O debate em torno da relação executivo-legislativo nos regimes presidencialistas: o caso brasileiro

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 07 – Julho/Dezembro 2008

O debate em torno da relação executivo-legislativo nos regimes presidencialistas: o caso brasileiro

Thiago Felker Andreis – Advogado, Economista, Mestre em Ciências Sociais pela PUCRS.

E-mail: tandreis@ig.com.br

Resumo: O artigo apresenta as discussões presentes na literatura acerca das relações executivo-legislativo no caso brasileiro, considerando na análise a faculdade concedida ao presidente pela Constituição de 1988 para editar medidas provisórias e como o uso excessivo de tal instituto possibilita a ampliação da preponderância do Executivo sobre o Legislativo. É analisado o impacto das medidas provisórias na produção legislativa sob dois enfoques: o papel do Executivo enquanto ator legislador e a influência das medidas provisórias na agenda do Legislativo. As conclusões indicam que o Executivo brasileiro tem apresentado um papel relevante na produção de leis no país e que a agenda legislativa tem sido afetada pela utilização das prerrogativas legislativas do Executivo.

Sumário: 1.Introdução; 2. Relações executivo-legislativo; 3. Relações executivo-legislativo no Brasil; 4. A medida provisória e seus efeitos sobre as relações executivo-legislativo no Brasil; 5. Conclusões; 6. Referências bibliográficas.

Palavras-chave: Relações Executivo-Legislativo, Constituição de 1988, Medida Provisória, Freios e Contrapesos.

Abstract: The article presents the debate regarding Executive-Legislative relations in Brazil, considering in It’s analysis the faculty granted to the President by the Constitution of 1988 to edict provisory measures and how the excessive use of this institute allows an increase of Executive’s power over the Legislative. It is analyzed the impact of provisory measures in legislative production under two aspects: the role of the Executive as a legislator actor and the influence of provisory measures in legislative agenda. Our conclusions indicate that Brazilian Executive has been presenting a relevant role in the country’s law production and that legislative agenda has been affected by the utilization of Executive’s legislative prerogatives.

Key-words: Executive-Legislative relations, Constitution of 1988, Provisory Measure, Checks and Balances.

  1. Introdução

Desde O Espírito das Leis, de Montesquieu, a separação de poderes encontra espaço na agenda de debates da academia. Um dos desdobramentos mais importantes da idéia de separação do Estado em três poderes que, num sistema de equilíbrio de poder, se contra-balançam é o estudo das relações Executivo-Legislativo. A análise de tais relações é particularmente relevante para o Brasil, um país cujo sistema de governo, o presidencialismo, tem recebido inúmeras críticas, seja pelos impasses entre Legislativo e Executivo que o sistema acarretaria na visão de muitos autores, seja por causa da preponderância do presidente sobre o Legislativo por conta das suas faculdades legislativas.

De fato, dentre os institutos consagrados pela Constituição de 1988, destaca-se a medida provisória (MP), a qual permite ao presidente legislar em situações consideradas de relevância e urgência e que traz consigo forte influência do decreto-lei, ferramenta semelhante utilizada durante o regime militar. A medida provisória vem se consolidando como mecanismo legislativo disponível ao presidente; no entanto, sua utilização acarreta efeitos no equilíbrio de poder entre os poderes Legislativo e Executivo.

Para analisar este processo, o presente artigo divide-se em três partes. Na primeira é feita uma introdução sobre a temática das relações Executivo-Legislativo desde as suas origens e mostramos como a literatura compreende estas relações aplicadas aos regimes parlamentaristas e presidencialistas. Na segunda parte é focalizado o caso específico do Brasil e como alguns autores que trabalham o tema percebem o debate aplicado ao país. A terceira seção trata especificamente da medida provisória e de como ela, enquanto instrumento legislativo do Executivo, afeta as relações entre estes dois poderes no Brasil. Por fim, apresentamos algumas conclusões.

  1. Relações Executivo-Legislativo

O estudo da divisão das atividades e prerrogativas estatais, ainda que não especificamente na forma de uma divisão tripartite de poderes, tal qual a adotada nas democracias contemporâneas, remonta a autores muito anteriores a Montesquieu. Pode-se perceber já no pensamento do grego Aristóteles e no dos romanos Políbio e Cícero uma preocupação com o tema, inobstante o caráter embrionário e limitado de tais estudos (MALDONADO, [200-]). Na modernidade, Thomas Hobbes, John Locke e James Harrington influenciaram o trabalho de Montesquieu e serviram como subsídio ao desenvolvimento da obra mais conhecida do autor (VAN DUNNÉ, 1999). De fato, é através dO Espírito das Leis que emerge a noção da repartição do poder estatal entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Para Montesquieu (2000), a inexistência de tal separação, ou seja, a reunião na mesma pessoa ou grupo de mais de um poder, prejudicaria a existência de liberdade no Estado considerado. Assim, a manutenção da separação funcional de um poder em relação aos demais acabaria por garantir, num sistema político, o controle de cada um sobre os excessos cometidos pelos outros, equilibrando-se as respectivas forças naquilo que ficaria conhecido, a partir de sua evolução, como um sistema de freios e contrapesos, ou checks and balances. No entanto, cabe salientar que a existência desse controle mútuo não garante um sistema democrático. Longe disso, Harrison Ross (1995) bem lembra que Montesquieu, ao tratar do sistema de freios na Inglaterra, o percebia como eficiente apenas enquanto garantia de proteção contra a constituição não democrática vigente no período. De fato, Montesquieu aparece na literatura como sendo considerado por seus contemporâneos um pensador não revolucionário. Nas palavras de W. Voisé, Montesquieu era “trop moderne pour les Anciens, et trop conservateur pour les Modernes” (apud VAN DUNNÉ, op. cit., p. 565), apesar do expressivo sucesso que seu O Espírito das Leis alcançou, superando as vinte edições em apenas dois anos.

Ainda que se considere a desvinculação pessoal de Montesquieu com movimentos revolucionários, fato é que seus escritos influenciaram sobremaneira as revoluções francesa e estadunidense. A idéia da repartição do poder em três ramos presente na obra-prima do autor consolidou sua presença no pensamento político ao longo dos séculos que nos separam da sua primeira edição, de modo que a questão agora revisitada numa das suas variantes, sob a forma da relação entre os poderes, continua na agenda de debates, tanto na academia quanto no discurso dos atores políticos. Dentro deste contexto, a ênfase dos estudos e da literatura tem sido sobre a relação Executivo-Legislativo. Não poderia ser diferente; ainda que o Judiciário seja de uma importância fulcral para o desenvolvimento de qualquer democracia, nos outros dois encontra-se o elemento político, que se revela no jogo de poder e dominação entre os atores políticos contemporâneos.

Mas como se dá a relação entre Executivo e Legislativo nas democracias contemporâneas? Para Arend Lijphart (1989, 2003), o modelo majoritário de democracia está correlacionado com um predomínio do Executivo; por outro lado, nos escassos exemplos de democracias consensuais, a relação tenderia a ser mais equilibrada. Esta e outras reduções que Lijphart faz a partir da sua análise possibilitam uma maior facilidade analítica, mas não diminuem a complexidade da realidade, de modo que existem muitos casos desviando-se das regras gerais.

Um exemplo dessa complexidade é a influência que a forma de governo adotada pelo país considerado, o parlamentarismo ou o presidencialismo, exerce sobre o tipo de relacionamento que se estabelece entre Executivo e Legislativo, ainda que seja necessário cuidado com a análise de casos particulares (Ibid.). Além disso, diferentes graus de concentração de poder são possíveis dependendo dos arranjos institucionais do país e do resultado eleitoral, de modo que as relações Executivo-Legislativo são influenciadas tanto por fatores estruturais quanto pela conjuntura política que se revela na preferência dos pleitos. Para Alfred Stepan, pode-se caracterizar parlamentarismo e presidencialismo da seguinte forma, relacionando com sua dependência recíproca ou independência quanto à legitimidade:

O sistema parlamentarista é um sistema de dependência mútua. Quer dizer: nele, o Poder Legislativo tem a capacidade de dar um voto de não-confiança ao governo e, ainda, o Poder Executivo tem a capacidade de dissolver o Congresso e convocar eleições. O sistema presidencialista é um sistema de independência mútua. Quer dizer: nele, o Poder Legislativo tem um mandato fixo e próprio, e o Poder Executivo tem seu mandato fixo e próprio. Isso implica que ambos os poderes têm sua própria fonte de legitimidade e independência. (1990, p. 98).1

A diferenciação entre os dois regimes se faz fundamental para a compreensão de como Executivo e Legislativo relacionam-se dentro destes sistemas. O Executivo parlamentarista depende do Legislativo na medida em que resulta deste e precisa do seu apoio para a manutenção do gabinete. Essa dependência inexiste no presidencialismo, uma vez que Executivo e Legislativo são eleitos separadamente. Na visão de Stepan,

O sistema parlamentarista, por definição, é um sistema que depende da maioria de um partido ou normalmente da coalizão de partidos para sua existência no dia-a-dia. Há grandes incentivos para o governo negociar com o Congresso, porque a existência do governo depende da conservação de uma maioria. Além disso, para os membros do Congresso em coalizão, a sua participação no governo é real — e pode terminar se o governo cair.

(…)

Pelo contrário, num sistema presidencialista a existência do governo não depende do Congresso, e se estivermos falando de políticas necessárias, mas impopulares, o cálculo de incentivos para os membros do Congresso é a favor de um distanciamento do presidente. (Ibid., p. 99).

Em suma, as relações Executivo-Legislativo apresentam-se em formas variadas, de modo que diferentes aspectos relacionados com o arcabouço político-institucional do país estudado acabam por influenciar tais interações, ora aproximando-se de um equilíbrio e, em outros momentos, dando maior poder a um dos ramos; no caso dos regimes presidencialistas, ao Executivo.

A América Latina, de modo geral, adota regimes presidencialistas e as relações entre executivo e legislativo nesses governos tem sido um importante objeto de análise. Na literatura dominante, as análises têm procurado demonstrar a existência de inconsistências importantes nesses regimes, que resultariam, entre outros problemas, no imobilismo. Tal condição decorreria das possíveis situações de impasse às quais esses regimes estariam sujeitos em virtude do modo como se estabelecem as relações entre Executivo-Legislativo. Assim, a realidade sociopolítica do continente latino-americano (e do Brasil dentro deste contexto) é tida como problemática para a adoção de regimes presidencialistas por diversos autores. Chasquetti resumiu da seguinte forma o debate:

La conocida tesis de Juan J. Linz (1990) sobre las ventajas del parlamentarismo y los defectos del presidencialismo marcó el inicio de un debate acerca de la relación y la influencia de los diseños institucionales sobre los procesos democráticos. La normatividad del planteo de Linz dividió a la academia entre aquellos que respaldaban sus posiciones (Valenzuela, 1998; Stepan y Skach, 1998), los que las relativizaron (Mainwaring, 1993; Lijphart, 1997;  Sartori, 1994) y los que decididamente las combatieron, señalando que el presidencialismo podía ser un diseño institucional apto para la democracia (Shugart y Carey, 1992).(CHASQUETTI, 2002, p. 2).

Além das referências citadas por Chasquetti, encontra-se argumentação semelhante em Juan J. Linz (1987), Valenzuela (2004, 2005, 2006), Stepan (1990), Stepan y Skach (1993), Mainwaring (2001a, 2001b), Sartori (1995) e Sartori et al. (1991). Pode-se ainda acrescentar à lista, especialmente no terceiro grupo, trabalhos de outros autores, com destaque para os de Figueiredo e Limongi (1995, 2001). De fato, a literatura vem criticando generalizações quanto à impossibilidade do presidencialismo obter bons resultados do ponto de vista da governabilidade na América Latina. As particularidades dos regimes e suas realidades apresentam uma variabilidade tão expressiva que a rotulagem de realidades muito específicas torna-se improdutiva. No limite, cada país é uma variante própria de parlamentarismo ou de presidencialismo, de modo que o contraste in abstrato entre um regime e outro pouco explicaria da realidade concreta (LESSA, 2005).

  1. Relações Executivo-Legislativo no Brasil

O processo de redemocratização brasileiro ocorreu dentro do contexto da chamada terceira onda, a qual se iniciou em 1974 com o fim do regime salazarista em Portugal (HUNTINGTON, 1994). No Brasil, caracterizou-se pela manutenção de alguns elementos do período anterior nas bases institucionais sob as quais seria erigida a nova experiência democrática do país. Para Figueiredo e Limongi (1995, 2001), na comparação com a Constituição de 1946, a nova carta de 1988 ampliou consideravelmente os poderes legislativos do presidente da República. Na visão dos autores, “a Constituição de 1988 manteve as inovações constitucionais introduzidas pelas constituições escritas pelos militares com vistas a garantir a preponderância legislativa do Executivo e maior presteza à consideração de suas propostas legislativas” (2001, p. 20). E mais, ao contrario do que se supunha até então, a partir dos dados coletados, pode-se afirmar que o executivo nesses regimes não se mostrou engessado pela ação do Congresso como um veto player. Tampouco foi encontrada uma indisciplina partidária dominante.  Ao contrário, para Figueiredo e Limongi, o executivo, por ter controle sobre o acesso à patronagem, “dispõe de recursos para impor disciplina aos membros da coalizão que o apóia” (Ibid., p. 23). Ou seja, o executivo conseguiria manter uma base de apoio de maneira consistente. De acordo com os autores, uma série de hipóteses da doutrina dominante estariam equivocadas.

A descoberta de disciplina partidária é importante uma vez que coloca em xeque a tese até então dominante de que os parlamentares agiriam de forma individualista e fragmentada e que, dentro deste contexto, o país estaria fadado a sofrer de paralisia decisória. Para Luiza Helena de Oliveira (2000), trabalhos como os de Figueiredo e Limongi procuram trazer uma visão de que o Executivo possui o controle decisório no Brasil e que a ingovernabilidade preconizada por outros estudos não existiria na realidade política nacional. Mecanismos de concentração de poder no Colégio de Líderes e na Mesa Diretora do Congresso Nacional teriam fundamental importância para a entrada em pauta apenas de assuntos que interessam aos líderes parlamentares que controlam o legislativo e que atuam em harmonia de interesses com o executivo (Ibid.).

No entanto, o foco deste breve artigo encontra-se não nos mecanismos de controle da agenda legislativa por parte da hierarquia interna ao Congresso, mas sim em outros mais diretos, constitucionais e que dependem menos do jogo político de busca de apoio e mais de resquícios do período não-democrático imediatamente anterior. Nesse sentido, pode-se afirmar que a Constituição Federal de 1988

Garante amplos poderes de iniciativa legislativa ao Executivo. Do ponto de vista comparativo, o Executivo brasileiro se encontra entre os mais fortes do mundo. A nova carta, neste ponto,  manteve uma série de alterações introduzidas pelo regime militar visando fortalecer a posição do Executivo vis-à-vis o Legislativo. O Executivo foi dotado da iniciativa exclusiva em matérias orçamentárias e manteve a capacidade de legislar sem o concurso do Legislativo em situações excepcionais. A Constituição de 1946 não previa nenhum desses privilégios. Não reconhecia também a possibilidade de o presidente solicitar urgência para a apreciação de projeto de sua autoria. O modelo, nestes pontos, não foi a Carta de 1946, mas as diferentes versões da Constituição no período autoritário.

[…]

A partir do exercício dos amplos poderes que lhe concedeu a Constituição de 1988, o Executivo se tornou o principal legislador de jure e de facto. (CEBRAP, 1996, p. 68).

Aqui cabe fazer um breve adendo, uma vez que o exposto até o momento pode causar a impressão errônea de que haveria uma usurpação das competências legislativas em favor do Executivo e que isso só ocorreria no Brasil. Limongi (2006) bem lembrou que o poder legislativo do presidente brasileiro não decorre dessa hipotética usurpação, mas é fruto, antes de tudo, da Constituição de 1988. Do processo negociativo e do momento histórico da sua elaboração é que surgem tais prerrogativas. Quanto à singularidade de tal situação, o autor sustenta que a maioria das constituições presidencialistas segue o mesmo princípio, afastando-se do modelo estadunidense. A prerrogativa exclusiva do presidente de iniciar o processo legislativo de matérias mais relevantes tenderia a ser a norma nos regimes presidencialistas (Ibid.). No entanto, Sartori (1996), apesar de também considerar a normalidade de o presidente presidencialista receber maiores poderes de emergência do que os de regimes parlamentares, considera o Brasil “um caso extremo de ‘decretismo’” (Ibid., p. 176).

Além dos aspectos citados acima relativos às prerrogativas presidenciais no Brasil, Figueiredo e Limongi (2001) destacam ainda a exclusividade que o presidente possui acerca da iniciativa legislativa em matéria tributária e relativa à organização administrativa. No entanto, apesar de todas estas possibilidades, uma prerrogativa do Executivo brasileiro faz todas as outras parecerem modestas, que é a possibilidade de edição de medidas provisórias (MPs). Esta capacidade se destaca, mesmo sobre os poderes de agenda da presidência (Ibid.). É o que trataremos a seguir.

  1. A medida provisória e seus efeitos sobre as relações executivo-legislativo no Brasil

A adoção da possibilidade de edição de medidas provisórias pela Constituição de 1988 tem sua inspiração no instituto legal do decreto-lei previsto na Constituição de 1967, que concedia ao presidente a faculdade de emitir decretos com força de lei em casos de urgência e relevância para o interesse público, os quais entravam em vigor imediatamente após sua publicação e podiam ser apreciados pelo Congresso em até sessenta dias (AMORIM NETO e TAFNER, 2002). Não existe todavia uma correspondência exata entre os institutos. Entre as principais diferenças, podemos salientar a retroatividade da perda de eficácia no caso das MPs rejeitadas pelo Legislativo, o que não ocorria com o decreto-lei (Ibid.).

O objetivo da criação de MPs por parte do presidente deve ser, conforme a Constituição de 1988, o de facilitar a atuação governamental frente a situações de relevância e urgência, com destaque para o seu caráter provisório. No entanto, o conceito de relevância e urgência, tal como expressos no texto constitucional, apresentam-se demasiadamente lacunosos e sujeitos a diferentes interpretações. Uma vez que a decisão sobre a caracterização destes nebulosos requisitos está a cargo do próprio presidente, o uso de tais medidas passa a depender muito mais da sua necessidade política do que efetivamente dos pré-requisitos objetivamente analisados.2 Desta forma, a edição de MPs vem sendo utilizada, a partir da redemocratização, para permitir ao Executivo legislar sobre assuntos muito diversos, desde a instituição de planos econômicos até reajustes salariais para o funcionalismo; de modo que nem sempre haveria motivação para a utilização de uma medida cujo cunho é de excepcionalidade, como é o caso das medidas provisórias.

Segundo Amorim Neto e Tafner (2002), desde 1988 até dezembro de 2000, foram editadas 5.533 MPs, resultando em uma média de 1,25 por dia no período considerado. Estes números entram em conflito com os de Figueiredo e Limongi (2001), que analisaram o impacto das iniciativas legislativas do Executivo e do Legislativo através da contabilização do número de leis ordinárias sancionadas no período compreendido entre 1989 e 1994. Tal diferença se dá essencialmente por diferenças metodológicas.

A pesquisa de Figueiredo e Limongi revela que as leis de competência exclusiva do Executivo (MPs e Leis Orçamentárias) correspondem a aproximadamente 60% das leis sancionadas no período. Além disso, mesmo nas matérias em que o Executivo não detém exclusividade constitucional, sua atividade como propositor é intensa, de modo que 85% das leis produzidas entre 1989 e 1994 tiveram a iniciativa do Executivo. (FIGUEIREDO e LIMONGI, 2001).

Especificamente quanto às MPs, os autores demonstram sua profusão no mesmo período, que resultou numa média de edição de 11 medidas provisórias mensais (Ibid.). A particularidade da utilização de MPs por parte do Executivo é que ela possui altos custos para o Legislativo em caso de rejeição (Ibid.).

Ainda que Amorim Neto e Tafner (2002) apresentem números diferentes dos trazidos por Figueiredo e Limongi (2001), estes são suficientemente próximos para uma análise mais geral do tema. O mais importante é perceber que os dados trazidos em ambos os trabalhos apresentam uma tendência crescente no número de medidas provisórias em vigor, em grande parte resultado de reedições destas.

Segundo dados do Anuário Estatístico do Processo Legislativo (2006), 77% das sessões deliberativas da Câmara de Deputados tiveram, no ano de 2005, suas pautas prejudicadas em função da necessidade de se votar medidas provisórias. Esses dados permitem observar que o Executivo tem se utilizado dos mecanismos disponíveis para legislar, de modo que sua importância relativa na produção legislativa é considerável. Ou seja, grande parte da produção legislativa própria daquela casa acaba sendo afetada pela atuação legislativa do Executivo.  Estudos mais aprofundados se fazem necessários para um real dimensionamento do impacto da capacidade legislativa do Executivo no relacionamento deste com o Legislativo, mas podemos perceber que a capacidade legislativa específica do Legislativo parece ser afetada por tais prerrogativas, especialmente pela profusão de medidas provisórias.

A Emenda Constitucional n. 32/2001 trouxe algumas restrições ao uso excessivo de MPs. A principal contribuição refere-se à impossibilidade de reedições contínuas. Ainda que faltem estudos mostrando os efeitos recentes desta emenda na produção de MPs, percebe-se que efetivamente, ao menos quanto ao número infindável de reedições, o resultado esperado tem sido atingido. Apesar disso, os efeitos da edição de medidas provisórias continuam sendo sentidos no Legislativo.

  1. Conclusões

O breve estudo aqui proposto, ainda que de caráter limitado, permite algumas conclusões acerca da relação Executivo-Legislativo no Brasil. Pesquisas mais aprofundadas podem revelar de maneira mais contundente o grau de predomínio do Executivo sobre o Legislativo e se tal processo vem se aprofundando ou não. No entanto, o que se percebe através dos dados analisados é que a Constituição de 1988 dotou o Executivo de instrumentos que lhe permitem uma posição privilegiada no jogo entre poderes independentes. Esta posição favorecida de que o presidente dispõe é fruto das negociações políticas da última constituinte e congrega elementos inspirados no modelo anterior não-democrático.

Dentro deste contexto, uma das principais ferramentas disponibilizadas ao Executivo é a edição de medidas provisórias. Este instituto, em face da amplidão interpretativa da lei, tem sido utilizado de maneira constante ao longo das últimas décadas. O aprofundamento deste processo pode causar um desequilíbrio no sistema de freios e contrapesos, uma vez que a atividade parlamentar é prejudicada pelo excesso de medidas provisórias em pauta, de modo que o Executivo emerge com um ator importante não apenas na execução de leis, mas na sua própria elaboração.

Por conta desse cenário, o Executivo acaba tendo ampliada sua influência sobre a agenda do Legislativo, bem como consegue transferir o custo de rejeição das MPs para o Congresso. Deste modo, a capacidade que o presidente possui de emitir MPs, tal como hoje está colocada na legislação brasileira, atua de forma a aumentar o poder do Executivo frente ao Legislativo.

  1. Referências Bibliográficas

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1 O tom coloquial da citação deve-se ao fato de ser uma transcrição de uma conferência magna, optando o periódico por manter-se fiel às palavras do conferencista.

2 Na realidade, existe a resolução n. 1, de 1989, do Congresso Nacional, que estabelece a criação de uma comissão mista de seis deputados federais e seis senadores para examinar se os requisitos de urgência e relevância estão presentes. No entanto, não existe garantia alguma que requisitos minimamente objetivos sejam observados. A decisão pode ser absolutamente política, típica do jogo de forças entre situação e oposição