Número 06

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 06 – Janeiro/Junho 2008

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O Pluralismo jurídico é um tema que aparenta grande vitalidade, e há bastante tempo, provavelmente desde o princípio do século 20. Dois tipos de conjuntura política discrepantes explicam essa energia. Alguns acham que pluralismo jurídico não é um conceito como outro qualquer, mas um “novo paradigma” que contesta a exclusividade do Estado como centro de poder e juridicidade.[1] Para outros, ele é apenas subproduto do “entrecruzamento do global e do local, à custa do Estado nacional”, instrumentalizado por uma estratégia transnacional “acelerada pela globalização e a construção de um bloco americano colonizado pelo direito dos Estados Unidos”.[2]

Detrás das barricadas, conforme se depreende da leitura dos textos deste dossiê, existe, porém, um trabalho analítico incansável de antropólogos, que, malgrado a proverbial incompetência de sua disciplina para lidar com o historicamente específico,[3] conseguem vislumbrar o conceito na dinâmica do seu desenvolvimento. Percebem-no, assim, na ocorrência de ordens normativas paralelas e, mais recentemente, em combinações nacionais e supranacionais propiciadas por ordens normativas cada vez mais permeáveis a mútuas influências.[4]

Paradoxalmente, enquanto os analistas demonstram que na sociedade moderna múltiplos ordenamentos sub-estatais, semi-independentes, impõem um ‘pluralismo jurídico de fato’, o próprio Estado não sente a mínima obrigação de reconhecer tais regimes alternativos. Situação que explica a vitalidade do conceito e justifica as barricadas, todavia, esvaziadas, na América Latina em particular – as antigas hostes militantes renderam-se ao neomonismo jurídico de olhos fixos na demanda, insistindo em reformas estruturais e estéticas, i.e, Justiça superdimensionada, mas com ‘rosto humano’.

Ênfase na demanda é justamente o fator que mais inviabiliza a quebra do monismo jurídico por um pluralismo obcecado pela diminuição da procura por justiça formal. Conforme ocorre nos países em que vão a julgamento apenas 2% das ações – a maioria é resolvida “cada vez mais na base do ‘faça você mesmo’ e os tribunais quase nem olham”.

“Alguns reclamam que a privatização foi longe demais. O Congresso está debatendo a questão “será hora de trazer os juízes de volta“? Na Suprema Corte as questões são mais cerebrais. Que papel deve ter o governo na supervisão da resolução privada das disputas? Os rivais que concordam em arbitrar uma briga de forma privada têm direito de chamar um juiz para verificar se o acordo é justo? Ou isso anularia todo o propósito de se privatizar a Justiça? Os juízes da Suprema Corte devem resistir à restatização da Justiça americana. No melhor de todos os mundos, há processos judiciais; no mundo real existe arbitragem, mediação e outras formas criativas de justiça privatizada. Há muitas alternativas piores”.[5]

Essa confusão, gerada pela espúria identificação de pluralismo jurídico com ‘justiça privatizada’, só é compensada por um interesse cada vez maior na aplicação prática dos princípios e procedimentos da justiça restaurativa.[6] A tendência dominante, contudo, é desestatização, abertura de mercados para ‘justiça de segunda-mão’, enquanto o sistema estatizado cada vez mais processa ‘em tempo real’, tomando decisões “sobretudo, por telefone”. ‘Lógica de urgência’ que prevalece na Justiça penal em particular, acentuadamente em situações de flagrante delito, o que reflete a submissão da atividade cotidiana dos operadores do Direito a critérios de desempenho e produtividade. Os juízes, por exemplo, não podem mais se dar ao luxo de questionar o sentido de suas próprias ações ou o impacto de suas decisões.[7]

Reflexo extremo e perverso dessa cultura fundada em gestão de fluxo é chamado na Rússia de ‘reiderstvo’, batidas policiais de improviso, com grande aparato bélico e de mídia, em que “companhias pagam propinas a policiais e juízes para assediar concorrentes”.

“O presidente russo, ex-professor de Direito, cunhou o jargão ‘niilismo legal’” para descrever o desrespeito generalizado à lei em todos os níveis da sociedade. Como ele, muitos acreditam que a polícia e os tribunais do país se transformaram em armas do arsenal capitalista. Segundo a Câmara de Indústria e Comércio, cerca de oito mil firmas por ano são alvos de processos ou investigações solicitadas por rivais que procuram levá-las à falência ou absorvê-las. Muitas vezes usa-se batidas policiais de improviso respaldadas por ordens judiciais determinando que as empresas que pagam propina aos juízes são as verdadeiras proprietárias das companhias atacadas. Em outros casos, a pressão judicial é usada para obrigar acionistas majoritários a vender suas ações. Uma investigação criminal custa de 20 a 50 mil dólares; uma blitz 30 mil, uma sentença favorável de 10 a duzentos mil. Enquanto isso, o presidente da República pede uma legislação para coibir o reiderstvo e o parlamento cogita impor 20 anos de prisão a quem recorrer a tal expediente para apossar-se de empresas”.[8]

A lógica do sistema, que associa seus aspectos concretos a um estágio completamente desenvolvido, não se manifesta necessariamente conforme as leis do processo histórico. À luz dela, portanto, revisitar o pluralismo jurídico deve acarretar bem mais do que o “reconhecimento empírico” dos antropólogos, [9] ou qualificar Direito e Justiça como “alvos e resultados de lutas hegemônicas”.[10] Nesse sentido, os textos deste dossiê devem levar o leitor a perceber o pluralismo jurídico como um importante elemento do processo de formação do Direito e da Justiça na atualidade. Contudo, não segundo movimentos tortuosos e erráticos, mas como orientações que se dividem em ramais, eventualmente convergem em pontos nodais, e daí prosseguem em uma linha unitária, para a qual afluem outras orientações, configurando relações constantes com as transições do sistema.[11]

A partir dessa perspectiva, o propósito do pluralismo jurídico parece ser a demarcação experimental do papel que elementos separados, inovadores,  desempenham ou terão no sistema desenvolvido, guardando a chave da sua evolução a partir daqui. Sem isso, a alternativa são “disjunções”, i.e., impasses sistêmicos recorrentes, determinados, por exemplo, pela disposição a desvincular estruturas das instituições das condições que lhes deram origem e continuam acompanhando. Por exemplo, nos juizados especiais brasileiros,

“[…] o legislador não se ocupou tanto como iriam funcionar quanto em determinar quem julgaria. As consequências deletérias da falta de normas e padrões de desempenho (geralmente descontadas pela necessidade de “simplificar procedimentos e ampliar a legitimidade”[12]), desse modo permeiam toda a instituição, condicionando o caráter de suas atividades e a qualidade de seus produtos. Resultado do desleixo em relação a desempenho são as reservas dos advogados quanto à competência dos juízes leigos, em particular. Sentimento refletido nas respostas dos auxiliares da “nova Justiça” quando revelam (1) o que acham do próprio desempenho “fora” do juizado e em comparação aos demais colegas de serviço, (2) suas dúvidas quanto ao próprio conhecimento dos procedimentos da Justiça, e (3) suas restrições à qualidade e justeza das decisões que emanam dos Juizados”.[13]

Os impasses se reproduzem, ademais, nas respostas que legisladores e gestores forjam de uma vez por todas, descartando Justiça baseada em evidências e orientada à solução de problemas. O resultado, revelado mediante pesquisa acerca do funcionamento e da cultura organizacional do sistema, é a progressiva degradação do processo de trabalho no judiciário – algo que antes se observava apenas na indústria, em organizações “produtivas”.[14]

Os vetores desse mesmo processo na Justiça são (1) a expropriação do controle pelos gestores, (2) o inchamento do sistema, e (3) o aprofundamento da divisão do trabalho entre qualificações “plenas” e “restritas” em estruturas ocupacionais cujas hierarquias fixas, baseadas em status, desarticulam e deslocam outras, fundadas no trabalho. O que explica, por exemplo, porque os cartórios judiciais (que no Brasil organizam o serviço interno do judiciário e elaboram grande parte das decisões judiciais) permanecem “invisíveis” aos olhos dos gestores do sistema. Gestores que, por sua vez, somente se dirigem aos subalternos para exigir o cumprimento de medidas descabidas, “típicas de quem desconhece o dia-a-dia do trabalho”.

Pedro Scuro Neto – Editor do Dossiê Pluralismo Jurídico

 

 [1] Danielle Comin Martins, neste Dossiê.

[2] Germán Palacio (2000). Pluralismo jurídico, neoamericanismo y postfordismo: notas para decifrar la naturaleza de los câmbios jurídicos de fines de siglo. Crítica Jurídica, Curitiba, n° 17, p. 173-174.

[3] Zygmunt Bauman (1977). Por uma Sociologia Crítica. Um ensaio sobre o senso comum e emancipação (trad., Antônio A. Cirurgião). Rio de Janeiro: Zahar, p. 103.

[4] Sara Araújo, neste Dossiê.

[5] Patti Waldmeir (2007). Financial Times, 20 nov. Disponível em http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/fintimes (texto condensado).

[6] A justiça restaurativa é participatória, dialógica, narrativa e, em princípio, consensual. Seu principal critério de sucesso é o grau de reparação dos danos materiais e morais causados por condutas negativas, e não o impacto de seus procedimentos nas pessoas. Daniel W. Van Ness e Gary Johnstone (org.) (2007). Handbook of Restorative Justice. Cullompton: Willan; Pedro Scuro Neto (2008). O enigma da esfinge – uma década de justiça restaurativa no Brasil. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, São Paulo, n° 48.

[7] B. Bastard e C. Mouhanna (2007). Une Justice dans l’urgence. Le traitement en temps réel des affaires pénales. Paris: PUF.

[8] Jason Bush (2008). Der Spiegel, 7 jun.

[9] Boaventura de Sousa Santos (2006). The heterogeneous state and legal pluralism in Mozambique. Law & Society Review, vol. 40, n° 1, p. 39-76.

[10] Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (1989). Hegemony and Socialist Strategy. Toward a radical democratic politics. Londres.

 

Artigos

Crítica à modernidade jurídica: análise da categoria de sujeito de direito e os Movimentos Sociais – Renata Carlos Steiner

Ius Commune: uma manifestação pluralista na Idade Média? – Guilherme Camargo Massaú

Pluralidade de pluralismos: breve incursão nas teorias pluralistas do direito – Daniele Comin Martins

Pluralismo e unicidade na busca de segurança jurídica – José Fabio Rodrigues Maciel

Pluralismo jurídico em Moçambique. uma realidade em movimento – Sara Araújo

Reflexões sobre pluralismo jurídico e direitos indígenas na América do Sul Reflexões sobre pluralismo jurídico e direitos indígenas na América do Sul – Simone Rodrigues Pinto