O paradigma do tempo presente: limites ao discurso jurídico em torno da problemática ambiental

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O paradigma do tempo presente: limites ao discurso jurídico em torno da problemática ambiental

Antonio Marcelo Pacheco de Souza – Mestrando em Direito na UNISINOS/RS, especialista em Ciência Política pela UFRGS, bacharel em História, Filosofia e Direito, professor universitário da Rede Metodista de Ensino – IPA/RS e professor do programa de Pós-Graduação em Direito, nível Especialização, em Uruguaiana/RS.

E-mail: antoniopaza@yahoo.com.br

Texto originalmente publicado nos Anais do II Congresso Internacional Transdisciplinar Ambiente e Direito, promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, no período de 19 a 21 de abril de 2005.

Resumo: A natureza, entendida, equivocadamente como espaço de domínio da ação humana, manifesta os efeitos de sua sistemática destruição, em um momento temporal que se distancia do momento da destruição, e esse lapso temporal, justifica-se como um impedimento a uma postura bioética da sociedade em relação àquela. Igualmente no Direito, tal dificuldade temporal é percebida pela resistência que se tem em justificar o princípio da precaução, o que nos levaria a prática da antecipação das decisões que visassem proteger o que pode ser destruído. É, portanto, objetivo desse trabalho, discutir a necessidade da quebra desse paradigma temporal que se impõe desde a modernidade, e que é hoje, um dos principais responsáveis pelo desinteresse manifesto pela sociedade em relação ao ambiente.

Palavras-chave: natureza, tempo, direito e ação humana.

INTRODUÇÃO

“(…) a prova proporcionada pelos fósseis mostrar-se-ia irrefutável. O pecado original não podia mais ser considerado responsável pelas características físicas da natureza: a Terra e as espécies que nela viviam não foram criadas em benefício da humanidade, mas tinham vida e história independentes do homem. Em 1780, coerentemente, o geólogo ateu G. H. Toulmin afirmava que o homem era apenas uma parte pequena da natureza, e descartava os mitos religiosos antropocêntricos, como meras fantasias geradas pelo orgulho humano”.KEITH THOMAS

“O homem nasceu num mundo que existia antes de seu nascimento; e este mundo é um mundo pré-constituído e pré-organizado cuja estrutura particular é o resultado de um processo histórico e é, por conseguinte, diferente para cada cultura e sociedade. Alguns aspectos, contudo, são comuns a todos os mundos sociais, porque eles estão enraizados na condição humana”. HANS ULRICH GUMBRECHT

É preciso reconhecer que há uma necessidade premente de se afirmar que o paradigma, em torno do conceito de ambiente, no que diz respeito a sua perenidade, está esvaziado, diluído. Há, mesmo no olhar que ainda admira o suposto domínio humano sobre a natureza, uma revelação que já percebe os sinais de esgotamento na capacidade daquela em se renovar. Lentamente, tardiamente, uma consciência ecológico-jurídica está ganhando espaços no cenário social.

O espaço natural no qual o homem ainda pensa dirigir e controlar, dá mostras de estar bem próximo de um colapso que ameaça a existência de todos, incluindo aqui a figura do próprio ser humano.

Frente ao limiar desta resistência do ambiente a ação desmedida do progresso humano, é chegada a hora de se reconstruir e redefinir a perspectiva daquela embolorada alteridade[1] que há muito foi adulterada, e transformada ao longo do devir civilizacional no falso mito de que a natureza seria cenário do ilimitado exercício do poder do agente social.

Tal alteridade (homem X natureza), está, assim, na esteira do processo que a história chama de processo de hominização, que acabou libertando o homem dos limites impostos pelo meio ambiente, bem como pelo espaço do sagrado[2], construindo, dessa forma, o mito do domínio tecno-humano sobre a natureza, bem como sobre o futuro.[3]

É mister que se busque, portanto, o resgate de um outro sentido para essa alteridade, que não se fundamente numa oposição radical sujeito/natureza, mas sim como aquela distinção que é mais um complemento de significado a respeito da evolução biológica, e que venha a ampliar o próprio conceito do que entendemos por humano.

Isso porque, aquele outro, ou seja, o ambiente, não pode mais se manter afastado do imaginário humano, recolhido a um espaço marcadamente distante, quer dizer, entendido como alguma coisa que não pertencendo ao próprio universo do indivíduo, é mantido ideologicamente como simples meio de realização da ação humana.[4]

O espaço da natureza, ideologizado como um território próprio, distinto do espaço do ser humano, e que glorifica a vitória da cultura civilizacional, não permitindo ao mundo natural ser aceito como uma extensão do homem, precisa ser transformado.

Tal alteração-modificação passa por um reconhecimento da origem dessa natureza, bem como do próprio pensamento reflexivo que identificou o mundo natural como um outro; agora, somos obrigados a retornar a nossa preocupação ao ambiente depois da longa separação litigiosa que nos envolveu e que significou um afastamento pernicioso daquelas percepções da filosofia pré-socrática. O mundo natural precisa ser retratado com a mesma atenção que devotamos a tudo aquilo que diz respeito ao mundo social.

Entretanto, não basta a ação que hoje critica a difícil e contraditória relação homem-natureza (ainda que a luta política dos ambientalistas para tal se justifique). Legítima, tal postura em defesa do ambiente não pode se manter enclausurada aos espaços privilegiados do saber-poder, pois esse discurso jurídico-ambientalista corre, assim, o risco de encontrar-se aclimatado no espaço cômodo do seio do bloco histórico dominante, e que exerce o controle sobre todo o imaginário social, já que controla e legitima-se a partir da produção da informação.

Nesse processo de aclimatação, o discurso ambientalista pode ver transformado o seu cunho reivindicatório, bem como a sua natureza de crítica radical. E, tal transformação pode dar a ele o caráter de mais um discurso entre tantos, passível de ser aceito e incorporado na atual linguagem midiatizada, isto é, disciplinado pelo/no status quo e, dessa forma, lentamente fragmentado, decantado enquanto mais um entre muitos discursos sem ressonância, limitado a ser apenas um eco entre muitas movediças argumentações nessa era de desencanto da linguagem.

Logo, é preciso que a laicização da discussão em torno do ambiente estanque o afastamento, no imaginário, da ultrapassada certeza de que homem e natureza estão em conflito, de que são antíteses de espaços efetivamente distintos.

Ao contrário, se faz necessário conceber a idéia de que qualquer proposta de política mundial em tempos de globalização, deve privilegiar uma identificação, uma aproximação substancial homem-ambiente, até ao ponto de se fixar entre vastas camadas sociais, não uma cidadania cosmopolita, mas a percepção de uma ecocidadania cosmopolita.

Não por acaso que, em boa parte das constituições nacionais, o direito ao ambiente é presença constante nos capítulos que tratam dos direitos fundamentais, bem como a problemática da questão ambiental acabou por sofrer uma profunda judicialização, resultado do crescimento nas universidades e nos tribunais daquele olhar preocupado em torno da situação desse espaço.

É preciso romper, todavia, com os círculos seguros e amigáveis do discurso acadêmico, e encontrar, de alguma forma, o senso comum nos becos mais escuros do grande espaço social, sob pena de não se conseguindo isso, construir mais um saber autoritário, elitizado, ainda que bem intencionado.

Enfrentar a questão do ambiente e do seu direito a direitos, obrigatoriamente, significa lançar o olhar sobre o principal desafio no que tange ao encontro dos sujeitos sociais com a problemática ambiental, rompendo, assim, àqueles espaços confortáveis.

Para que isso aconteça, além de todas as discussões que são travadas, é proposta desse olhar crítico que se abandone o atual paradigma de tempo que envolve a problemática homem-ambiente, e nessa construção de uma nova percepção temporal, o espaço da filosofia, e aquele do senso comum se encontrem decisivamente para enfrentar a destruição causada à natureza.

Justifica-se: sem que se quebre a hegemonia do tempo-presente na relação homem-natureza, toda discussão em torno do ambiente e do direito ambiental, bem como da possibilidade de construção de uma ecocidadania está fadada, de forma inexorável, a se constituir em um discurso hermético, sagrado, desvelado a alguns poucos esforçados especialistas, mas ainda assim, inatingível aos cenários mais amplos do imaginário social popular.

Portanto, é inexorável quebrar a hegemonia da dimensão temporal tempo-presente, que desde a modernidade rege o espaço que envolve o homem e a natureza.

Quer dizer, é imperativo que se construa uma antevisão da dimensão temporal do tempo-futuro, pois somente aceitando a idéia de que o futuro já está aqui, no agora, isto é, de que esse ambiente presente já pode estar irremediavelmente comprometido, e de que a ação no agora tem um efeito no depois, é que os sujeitos aceitarão a idéia de que tal dimensão de tempo também lhes pertence, e em lhes pertencendo, são responsáveis diretos por toda a vida do planeta, tanto das gerações que estão por vir, quanto, inclusive, e principalmente, da sua própria.

Estabelecendo um nexo causal entre o presente e o futuro, ao sujeito será possível efetivar uma construção mais eficiente da idéia de uma ecocidadania, ética e juridicamente responsável no que diz respeito a relação entre homem/ambiente/cidadania.

Na construção de um novo olhar temporal do homem, capaz de atingir algumas certezas dominantes do/no seu imaginário, é que esse poderá reencontrar o entendimento de que na acepção da expressão “vida humana”, a natureza não é um outro antitético, descolado do indivíduo, e distante da incidência do seu olhar.

Redescobrindo o tempo em uma outra dimensão teórica, quer dizer, livre daqueles limites impostos pela idéia de progresso do racionalismo moderno, será possível mudar a certeza de que a natureza é apenas um reflexo para o sujeito, que acredita apenas contemplar tudo aquilo que cerca o seu espaço cultural industrializado e urbanizado. O outro, a natureza, está/faz parte de sua própria realidade ontológica.

Redesenhando o entendimento do tempo, o espaço da natureza poderá ser reconhecido no imaginário do homem, tornando-se, também, uma prioridade da subjetividade. É dessa maneira que, finalmente, ele poderá ser capaz de aceitar o ambiente enquanto um paradoxo: verdade que diverso dele, mas ao mesmo tempo, determinante, nessa distinção, para a existência de tudo aquilo que afirma ser seu olhar em si mesmo, isto é, para o que chama de sua humanidade.

I – DIREITO AMBIENTAL E TEMPO: UM DIFÍCIL ENCONTRO

“(…) o homem, porque é o produto mais evoluído da vida reencontra nela os princípios iniciais e fundamentais, precisamente ao ultrapassar a esfera nucleoproteinada na noossociosfera, e é, até ao presente, o ser biótico por excelência”.EDGAR MORIN

Desde a modernidade, o imaginário ocidental está determinado por uma extensa relação com o mundo, inclusive naquilo que significa a forma como o tempo é percebido; bem assim, o papel da natureza no espaço da (in) consciência do sujeito sócio-político.

Ainda que se viva um instante de desassossego no espectro dos conceitos, e de que se perceba no discurso científico, certa indefinição, principalmente no cenário das ciências sociais, é perceptível que vivemos um momento de profundas transformações, e de tal intensidade, que tem o condão de abalar os alicerces de muitos dos paradigmas em que entregamos o logos de nossa ratio.

Ao encontro de Thomas Kuhn [5], crê-se que estamos experimentando uma ainda não clara revolução científica, a ponto de se anotar um enfrentamento, cada vez mais radical, aos princípios que justificaram os paradigmas de nossa cultura. E como ele afirma, peremptoriamente, a quebra de um determinado paradigma e sua substituição por outro é o que determina uma “revolução científica”.

Essa revolução não é o resultado de um fato, de um observador mais crítico, ou de uma contestação datada historicamente, mas sim, conseqüência de uma ampla gama de esforços que se desenrolam diariamente, tanto no universo da filosofia, quanto no anônimo espaço do senso comum.

Não é de agora que se faz sensível uma alteração no paradigma do tempo. Desde o iluminismo, o culto ao tempo presente, olhar precioso sobre o processo evolutivo da civilização, e que tem a pretensão de resgatar o passado, marcou, de forma apoteótica o olhar do logos sobre a relação do homem com o mundo que o envolve.

Nesse sentido, não raro, surgem grandes certezas que justificam a vitória desse império do tempo presente: foi assim com o Positivismo, no século XIX, bem como, mais recentemente, a proposta neoliberal de Fukuyama, que pretensiosamente alegou o fim da história a partir da vitória do modelo capitalista liberal.[6]

O presente é o tempo da industrialização, da cada vez mais seletiva relação de trabalho, do capital instantâneo. Contudo, num movimento paradoxal, criado enquanto um “ovo da serpente”, o mundo da internet, da intranet, do celular e da TV a cabo, quer dizer, dessa (in) definida sociedade da informação, não impediram que se pudesse reivindicar um novo tempo.

Paradoxo porque, nesse tempo imediato, instantâneo, vem surgindo uma necessidade, ao logos desencantado, de resgatar uma racionalidade temporal que não esteja a distância de uma tecla de computador. Quer dizer: é preciso respeitar o passado, mas estendê-lo como um presente que já foi, e nesse sentido, estabelecer nos sujeitos sociais uma responsabilidade com os seus atos no momento agora, já que tais atos terão, obrigatoriamente, uma repercussão num futuro que muito mais cedo do que se imagina, há de se tornar presente cognitivo do homem hoje, realizando, dessa forma, o destino manifesto dessa espiral temporal.

Tal crise do paradigma temporal já abandonou os salões restritos da discussão científica, e se aproxima, em uma esteira caótica e desorganizada, dos grandes espaços do senso comum, aonde reside o homem mundano. Ali, também se consolida a certeza de que o paradigma existente, em relação ao instituto temporal, deixou de funcionar de maneira adequada, e que antes, estava sob severa e eficiente supervisão do mesmo.

Como se afirmou, essa ruptura não é de agora, ela é por assim dizer, um resumo de um determinado processo que se pode pontuar a partir da primeira grande guerra, e de sua herdeira, a segunda grande guerra que tiveram méritos em aviltar um conceito fundamental da modernidade, qual seja: o de progresso.

Em ambos os conflitos mundiais, o resultado representou um choque na idéia de progresso, bem como nas ideologias que o justificavam, e o seu efeito foi deveras excessivo no edifício da racionalidade industrial/liberal. Ao se abalar a idéia de progresso, os fatos históricos do início do séc. XX estavam enfraquecendo, igualmente, as justificativas de toda a sociedade industrial, bem assim, daquela sua noção temporal teleológica.

Apesar da resistência demonstrada pela crença na modernização, que deu à idéia de progresso, e à noção de tempo moderno, certo ímpeto de vida, tais paradigmas já iniciavam ali, um longo devir em direção a sua crise, quer dizer, a necessidade de sua substituição. Não é errado, portanto, afirmar que se inicia com aqueles conflitos mundiais, a revolução científica que busca romper com toda essa esfera de normas, valores e conceitos dominantes.

Mas, no que nos diz respeito, e que é o tema principal desse trabalho, essa crise existencial do paradigma moderno do tempo presente, está intimamente associada a um tema que vem se destacando no espaço do discurso jurídico, isto é, a controvérsia em torno do direito ambiental.

A reflexão em torno desse tema, consolidado em nossa Constituição, em seu artigo 225, obedece a toda uma discussão que vem sendo travada, no cenário mundial, a respeito da necessidade de se revisar as bases em que está estabelecida a relação homem-natureza.

Pôde-se assistir a uma explosão de ONGs, tratados e convenções, bem como a consolidação de leis que buscaram proteger o ambiente da devastação que a cultura industrial mantém em ritmo acelerado. Bem assim, toda essa complexidade acaba por acontecer no espaço do poder judiciário, uma vez que esse espaço tem tentando disciplinar alguma mudança significativa na relação homem-ambiente, isto é, no próprio paradigma dessa alteridade.

Todavia, é aqui que se constata a imperatividade de um novo paradigma de tempo, uma vez que os tribunais são ocupados pelos conflitos sociais. Infelizmente, o que se percebe é que o tempo manifesto no direito é, ainda, o tempo predominante do paradigma da modernidade.

Exemplo dessa limitação, e que torna o direito ambiental sem uma verdadeira eficácia é o uso equivocado que muitos operadores realizam, quando aplicam os conceitos de precaução e prevenção.

Nossos tribunais têm dificuldade de reconhecer que é vital realizar, no mesmo grau que se dá a prevenção, uma proteção ao risco abstrato, quer dizer, de decidirem pela precaução. Em realidade, é quanto ao princípio de risco que os juízes manifestam profunda (in) segurança irresponsável.

Também em relação a prevenção, o resultado da ação do poder judiciário é, não raro, de efeito muito tímido. Mesmo que se veja a imputabilidade aos agentes poluidores, em muitos casos, a decisão jurídica é ínfima, se comparada ao dano realizado. É curioso perceber que, na imposição da sanção ao ato que agride o meio ambiente, seguidamente os julgadores não aplicam o princípio da proporcionalidade, já que a resposta do Estado é ínfima, senão, inútil.

É a precaução, contudo, que exala um maior abandono, já que o poder judiciário parece temer adotar uma proteção ao risco possível, ao dano que não aconteceu ainda, mas que inevitavelmente, pelas condições da relação homem-natureza, está evidente para acontecer.

O que ocorre, é que a maioria dos juízes não aceita a ausência do resultado material, em outras palavras, do dano concreto, pois que necessitam desse para estabelecer aquilo que a dogmática jurídica destaca como nexo causal.

Sem o resultado objetivo, não está clara a culpa, pois também não se percebe, ainda os atos do agente poluidor, e nesse sentido, o curso da ação jurídica, formalmente estabelecida pela dogmática, ainda não aconteceu. Assim, não caberia ao poder judiciário proteger aquilo que num momento presente está para ser transformado, mas num momento ainda indeterminado, porque futuro. É preciso ofender, efetivamente, o ambiente, no seu sentido mais objetivo, para então, ocorrer a medida preventiva.

Lógica cruel, mas tecnicamente usual, pois que representa toda uma visão jurídica patrimonialista, em que a natureza é patrimonializada, escondida tal técnica em pressupostos racionalistas que, inadvertidamente, só se reconhecem a partir da manifestação da certeza: certeza quanto ao ato, quanto ao agente, quanto ao resultado.

Todavia, não há nenhuma insegurança, ao mesmo Judiciário, quando acredita no mito de que pode recuperar o passado através de uma decisão colhida por todo um sistema probatório que é sempre conseqüência, quer dizer, posterior ao dano, qualquer dano.

Desavisados, os julgadores abandonam-se numa percepção temporal que, somente busca aceitar o resultado, palpável porque já realizado, e não o resultado enquanto risco, que pode acontecer em um futuro mediato.

Essa certeza que move o direito nos tribunais, é incongruente com o momento atual. E, isso é assim, porque em torno do conceito de dano, está posta a questão do tempo; do tempo presente. Com o dano objetivo, palpável, vigora o atual paradigma temporal.

Entretanto, como se pode constatar pelos acontecimentos que se sucede ao longo dessa última década (efeito estufa, secas, enchentes, tsunamis, mudanças climáticas radicais, etc.), se faz premente adotar-se o risco como norte nas decisões jurídicas, ainda que o preço seja realizar a transformação daquela velha e embolorada forma de se anotar o tempo no direito.

É, no tempo incerto, determinado pela possibilidade da frustração, que o princípio do risco chama atenção, pois é com a presença desse elemento que no tempo, cada vez mais se diminui a distância do futuro com o presente, uma vez que se exige uma resposta que efetivamente não apenas responsabilize o agente poluidor/destruidor, mas que, fundamentalmente, aborte a sua ação antes mesmo dela se concretizar.

A destruição do ambiente é uma ofensa que alcança a todos, coletivamente, e nesse sentido, está, nesse movimento que busca aproximar o futuro do presente, a ação mais eficiente de proteção ambiental.

Para isso, o paradigma de tempo precisa ser subvertido na ação judicial, que tem que aceitá-la em sua natureza de precaução, de possibilidade. O que está para acontecer precisa ser protegido pela lei, pois que a decisão jurídica é uma clara e manifesta interferência do poder estatal na vida cotidiana, e o meio ambiente exige essa proteção, mesmo que ao custo de antecipar-se ao futuro evento danoso.

Evitar a degradação do espaço da natureza exige, do Poder Judiciário, e de todos os seus operadores, a compreensão de que o ato que pode destruir o ambiente já está no presente, mesmo que não mediatamente colocado, pois está alicerçado nas bases da própria organização da sociedade industrial moderna. O futuro é uma questão de instantaneidade do reconhecimento do fenômeno de risco que cerca toda a relação homem-natureza.

O tempo do dano causado na natureza não pode ser enclausurado por uma visão racionalista, que entende o direito enquanto uma certeza matemática, pois essa visão não tem alcance para abraçar a complexidade que cerca o conflito social em época de globalização de culturas e fronteiras. O ambiente, a natureza, precisa mais de bom senso, e menos de positivação.

II – DA CRISE DO PARADIGMA TEMPORAL PARA A ALTERAÇÃO DO PARADIGMA DA ALTERIDA HOMEM/NATUREZA

Nós não sabemos o que estamos a fazer, mas continuamos a fazer porque é muito difícil mudar e porque entramos no problema das responsabilidades difusas. O meu ganho é individual, tal como o é no nível de cada país. Esse eu posso qualificá-lo. Quanto aos custos globais difusos, estes são repartidos por todos e numa escala temporal que ninguém sabe calcular. Portanto, adotando a velha máxima ‘com o mal dos outros, passo eu bem’, continuamos a fazer o que estamos a fazer. Este é um caminho lógico em termos individuais mas suicida quando analisado de forma global. CARLOS PIMENTA

Apesar do narcisismo humanista, impõe-se assim um alargamento da categoria de sujeito. Segue-se, então, o argumento da continuidade histórica: o mandamento evangélico do amor ao próximo bem como a Declaração dos Direitos do Homem não se dirigia , ainda, senão aos homens esquecendo o mundo, como se ele não existisse. Pois bem; é chegada, agora, a hora de reparar este esquecimento, de restabelecer o equilíbrio das balanças e de negociar com a natureza, novo sujeito de direito. FRANÇOIS OST

Os operadores jurídicos não são os únicos responsáveis por essa visão de direito que necessita da figura de um dano objetivo. Enquanto sujeitos de seu tempo, que lhes confere o papel de sujeitos de uma determinada linguagem/ideologia, fazem parte de toda aquela tradição filosófica que construiu, para a relação do homem com o ambiente, uma compreensão de alteridade baseada na antinomia do mundo do homem e o mundo natural.

Os sujeitos sociais, presentes num campo mais vasto daquele dos operadores jurídicos, carregam a certeza dessa antípoda espacial, que reduz o ambiente a exercício do domínio do ser humano, distinto de tudo aquilo que definimos de espaço cultural.

A natureza é deleite, campo obrigatório da necessidade de auto-idealização do mito de humanidade, que não convive pacificamente com a pluralidade. Ela só recebe a devida atenção, depois que responde causando algum tipo de prejuízo.

Do espaço da filosofia, reservado aos mass media da cultura, ao espaço do senso comum, onde encontramos os principais produtores dos conceitos produzidos por aqueles primeiros, a natureza é tratada com estranheza, desconfiança, já que apesar de tudo, ela pode reagir sem que algum conceito a justifique.

E essa estranheza, que relega a imagem da natureza a um lugar secundário, mesmo nessa época de confirmação de direitos difusos, fundamentais etc., é justificada pelo fato de que a preocupação em torno dela, não faz parte de nossa noção tempo-cultural.[7]

Nesse sentido, subverter o paradigma temporal, através de uma verdadeira revolução científica, somente poderá vir a significar algo de positivo, se paralelo a essa revolução, for desenvolvida uma outra, isto é, o outro, o ambiente, não é espaço fora do espaço do homem, mas membro efetivo de sua individualidade e singularidade fundantes, quer dizer, da própria noção de vida humana.

Na derrocada do paradigma ainda dominante, será imperativo recuperar a certeza de que qualquer proposta de construção conceitual para um novo mundo, passa, determinantemente, pela identidade mundo do homem, mundo natural.

Para realizar essa transformação, obrigatório é abandonar aquela tradição filosófica que sempre se baseou numa concepção de natureza humana para a qual, o homem, estava para a natureza numa relação de dominação irresponsável, e enquanto dominante, vencia a motivação do medo (como se pode encontrar em Hobbes), ou da confiança/esperança (como está colocado para os ideólogos contemporâneos do mercado).

A natureza humana deve ser motivada pelo reconhecimento verdadeiro da diversidade, isto é, por um reconhecimento de uma bioética que aceite que o outro não é apenas um outro homem, mas tudo aquilo que o envolve e que, de certa maneira, contribui para a sua existência.

Portanto, não apenas o Poder Judiciário, mas, igualmente, o Estado, precisam aceitar que há, em curso, uma transformação, uma ruptura, uma revolução de paradigmas, tanto no que diz respeito a percepção temporal, quanto na construção da identidade, do sentido de natureza humana.

E essas discussões precisam ganhar legitimidade, que somente será obtida na medida em que visem articular aquelas reflexões da filosofia ao senso comum, carregando aos amplos espaços do campo social, o questionamento dessas novas percepções, e assim, rompendo com as modificações que se atém aos limites da lei, ou das bem intencionadas ONGs.

No desafio de se reconhecer um direito de precaução, baseado na aceitação plena do risco, sem que isso signifique abandonar o conceito de dano concreto, bem como na indefinida revolução dos paradigmas em curso, está a alternativa para se interromper a probabilidade de que a cultura da modernidade industrial, efetivamente, venha a destruir o homem e seu ambiente, e dessa forma, acabe nos conduzindo a uma era de bestialidade já preconizada por toda a violência que impera em nosso espaço mundano.

Em se reconhecendo isso, talvez seja possível desfazer aquele sinistro destino que faz da METAMORFOSE, de Franz Kafka, o livro símbolo dessa modernidade irresponsável, ao mesmo tempo em que ampliou, de forma assustadora, a fórmula famosa de Albert Camus, segundo a qual o único problema filosófico sério é o suicídio. Aqui, não mais do indivíduo, mas de toda espécie de vida que conhecemos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. São Paulo: ed. 34, 1998.

KUHN, Thomas. A estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, ed. Perspectiva, 1986.

LEITE, José Rubens Morato, AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988.

OST, François. A natureza à margem da lei: a Ecologia à prova do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador. A idéia de progresso. São Paulo: UNESP, 2000.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 1988.

[1] Tal alteridade tem como ponto de partida as reflexões de um grupo de pensadores que, na Grécia, buscaram encontrar no pensamento reflexivo, as condições para definir o mundo, encontrando no seu (des)velamento, a passagem para a libertação do humano daquilo que se afirma ser o domínio do divino. Os pré-socráticos foram assim, em certo sentido, os construtores originais de toda essa visão ocidental que opôs homem X natureza, mesmo que essa não fosse a intencionalidade teleológica pretendida por eles. Nessa construção primeira da alteridade, o ambiente não é entendido como adversário, ou mesmo como um espaço de mera imposição da arte técno-transformadora do ser homem, mas um espaço de distinção importante para a própria construção da subjetividade da unidade singular do sujeito, que se reconhece na antítese de tudo aquilo que não está nele diretamente, mas que a ele mantém níveis de envolvimento.

[2] Com Prometeu, o homem recebeu a revelação do fogo, elemento primeiro da caminhada em direção a sua libertação do domínio divino, pois o sagrado revelou-se ao pensamento racional, em tal medida que, o medo foi metamorfoseado em logos humano. Não por acaso que, os Deuses, impuseram a Prometeu, e aos homens, a sua vingança. No que nos toca, a maldição em torno de Pandora foi um pesado fardo imposto a humanidade.

[3] Desde a modernidade, com os filósofos do renascimento, tais como Descartes, Leibniz e Bacon, a sociedade humana buscou, no desenvolvimento dos conceitos de progresso, indústria, desenvolvimento e felicidade, mecanismos de projeção e controle do futuro, o que trouxe ao pensamento jurídico, a obrigatoriedade de pensar o direito enquanto uma dada materialidade exata, a encorpar a figura da sentença proferida nos tribunais. Devedores dessa pretensão, o direito e seus operadores afiaram um discurso que perde sua capacidade de entender o espaço social enquanto um grande espaço de complexidade, e nesse sentido, terreno de uma indefinida incerteza marcada pela figura do risco. O direito não é apenas o momento depois do resultado certo, ainda que perdido no tempo passado, mas ele deve ser, igualmente, um cenário onde, através da homeopatia da antecipação, se busca antecipar os efeitos, mesmo que marcados pelo signo de uma indefinição. Nesse sentido, é obrigatório romper com os parâmetros do pensamento moderno, e reencontrar o direito num encontro com a filosofia e não com a ciência.

[4] Conforme Paolo Rossi, “(…) os modernos acolheram uma idéia central: o saber não é apenas contemplação da verdade, mas é também potência, domínio sobre a natureza, tentativa de prolongar sua obra para submetê-la às necessidades e às aspirações do homem”. In: ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador. A idéia de progresso. São Paulo: UNESP, 2000, p.48.

[5] KUNHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986.

[6] Nesse sentido, foi estarrecedor perceber que logo após a mundialização das idéias desse autor, o bloco socialista na Europa iniciava uma radical transformação, gerando toda uma nova gama de efeitos históricos que ainda estão em pleno desenvolvimento.

[7] É inegável a influência do tempo na composição daquilo que se denomina imaginário social. Esse, espaço privilegiado da manifestação da ideologia individuocoletiva, busca legitimar-se, enquanto reconhecido, a partir daqueles fenômenos históricos que o definem e que são, ao mesmo tempo, definidos por ele.