hoje perdura, creio que no ecletismo tenhamos revelado muito mais do que normalmente se supõe. É manifestação de alguns traços básicos de nosso caráter intelectual e de nossa condição política, e continua vivo, ainda encontradiço, prezado e vigente entre-nós. (…) Compõe o que chamo de um mito brasileiro: o espírito da imparcialidade”. GOMES, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. 3 ed. Porto Alegre: Movimento/ URGS, 1979. p. 32-33.

[7] “D. Pedro era dado a novidades, gostava de estudar línguas e ciências exóticas, e a palavra progresso, para ele, vinculava-se à ciência e ao intelecto. (…) Antes de mudar as estruturas econômicas parecia mais urgente, para d. Pedro II, mudar os espíritos, e nesses sentido o imperador nunca escondeu quão enfadonha lhe parecia a política. Línguas, astronomia, mineralogia e geologia faziam parte do elenco de paixões de d. Pedro II. (…) Poliglota, assíduo correspondente e sócio de várias instituições internacionais mesmo antes de sair do país, d. Pedro II tinha junto ao trono uma biblioteca, um museu, além de um laboratório e seu famoso observatório astronômico”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca dos trópicos. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 150.

[8] HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 165.

[9] HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. p. 157.

[10] HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. p. 156.

[11] HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. p. 156.

[12] HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. p. 157.

[13] FRANCO, Francisco Melo. Reino da Estupidez. São Paulo: Giordano, 1995. p. 49.

[14] FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994. p. 53.

[15] FAORO, R. Existe um pensamento político brasileiro? p. 82-83.

[16] FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2 ed. rev.e aum. Porto Alegre: Globo; São Paulo: USP, vol. 1, 1975. p. 388.

[17] FAORO, R. Os donos do poder. p. 389.

[18] FAORO, R. Os donos do poder. p. 391.

[19] Há de se ressalvar que o bacharelismo, como se pode observar em Sérgio Buarque de Holanda, não se reduz à formação em direito, apesar de ela ser a mais significativa: “bacharel, durante o Segundo Reinado, aos poucos transformou-se em um termo que carregava, além de uma qualificação, um capital simbólico fundamental. Na prática o bacharel era alguém com diploma em direito – dentro ou fora do país. Todavia, jovens formados em matemática ou letras também podiam portar o título e disputar as cada vez mais escassas vagas de emprego público”. SCHWARCZ, L. M. As barbas do imperador. p. 119.

[20] FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, v. 35, 2006. p. 341 (grifamos).

[21] VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas do Bacharelismo. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 144 e nota 117.

[22] AZEVEDO, Álvares. Boêmios (ato de uma comédia não escrita). In: _____. AZEVEDO, Álvares de. Poesias Completas. São Paulo: Saraiva, 1957. p. 182.

[23] ALVES, Castro. Canção do Boêmio. In: _____. ALVES, Castro. Poesias Completas de Castro Alves. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s. d. p. 142.

[24] Venâncio Filho ressalta que “o jornalismo acadêmico, seja na sua feição literária, seja na sua feição política, despertou sempre o maior interesse entre os estudantes dos cursos jurídicos”. VENÂNCIO FILHO, A. Das arcadas ao bacharelismo. p. 136. Similar é o posicionamento de Adorno, para quem “o jornalismo foi tanto o espaço que possibilitou a inserção do acadêmico/bacharel em loci diversos daqueles exclusivamente ditados pela ciência do Direito, quanto o espaço destinado à criação de uma intelligentzia, da qual se recrutaram os intelectuais da sociedade brasileira oitocentista – administradores públicos, parlamentares, magistrados, burocratas, professores, homens de letras. Originalmente concebida como porta-voz do acadêmico, essa imprensa, pouco a pouco, transformou-se em guardiã da ordem pública e em tribuna livre para a defesa de direitos civis e políticos”. ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 163.

[25] VARELA, Fagundes. A Imprensa. In: _____. VARELA, Fagundes. Poesias Completas de Fagundes Varela. São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. 2, 1957. p. 371-372.

[26] ALENCAR, José de. A Propriedade. (Edição fac-símile de Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1883). Brasília: Senado Federal, 2004. p. 44 (conservamos a grafia original da edição fac-símile).

[27] VENÂNCIO FILHO, A. Das arcadas ao bacharelismo, p. 95.

[28] A este respeito, Fernando Azevedo, que dedica várias páginas ao tratamento da cultura nacional e seus desdobramentos nas ciências, letras e profissões, assegura que o bacharelismo teve por intuito criar a “preponderância que teve o jurídico sobre o econômico, o cuidado de dar à sociedade uma estrutura jurídica e política sobre a preocupação de enfrentar e resolver os seus problemas técnicos”. AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4 ed. Brasília: UnB, 1963. p. 299.

[29] BARRETO, Tobias. Um discurso em mangas de camisa. In: _____. A Questão do Poder Moderador e outros ensaios brasileiros. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1977. p. 184.

[30] FONSECA, R. M. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX. p. 363.

[31] Para tanto, vide FONSECA, R. M.. A formação da cultura jurídica nacional e os cursos jurídicos no Brasil: uma análise preliminar (1854-1879). Cuadernos del Instituto Antonio de Nebrija. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid; Editorial Dykinson, vol. 8, 2005. p. 114.

[32] ADORNO, S. Os aprendizes do poder. p. 91.

[33] Mostra-se relevante, no pertinente à idéia de Sérgio de Adorno de que não teria havido produção teórica entre os juristas do Império, que há um trabalho recente mostrando não só que tal produção científica houve, mas que ela pode ser inclusive periodizada, ainda que, dos quatro momentos assinalados, só os dois últimos apresentem maior consistência jurídica. Vide DUTRA, Pedro. Literatura Jurídica no Império. 2 ed. Rio de Janeiro: Padma, 2004.

[34] ADORNO, S. Os aprendizes do poder. p. 133 e 139.

[35] FONSECA, R. M. A formação da cultura jurídica nacional e os cursos jurídicos no Brasil: uma análise preliminar (1854-1879). p. 107-108. A este respeito ver também LACOMBE, Américo Jacobina. A cultura jurídica. Em: HOLANDA, Sério Buarque (org.). História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, vol. 3, 2004; e o já citado VENÂNCIO FILHO, A. Das arcadas ao bacharelismo, nos capítulos 3 (“Os primeiros anos”), 5 (“A Escola do Recife”) e 6 (“O ensino jurídico no Império”).

[36] ADORNO, S. Os aprendizes do poder. p. 143.

[37] FONSECA, R. M. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX, em seu item 5 (“Relendo os traços do ‘bacharelismo’ no Brasil”).

[38] GOMES, R. Crítica da Razão Tupiniquim. p. 64-65.

[39] VENÂNCIO FILHO, A. Das arcadas ao bacharelismo. p. 271.