Intolerável

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN 1809-2721

Número 01 – Julho/Dezembro 2005

Intolerável

Artigo originalmente publicado na revista Verve (periódico do Núcleo de Sociabilidade Libertária – PUC-SP), n.º 02, São Paulo, Outubro de 2002, p. 225-244.

Edivaldo Vieira da Silva – Mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP.

Resumo: O embate de três existências prisionais (Caryl Chessman, João Acácio Pereira da Costa e Jack Henry Abbott) contra as vinganças penais do Estado. O poder de matar pelo código penal, o poder de incriminar da mídia, o poder de gerar criminosos dos reformatórios para jovens e os correlatos pena de morte, encarceramento para semi-imputável e pena de prisão perpétua, são discutidos no emaranhado da sociedade de controle cristalizando punições. O abolicionismo penal é abordado, então, como afirmação da vida.

“É assim que a prisão está me dilacerando por dentro. Fere-me a cada dia. Cada dia me leva mais longe de minha vida. E sequer estou consciente de como está se dando minha dissolução. De qualquer modo, sou incapaz de detê-la”. (ABBOTT, 1981)

Friedrich Nietzsche se contrapondo a tradição dialética alemã, fundada em Hegel, construiu sua concepção filosófica do “Eterno Retorno”. Sua construção assenta-se no resgate da “diferença” subsumida no morfismo da síntese dialética hegeliana. Sua perspectiva do “Eterno Retorno” se consubstancia na afirmação da própria vida, no enfrentamento – em Gaia Ciência – do demônio que pousa ao nosso lado e inquire sobre a nossa predisposição a repetir a nossa existência indefinidamente, com suas mazelas, crueldades, dores, estados de vilania e de nobreza.

Eterno Retorno nietzscheano, no entanto, não significa o retorno domesmo, mas, sua reaparição como devir, acontecimentos saltando em gradientes de diversidades que afirmam a singularidade das Ariadnes[1]. Omesmo se diversifica, se desterritorializa e se reterritorializa novamente, no embate de forças que produzem poder e resistências.

A ordem jurídica, seu instrumento de controle – a polícia – , sua instituição de vigilância e confinamento modelar, a prisão, e os dispositivos midiáticos prolongam ad perpetuum a construção do sujeito “delinqüência” para tornar “suportável” a emanação permanente de poder disciplinar na sociedade. No plano de produção da delinqüência, do seu retorno em um campo de relações de forças heterogêneas, este artigo ensaia rastrear a intervenção estratégica de três existências que em seus embates com o Estado e suas instituições disciplinares conseguiram, ainda que de forma efêmera, abalar seu regime de verdade e explicitar sua ordem da maldade. Trata-se das vidas não coexistentes no tempo cronológico, de Caryl Chessman – The Red Light Bandit – , de sua versão brasileira, dos idos da década de sessenta aos noventa do século XX, João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, e, Jack Henry Abbott, preso-autor de uma das mais contundentes e reveladoras obras sobre o mundo das prisões, No Ventre da Besta, escrita e rapidamente celebrada como sensação editorial em1981.

Chessman e a Face da Morte

Caryl Chessman, nasceu em 1921, de pai descendente de imigrantes dinamarqueses[2], passou sua infância e adolescência em bairros pobres da Califórnia, em um período em que a família Chessman foi atingida, como mais de oito milhões de norte-americanos, pelo desemprego durante a Grande Depressão de 1929.

Em sua adolescência, Chessman organiza um grupo de amigos que inicialmente cometiam pequenas infrações, por pura diversão, como “ligação direta” de carros para circularem nas ruas de seu bairro. Em seguida passam a chamar a atenção de moradores e da polícia por empreenderem arrombamento e furto de estabelecimentos comerciais; aos dezesseis anos Chessman é preso pela primeira vez e encaminhado para um Reformatório juvenil. Com raros momentos de liberdade, Caryl Chessman passará quase toda sua existência nas prisões, em particular, na prisão de Chino e de Saint Quentin. Em um desses estados provisórios de liberdade, Chessman é preso sob suspeita de ser um ladrão e estuprador – que agia nas colinas de Hollywood, local de encontros amorosos de casais de namorados –, que ganhava as páginas dos jornais locais como The Red Light Bandit, por empunhar um farolete de luz vermelha, semelhante aos usados pela polícia californiana em suas rondas noturnas. Duas de suas vítimas, Mary Alice Meza e Regina Johnson, em seus depoimentos reconheceram Chessman como The Red Light Bandit, o homem que as tinham roubado e molestado sexualmente.

Em um julgamento marcado pela comoção da opinião pública, produzida pela mídia, por uma estratégia de defesa desafiadora[3] e por uma longa ficha de delitos passados, Chessman é condenado à pena de morte, sendo conduzido à prisão de Sant Quentin para aguardar sua execução. A partir desse momento começa a história de Caryl Chessman – e não da construção virtual midiática The Red Light Bandit–, sua formação autodidática em Direito, suas petições para a comutação da pena capital em prisão perpétua, a apresentação de recursos para adiar a data de sua execução. A potencialidade de seu talento não se represa na leitura e interpretação de textos jurídicos. Chessman adquire reconhecimento internacional como literato por sua obra Cela 2455: Corredor da Morte e pelos dois livros que lhe seguiram[4], contrabandeados para fora da prisão, desafiando o governo da Califórnia e o sistema de controle e apreensão inquisitorial de textos produzidos por presos em Sant Quentin. A repercussão de seus livros adquire projeção internacional, desencadeando manifestações em todo o mundo contra sua execução e pelo fim da pena capital. No Brasil, destacou-se o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Hungria que através de artigos, conferências e cartas dirigidas ao governador da Califórnia, Edmund “Pat” Brown, marca um momento importante da luta, daqueles que Foucault nominava de “reformadores das prisões”:

“(…) Para erradicar o mal, não é preciso erradicar o homem. O que cumpre fazer não é matar o homem criminoso, mas o criminoso no homem. A criminalidade não se extingue ou declina com a pena de morte. Ao invés de arrogar-se arbitrariamente o direito de matar, ao Estado incumbe promover a remodelação da própria sociedade, para que se apresentem melhores condições políticas, econômicas e éticas, eliminadoras das causas etiológicas do crime…”[5]

As pressões internacionais, no entanto, não foram suficientes para sustar a execução da sentença e conter o apreço do Estado para a confirmação de sua justiça vingativa. O assassinato oficial de Estado é cumprido, após sete adiamentos da data de sua execução, Chessman é conduzido à câmara de gás em maio de 1961, deixando poucas horas antes, uma carta aberta ao público, nas mãos de um jornalista do San Francisco Examiner, que se transformou em um dos maiores libelos contra a pena de morte e ao regime de crueldade da ordem jurídica da “democracia” norte-americana[6] .

Caryl Chessman dividiu opiniões no mundo inteiro sobre sua culpabilidade ou inocência. Pesava para a formação da opinião pública a favor da convicção de sua culpa, seu reconhecimento por duas vítimas. Por sua inocência, a afirmação de Chessman como escritor e suas declarações de inocência e a acusação de erro judicial à ordem jurídica norte-americana, repetidas veementemente até o último momento. Os Estados Unidos, alguns anos antes, apresentavam-se ao mundo como detentores da verdade e distribuidores de justiça após, no espírito daGuerra Fria, levarem para a cadeira elétrica o casal Rosenberg, acusados de espionagem para o governo russo. Inaugurava-se nos Estados Unidos, no início da década de cinqüenta, a moderna “caça as bruxas” aos inimigos internos de seu regime político, a Era McCarthy. A estratégia de afirmação do poder hegemônico dos Estados Unidos, implacável contra seus inimigos e intolerante diante de tentativas de desafiar-lhes, se reproduz nas considerações dos poderes locais, das unidades de sua Federação. O MacCarthismo se manifesta como movimento inquisitorial contra todos os supostos inimigos do regime político norte-americano, no campo da política, do sindicalismo e da industria cinematográfica, mas também, se expressa como guerra em escala totalcontra o crime nas ruas. A projeção imagética, da Era MacCarthista, construída para justificar o terror de Estado nos guetos e bairros pobres de concentração de negros e hispânicos foi, de acordo com Jack Henry Abbott (1987: 172), a de um jovem que cresceu em orfanatos e instituições penais para crianças na Califórnia e que foi executado pelos livros que escreveu, Caryl Chessman.

O suposto The Red Light Bandit é executado, pelo Estado da Califórnia, por repudiar o espetáculo jurídico e por desafiar os dispositivos de controle e interceptação de saberes desestabilizadores da prisão. O adolescente, transformado em adulto, não é ressocializado pela prisão, seu amadurecimento passa pela fuga a um mundo virtual, em uma viagem nômade por todos os territórios e na multiplicidade dos tempos – desencarcerados do rigor de Cronos [7] – que libera o viajante que “não sai do lugar” para percorrer projeções imagéticas, através da leitura. O tempo, na economia da punição, repete continuamente o mesmo instante, hora e segundos, aquele do cometimento da “falta” em associação ao tempo cronológico da pena, alheio e indiferente a outras multiplicidades de tempo que os circundam e que produzem a diferença. O Caryl Chessman retroativo ao qual incidiu a pena, era o não-lugar, distinto daquele que deu seus últimos passos no “corredor da morte”.

O Bandido da Luz Vermelha e os Diagramas de Poder

João Acácio Pereira da Costa nasceu em 24 de junho de 1942, em São Francisco do Sul, Santa Catarina. Sua infância foi abreviada, pela morte da mãe, quando João Acácio contava com quatro anos de idade, e do pai, quando contava com oito anos, encerrado em um hospital de servidores públicos – era funcionário do Serviço Social da Malária – quando a tuberculose, não mais surto epidêmico como em finais do século XIX e início do XX, ceifava ainda muitas vidas. Transitando por casas de parentes, João Acácio evade-se e passa a viver como “criança de rua” no centro de sua cidade. Inicia-se na transgressão como forma de sobrevivência, com pequenos furtos de pessoas distraídas no fluxo de uma vida urbana que tardiamente se insinuava no sul do país. Como Chessman, atravessou a infância e adolescência em reformatórios e cadeias de delegacias de polícia, até que em 1966 decide “fazer a vida” em São Paulo.

Neste momento, o imaginário popular detinha-se nas crônicas e balburdias que alimentavam as conversações nas ruas e bares da cidade de feitos de ladrões como Gino Amletto Meneghetti, que eram pródigos em furtar sem serem vistos, durante o “sono inocente de suas vítimas”, sem causar-lhes danos. Inicialmente, João Acácio não se distanciou dessa modalidade de delito considerado suportável nos meios populares. Entre a polícia, o ladrão anônimo era reconhecido pelo padrão recorrente de seus assaltos, arrombamento de grades e janelas com o uso de um “macaco hidráulico”, o que lhe valeu o epíteto de homem-macaco. Em um de seus assaltos, fez uso de um farolete com luz vermelha e se deparou com suas vítimas acordadas. No dia seguinte, a imprensa associou-o a Caryl Chessman. Nascia, a construção midiática, corroborada por uma personalidade propensa à fama e a notoriedade, o novo inimigo público nº 1, o Bandido da Luz Vermelha dos trópicos:

“Chegando em Santos um dia depois, vi no jornal ‘Assalto à americana’. Aí eles falaram, inventaram e fizeram a coisa bonita. Eu disse: eles gostaram, me deram idéia, vou repetir. Fiz uns par deles assim, eles mesmo que inventaram de fazer eu fazer” (Laudo, 1967: XIV).

Durante dois meses, João Acácio freqüentou diariamente as manchetes de jornais e os noticiários de rádio e da nova e reluzente plataforma midiática, a televisão. A violência passa a ser trabalhada como dispositivo para se aterrorizar a população, ampliando tiragens de jornais, revistas, audiências de rádio e televisão dando, ao mesmo tempo, ressonância ao discurso da necessidade da instituição polícia e da justiça criminal. Seus crimes passam a ter o envolvimento direto com as vítimas e crescem as denuncias de violência sexual. O homem-macaco detentor de uma ficha com registros superiores a setenta ocorrências policiais se esvai perante o novo ídolo, o novo facínora, de rosticidade indiscernível atrás de uma luz vermelha ofuscante, de um chapéu de feltro e de um lenço amarrado à face, o Bandido da Luz Vermelha.

Uma mobilização nacional das forças policiais e do nascente “jornalismo investigativo” fez com que João Acácio fosse reconhecido e preso no Paraná, em agosto de 1966. Encarcerado e julgado João Acácio é considerado semi-imputável, categoria intermediária na logística judiciária que coloca o preso no cruzamento da loucura e da delinqüência, dos saberes médico-psiquiátricos e do sistema carcerário da justiça penal.

De acordo com os especialistas, responsáveis pelo seu laudo médico para o processo de acusação, João Acácio deveria ser encaminhado a uma “casa de custódia” para submete-lo a medidas reeducativo-penais com a perspectiva de reversibilidade dos distúrbiosem sua personalidade. A liberdade passa a ser vinculada a “cura”, paradoxalmente obtida pela supressão dessa mesma liberdade, pelo confinamento. A definição de João Acácio como semi-imputável colocava-o em uma zona indistinta entre a loucura e a delinqüência, disponibilizando seu corpo tanto para a instituição prisão quanto para a instituição manicômio. Os saberes psiquiátricos, não definem o destino doBandido da Luz Vermelha, deixando a via aberta, em seu laudo final, para os dispositivos jurídicos e psiquiátricos decidirem ulteriormente seu futuro:

“Tudo leva a crer que diante de uma nova oportunidade qualquer deve-se esperar antes nova reincidência antes que recuperação. Isto não significa uma impossibilidade, mas somente raríssimas probabilidades” (Processo 1025/67, Livro 4, 1967: 119).

A indiscernibilidade entre loucura e delinquência, permitiu, trinta anos depois, após o cumprimento de sua sentença, que o Estado tentasse mantê-lo no cárcere através de uma Medida de Segurançacaracterizando-o, por fim, como louco, um ser destituído de razão, representando um perigo recorrente para a sociedade, que deveria ser mantido em confinamento por tempo indeterminado até os saberes médico-psiquiátricos emitirem um laudo de cura, favorável a sua soltura, estratégia de efetuação transversal da prisão perpétua, indiferente ao Código Penal que estabelece como pena máxima no Brasil, trinta anos de reclusão.

Enclausurado durante trinta anos entre penitenciárias de presos comuns e manicômios judiciários, João Acácio foi solto em 1997, após um longo debate e espetáculo público para determinar se o Bandido da Luz Vermelha estava recuperado ou, se ainda representava um “perigo para a sociedade”.

A imprensa se notabiliza, em época, pela aplicação de duas estratégias quando da soltura de João Acácio: a) a estratégia televisiva, segundo Fernando Barros e Silva, colunista da Folha de São Paulo, evidenciando muito mais a delinqüência do veículo do que aquela que se atribui ao marginal (Folha de São Paulo. 31-08-97) transformando-o em um ser bizarro, um espetáculo para o regozijo dos que apreciam os efeitos da prisão e b) a estratégia de dissolução da imagem virtual produzida pelos meios-de-comunicação diante da não conformação de João Acácio com a produção imagética do bandido “facínora” produzida na década de 60.

A televisão inaugura em sua grade de programação, o prenuncio dosreality shows, expondo “a vida como ela é”, explorando situações de miserabilidade, deficiências físicas transformadas em grotesco, crimes, chacinas e atrocidades cometidas diariamente nos centros urbanos. João Acácio se transforma no bufão, na nova atração bizarra no circo televisivo.

A chamada Imprensa séria, por sua vez, intenta destruir omitoproduzido por ela própria, na década de sessenta, em um movimento de auto-retratação, atacando a estratégia televisiva:

“Luz vermelha é um pobre diabo brasileiro. Desdentado, não consegue sequer falar, lunático, não é capaz de distinguir delírio de realidade, Trás nas expressões do rosto as marcas da humilhação, da violência e da podridão a que foi submetido durante 30 anos de prisão. Transformou-se nisso que está aí. Não se pode dizer, a não ser por comiseração que seja exatamente humano. A TV se entusiasma com esse tipo de coisa”. (Folha de São Paulo. 31-08-97: 2-8).

Marcelo Coelho, em sua coluna semanal, em um momento de transparência perante seus leitores, explicita o pacto infernal – ou na acepção foucaulteana, a circularidade do poder – entre a sociedade, apersonalidade em foco e dos meios midiáticos. A sociedade vê aquilo que deseja nos meios-de-comunicação, rompendo qualquer fronteira entre opúblico e o privado, em umvoyeurismo generalizado que transforma os mecanismo de monitoração dasociedade de controle em algo trivial e mesmo desejável. Os meios-de-comunicação realizam seus anseios de lucro – com a elevação de índices de audiência, de patrocinadores e de vendas de jornais e revistas – exercendo,ao mesmo tempo, seu papel de dispositivo de controle social e de modelação dos novos sujeitos-sujeitados. A celebridade dá seu assentimento a invasão de sua privacidade, mercadoria negociável, não raro maquiada com lances sensacionalistas ou escandalosos, cambiável e barata, para sua permanência no enfoque midiático e no hall da fama.

Após alguns meses de aparição freqüente na mídia, de julgamentos reativos por seus comportamentos passados, João Acácio foi morto por um pescador na cidade de Joinville. Sua desaparição não produziu a comoção pública quando de sua soltura, pela origem simples de Nelson Pisingher que o abateu, sua morte foi tratada como um crime “banal”, típico de comunidades simples, com um padrão de honra e devendetta acima e a margem da ordem jurídica. A produção de sujeitos na sociedade disciplinar, no Brasil, que transformou um arrombador, um ladrão furtivo em assassino e estuprador, e, após trinta anos de cárcere em uma massa amorfa, arruinado em sua carne e “alma”, recebeu o tiro de misericórdia, não do pescador de Joinville, figurante pouco perceptível na trama, mas, da sociedade de controle fundada nos bancos de dados informacionais e na persecução em “espaço liso” pelo olhar incansável da câmera, do julgamento midiático que o condenou pela terceira vez, primeiro como delinqüente monomaníaco, depois como louco e, por fim, como membro perigoso, irrecuperável e desestabilizador das regras normativas de convívio em seu meio social.   

Jack Abbott no Ventre da Besta

Jack Henry Abbott, nasceu em 1944, em Michigan, Estados Unidos, passou quase toda sua infância transitando de um orfanato a outro até que aos nove anos começa sua passagem por instituições de detenção juvenil, sendo por fim encerrado até a idade de dezoito anos em um reformatório. Com sua maioridade obtém seu livramento, porém, após seis meses é preso pelo crime de “passar cheque com insuficiência de fundos”, sendo condenado a uma sentença indeterminada de cinco anos. Após três anos na penitênciária, mata um outro detento, sendo julgado novamente obtém uma pena de vinte anos de encarceramento. Aos vinte seis anos, foge da prisão e é recapturado após seis semanas. De seus trezes anos à 1981, Abbott conheceu a liberdade somente por nove meses e meio e permaneceu preso em confinamento solitário por quatorze anos.

Em 1978, Norman Mailer, um dos escritores norte-americanos consagrados após a geração beatnik de Jack Kerouac, escrevia o livroDiário de um Carrasco, sobre a vida e execução de Gary Gilmore, um outro – ou ummesmo – detento passando seus últimos dias no “corredor da morte”. Abbott escreve ao escritor prontificando-se a ajudá-lo na compreensão da realidade de um preso no sistema carcerário norte-americano, como subsídio para a escrita de Mailer sobre Gilmore. A correspondência entre o literato consagrado desde os vinte anos e o prisioneiro que possuía quase o mesmo período de cárcere intensificou-se diante do talento de Abbott[8] e a força de seu relato. As cartas de Abbott foram, em 1981, reunidas por Mailer e enviadas ao seu editor, dando a público um dos mais fortes, corajosos e desafiadores escritos sobre a prisão, a sociedade capitalista e o governo estadunidense, No Ventre da Besta.

O seu enunciado, proferido logo no primeiro capítulo, possui um caráter desestabilizador dos saberes pedagógicos, recorrentes e homogêneos na instituição disciplinar Escola. A isenção de responsabilidade pela infância e adolescência adquire a forma do discurso da “desestruturação da família” como fator explicativo da rebeldia juvenil e da necessidade de incluí-la em outros orbes de controle e disciplina, – que não a família e a escola –, organizados pelo Estado. Abbott nos assevera sobre os eventos resultantes do discurso psico-sociológico que lhe atravessou a infância, cumprimento de sentença de cinco anos na Escola Industrial do Estado de Utah para rapazes – versão estadual americana da FEBEM de São Paulo – pelo ‘crime juvenil’ de ‘incapacidade de ajustamento aos orfanatos (Abbott, 1981:30). A criança ou adolescente que fica sob a “responsabilidade do Estado” vindo do que se chama um “lar desfeito” se torna propriedade do Estado, um ser “educado” pelo Estado que, como no seu caso, transita durante toda sua existência em instituições penais, do orfanato ao reformatório e, por fim, a prisão.

Após o sucesso editorial de No Ventre da Besta, Abbott consegue sua liberdade condicional e é enviado a uma instalação doExército da Salvação, para ex-condenados, no Soho, um dos bairros mais violentos da cidade de New York City. Em uma madrugada, voltando de um night club com duas amigas, Veronique de St.André e Susan Roxas, param em um café noturno para se alimentarem e encerrarem a noite. O gerente do café, Richard Adan, recusa-se a atender o pedido do grupo e expulsa Abbott do lugar sob a ameaça de uma faca. A discussão prossegue e Abbott se atraca com Adan, desferindo-lhe uma facada mortal. Seu julgamento ocorre poucas semanas depois, consubstanciando-se como um julgamento midiático em que a América mobiliza-se para a sua vendetta contra a arrogância que desafiou um povo, um governo, seu sistema de justiça e sua violência institucionalizada:

“… explique a América que ela não é um monstro furioso (como a Europa está cansada de dizer), gerado pelo sangue dos emigrantes, que eram o que havia de pior entre as nações do Velho Mundo. Diga-lhe que é uma covarde encolhida de medo, que apunhala pelas costas porque não é capaz – pois nunca tentou – de exercer seu poder sem violência. E porque é covarde, não respeita a razão. A América recorre ao uso da razão somente numa tentativafinal de persuadir, somente depois de ter tentado sem sucesso destruir um homem, somente quando já é tarde demais. (…) Este é o país mais injusto e tirânico de todo o mundo…” (Abbott, 1981:126).

Condenado, por homicídio culposo, que no Estado de New York, onde se realizou o julgamento, a pena máxima, definida em lei é de seis anos, Abbott foi penalizado em prisão perpétua, com direito a pedido de condicional fixado para o ano de 2001. Seu retorno à prisão evidencia menos sua natureza violenta do que o complexo trabalho exigido paradeseduca-lo, de extrair de sua natureza, os saberes e práticas modeladas pelo Estado como educador.

Em 1987, escreve com Naomi Zack, Ph.D. em Filosofia pela Columbia University, o livro My Return, que narra seu julgamento, sob a forma de Tragédia grega e que reúne suas cartas de prisão. O Abbott de 1987 não é mais o marxista-leninista, simpatizante de Cuba e dos movimentos de revolta dos palestinos no Oriente Médio. Torna-se um judeu ortodoxo, historiador, estudioso da Tora e sionista convicto, porém, a matriz essencial de seu pensamento filosófico, que permeou a escrita de No Ventre da Besta, permaneceu sendo a mesma, A Origem da Tragédia e Ecce Homo, do pensador alemão, Friedrich Nietzsche.

Em agosto de 2001, o pedido de condicional apresentado por Abbott é negado, sem direito a apelação até o ano de 2003. Aos cinqüenta e oito anos de idade, em dez de fevereiro de 2002, Abbott é encontrado em sua cela, enforcado, com a ajuda de um lençol e de um cadarço de sapato, tendo ao lado, uma nota de suicídio.

O suicídio foi questionado por sua irmã, talvez, a pessoa que mais conhecia Abbott, além dele mesmo, que se considerava a pessoa de maior resistência moral, mais capacidade psicológica para suportar o sofrimento(Abbott, 1981: 42). Sua resistência, uma vez quase foi quebrada, porém, realiza ao final, sua afirmação da vida, pois, segundo as palavras de Norman Mailer, “detestava a morte, suprema injustiça, a obscenidade final que a sociedade poderia lhe infligir”:

“Sabe o que é mais estranho nisso tudo? Estava quase preparado para me matar. Queria tão dolorosamente ficar livre! Sempre me sentia queimar, realmente pegar fogo com a necessidade de sair dali, ficar livre: fugir desta coisa que estava destruindo minha vida irremediavelmente. Venderia minha alma para me ver livre da prisão – mas não daria um só dia de trabalho honesto ou me ‘comportaria’ por um instante, para conseguir a mesma coisa. Não é esquisito? Pobre da minha alma! Em que estado ela devia estar para custar tão barato… (Abbott, 1981: 102)”.

Poder e Resistências

Chessman, João Acácio e Jack Abbott representaram três momentos distintos do cruzamento do poder e das resistências. Negando até a morte a construção midiática que tentaram lhe imputar, Caryl Chessman contribuiu de forma decisiva para impulsionar a campanha internacional contra a pena de morte e, para deflagração do movimento pela reforma das prisões, nas décadas de sessenta e setenta do século passado.

João Acácio, o Bandido da Luz Vermelha, no seu cruzamento com os dois diagramas de poder, a sociedade disciplinar e a sociedade de controle, demonstrou como a vida se coloca como alvo do poder e como o intolerávelsubsiste, sob modulações diferentes, em estratégias simultâneas, de soberania, de vigilância e de controle. Sua desaparição foi uma resultante “lógica” da irracionalidade de um complexo de saberes e poderes que para reatualizar-se depende da construção e redimensionamento permanentes do sujeito delinqüência, no espaço e no tempo.

Abbott, linha de fuga suicidaria, ou suicidado, de qualquer modo, não permitiu que seu ‘corpo’ e ‘alma’ fossem arrebatados pelo Estado, evidenciando como a produção de uma subjetivação ou construção do siliberta a vida no próprio homem, independente das forças limitadoras do poder. EmMy Return, Abbott referindo-se a Caryl Chessman considerou seus escritos como o principal acontecimento para o início do processo de reformas das prisões que continua até nossos dias, não somentereformando o sistema carcerário da Califórnia, mas, mudando o ponto de vista sobre as prisões em toda a América (Abbott, 1987: 172). A luta contra a pena de morte, contra a violentação da criança pelas instituições correcionais, as condições das prisões e os massacres cometidos pelo aparato policial contra a população carcerária colocam, segundo Folter (1989: 57-85) o Abolicionismo Penal em sua perpectiva restrita, em aliança com os pensadores reformistas. Em suaperspectiva mais ampla, o Abolicionismo Penal volta-se para a abolição de todo o sistema penal: a lei penal como um corpo de textos e doutrinas, a produção discursiva das organizações do Estado como a polícia (…), a administração carcerária, o ministério da Justiça (Folter, 1989: 58). Os escritos de Caryl Chessman se colocam dentro da perspectiva do Abolicionismo Penal, em sua dimensão restrita, sinalizando os momentos mais abusivos e brutais do sistema penal, porém, No Ventre da Besta de Jack Henry Abbott expõe a natureza intolerável de todo o sistema penal sinalizando não somente a pertinência, mas, a sensatez da defesa de sua abolição.

A relação entre poder resistência não significa necessariamente uma contraposição dialética, com a eliminação de um dos pólos antagônicos. Estamos diante da contraposição de forças, onde o possível curvar-se de uma resistência não significa a eliminação de uma força. Esta se dobra, recua, perde momentaneamente suas energias, mas, retorna, em uma outra materialidade, revigorada em outros corpos, comolinha de fuga. A desaparição de Chessman, de João Acácio, de Abbott, não significa o triunfo do poder da prisão sobre resistências, mas, o deslocamento da linha de fuga de conformações corpóreas para outras. E o jogo continua, aberto, heterogêneo, desterritorializado, resistênciaabrupta e fugaz na sua aparição, reaparecerendo ali, em outro canto, em outro momento, surpreendendo como força revigorada diante dos diagramas de poder.

Gilles Deleuze comentando a tristeza que acometeu Foucault, após o malogro do movimento pela reforma das prisões após 1970, delineia como o filósofo se recompõe, concebendo a morte como coextensiva à vida, ocupando lugares no cortejo impessoal do morre-se, mas, como a vida se constitui demultiplicidades de mortes parciais e singulares (Deleuze, 1998: 128), onde o de fora se desvia, arrebatando o homem para além do terror, como singularidades de resistências nas fissuras de diagramas instáveis, linhas selvagens de fuga e de afirmação da vida

Bibliografia

ABBOTT, Jack Henry. No Ventre da Besta. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.

_______ My Return. New York: Prometheus Books,1987.

CLARK, Howard. The True History of Caryl Chessman. In:www.crimelibrary.com/classics3/chessman/16.htm.

DELEUZE, Gilles. Foucault. Lisboa: Vega, 1998.

FOLTER, Rolf S. De. Sobre la fundamentacion metodologica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparacion de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault apud COHEN, Stan (org.), Abolicionismo Penal, Buenos Aires, Sociedad Anonima Editora Comercial, Industrial e Financeira, 1989: 57-85.

SILVA, Edivaldo Vieira da. Mídia, Sujeito e Poder: O Bandido da Luz Vermelha. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica. São Paulo: 2001.

[1] A VIDA para os Gregos e F. Nietzsche.

[2] Seu nome de batismo, Carol, de origem dinamarquesa, foi substituído por Caryl, em sua adolescência, para evitar as picardias juvenis, por ser um nome, nos Estados Unidos, tipicamente feminino.

[3] Chessman recusa seu direito a um advogado e conduz sua própria defesa, compondo um júri de forma temerária de onze mulheres e dois homens, para um julgamento sobre violência sexual.

[4] Chessman, Caryl. Trial By Ordeal. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, Inc., 1955 e The Face of Justice. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, Inc., 1957

[5] Conferência pronunciada por Nelson Hungria no Centro Acadêmico XI de Agosto. Maio de 1959.

[6] A carta de Caryl Chessman ao San Francisco Examiner prenuncia o turbilhão de mudanças que convulsionará a década de sessenta do séc. XX, em particular, o movimento pela reforma das prisões e o retorno da força de enunciação mais radical, do filósofo anarquista William Godwin, oAbolicionismo Penal. Por sua aparição como enunciado discursivo desestabilizador e sua sinalização para movimentos mais revoltos, a carta de Chessman, também merece seu retorno na onda dos devires, após quarenta e um anos de sua publicação:

“Caro Sr. Stevens:

“Como deve saber, os carrascos, na Califórnia obedecem a horário de bancos. Nunca executam alguém antes das dez da manhã e nunca depois das quatro da tarde. Quando ler esta carta, já eles me terão executado. Terei trocado o esquecimento por um incrível pesadelo que durou 12 anos. E o senhor terá presenciado o ato final ritualístico. Espero e confio em que o senhor será capaz de transmitir a seus leitores que morri com dignidade, sem medo animal e sem bravatas. Devo isto a mim mesmo, mas devo mais a muitos outros. A hora da morte chegará a mim dentro de poucos minutos. Resta-me de vida, segundo suponho, menos de dezoito horas. Passarei estas horas numa das celas, a alguns passos da câmara de gás”.

“… Eu desejava continuar vivendo. Acreditei apaixonadamente que poderia oferecer uma contribuição com meus livros, não só à literatura, como à minha sociedade. Eu estava determinado a retribuir, assim, às milhares de pessoas de tantas nações que me defenderam e acreditaram em Caryl Chessman como ser humano. Eu teria tido grande satisfação e um sentimento de nobres objetivos se tivesse sobrevivido, para justificar seu compreensivo julgamento. Mas um severo destino, revestido de roupagens jurídicas, decretou minha morte numa pequena sala octogonal, pintada de verde”.(…)

“Chegou a hora, em suma, de morrer. Então assim acreditam muitos funcionários da Califórnia o Estado estará vingado e vingado estará seu sistema de Justiça retributiva. O Estado terá acalmado seu espírito de vingança. Mas, vingança contra o quê? Câmaras de gás podem matar gente e não contrafações de sinistros e arrependidos criminosos lendários, “monstros mitológicos”.

“Face a face com a morte repito enfaticamente e sem hesitação: jamais fui o famoso “bandido da luz vermelha”. O Estado da Califórnia condenou o homem errado, teimosamente recusou-se a admitir a possibilidade de seu erro, e muito menos, a corrigi-lo. O mundo terá em tempo provas deste monstruoso e selvagem erro. Não se orgulhará desses fatos. Mas, ponhamos aqui de lado a questão de culpa ou inocência. O que me impele a escrever esta carta é minha firme convicção de que neste drama está envolvido algo mais que a morte de um homem.

“(…) Vou morrer com conhecimento de que deixo atrás de mim outros homens vivendo seus últimos dias no corredor da morte. Declaro aqui que a prática de matar ritualmente e premeditadamente outros homensenvergonha e macula nossa civilização, sem nada resolver contra aqueles que se lançam violentamente contra a sociedade e eles próprios.

Assim, poderemos encontrar solução racional e humana para o problema que a sociedade deve fazer com tais seres humanos. Este problema não deve jamais ser enterrado juntamente com o homem executado e suas vítimas. Ele não será enterrado junto comigo. Escolhi meu próprio caminho para chamar a atenção mundial para os corredores da morte e câmaras de gás. Não encaro a mim mesmo como um herói ou mártir. Pelo contrário, sou ou louco confesso, profundamente consciente da natureza e qualidade dos loucos erros cometidos em meus anos de rebelde juventude. Não espero parecer grandiloqüente e didático. Mas, estas são crenças que ardem dentro de mim mais luminosamente que a minha esperança de sobreviver. Morrendo, devo reafirmar esta crença e exprimir minha última esperança de que estes que saíram em minha defesa continuem lutando contra as câmaras de gás, contra os carrascos e contra a justiça vingativa. Certamente mereceremos algo melhor. Extingue-se meu tempo. Devo encerrar aqui minha carta.Sinceramente, Caryl Chessman”.

[7] Deus do Tempo, na mitologia grega, Pai de Zeus. Entre os romanos, era identificado com a divindade Saturno.

[8] “Gosto de Abbott por estar vivo e ter aprendido a escrever tão bem como escreve.” (MAILER, 1981: 18).