Estado de Direito Jurídico

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN 1809-2721

Número 01 – Julho/Dezembro 2005

Estado de Direito Jurídico

Vinício C. Martinez – Bacharel em Direito e em Ciências Sociais. Publicou livros e inúmeros artigos, é Mestre em educação (UNESP-Marília) e Doutor em Educação (USP), e mestrando em Direito (Faculdade Estadual de Direito – Jacarezinho-PR). É professor de Teoria Geral do Estado (graduação) e Fundamentos Sociológicos do Direito (Mestrado em Direito), na Fundação/UNIVEM de Marília, e membro Pesquisador do NEPI (Núcleo de Estudos, de Pesquisas, de Integração e de Práticas Interativas), filiado ao CNPq.

Resumo: O texto irá argumentar no sentido de que o Estado Jurídico é um Estado mais justo mas, como princípio-motor dessa trilha, veremos três questões básicas: a) as cláusulas pétreas como segurança da democracia; b) o Direito como mecanismo de prevenção à concentração de poder; c) o Direito como meio assecuratório da Justiça Formal e Material — ou, ao menos a garantia de um pouco de imparcialidade no âmbito da Justiça Formal. De modo simples e objetivo, podemos dizer que o Estado Jurídico é um Estado de Direito que deu certo. No Estado Jurídico, a regra da bilateralidade da norma jurídica especifica as fundações da Teoria da Autolimitação do Poder Político e, por si, é o que evidencia um maior grau de juridicidade.

Palavras-chave: Estado de Direito; Justiça; cláusulas pétreas; regra da bilateralidade da norma jurídica; Teoria da Autolimitação do Poder Político; maior grau de juridicidade.

Sumário: 1. Um Estado de Direito mais justo; 2. Direitos – Garantias – Cláusulas Pétreas; 3. O Estado como Sujeito de Direitos; 4. Estado de Direito, Jurídico e Judiciário; 5. Uma síntese de alguns mecanismos de controle; 6. Bibliografia.

  1. Um Estado de Direito mais justo

No Estado Jurídico, a Justiça é uma referência institucional originária, ou é a própria meta do Estado de Direito. Mas, inicialmente, é importante frisar o significado das cláusulas pétreas porque são a salvaguarda do “controle jurídico-institucional do poder”. Assim, sob o exercício regular do poder institucional ou constituído, dá-se a passagem do clássico Estado de Direito Formal a um modelo conceitual mais elaborado, ao qual chamaremos de Estado Jurídico. Deixar de ser só um conjunto de formalidades, não significa que deixaremos o campo das formalidades, a exemplo do devido processo legal.

No modelo clássico do Estado de Direito Formal, acentue-se que vigora a característica da passividade, do tipo: “o Direito não socorre a quem dorme”; “o Judiciário precisa ser provocado”.

A existência na prática diária, efetiva, do Estado de Direito (deixando de ser só um conjunto de formalidades) é o que melhor caracteriza o Estado Jurídico. De modo simples, o Estado Jurídico é o Estado de Direito colocado na prática e que deu certo. Talvez pudessem servir de exemplos, países como a Suíça, a Suécia, a Finlândia e alguns outros. O Estado Jurídico demonstra a passagem da passividade à ação, das formalidades do Direito à busca real da Justiça[1].

Em outra expressão, de fundo mais ideológico, também poderíamos dizer que o Estado Jurídico não é nada mais do que a República Capitalista sob o controle do sistema econômico e político do Welfare State. Tecnicamente, todavia, o sentido requerido pelo Estado Jurídico é mais específico:

  • A ordem jurídica do Estado de Direito Formal é atuante, bem intencionada e bem sucedida, bem como seu ordenamento jurídico é republicano(Bobbio, 1999).
  • O conceito de “ordem jurídica bem sucedida” acompanha a definição de ordenamento jurídico sob o comando da República, isto é, conceitualmente falando, não há lógica em haver um conjunto de leis, de regras, de direitos e de ações públicas ou do Estado voltadas ao mal da coisa pública.
  • As cláusulas pétreas devem garantir e assegurar esse controle republicano das instituições políticas fundamentais e das instituições reguladoras do Estado.

Esse conjunto de regras gerais ainda irá dispor, de modo mais específico, acerca das cláusulas pétreas. 

  1. Direitos – Garantias – Cláusulas Pétreas

A Constituição dispõe que a forma de organização federativa do Estado não pode ser abolida: o dispositivo constitucional aglutina e agasalha, além da Federação, a observância integral da democracia, do Estado de Direito e a divisão dos poderes.

Mas será retomando interpretação de Von Ihering que Aderson de Menezes irá sugerir que na Teoria da Autolimitação do Poder Político também se encontra a matriz doutrinária condicionante das cláusulas pétreas. As cláusulas pétreas devem resguardar os meios práticos necessários a um maior grau de juridicidade. Vejamos em sua análise que o Direito deve proteger a sociedade do arbítrio: 

Na fase atual da vida das sociedades, os dois elementos do Direito – a coação e a norma[2] – são insuficientes para criar o que chamaremos o Estado Jurídico. Falta-lhe ainda um elemento – a norma bilateralmente obrigatória – em virtude do qual o próprio Estado se inclina diante das regras que editou e às quais de fato concede, enquanto existirem, o império que por ato seu lhes atribuiu. É o que chamaremos a ordem jurídica […] O Estado ordena, o súdito obedece […] A linguagem compreendeu bem este fato, quando designou a injustiça do Estado pelo nome de arbítrio (Willkür). O arbítrio é a injustiça do superior; distingue-se da do inferior, porque o primeiro tem a força a seu favor, ao passo que o segundo a tem contra si […] Noção puramente negativa, o arbítrio supõe como antítese o direito, de que é a negação: não há arbítrio, se o povo ainda não reconheceu a força bilateralmente obrigatória das normas jurídicas […] Acompanha, pois, a todo princípio de direito a segurança de que o Estado se obriga a si mesmo a cumpri-lo, a qual é uma garantia para os submetidos ao Direito […] Não só se trata de conter a onipotência do Estado mediante a fixação de normas para a exteriorização de sua vontade, senão que trata de refrear-lhe mui especialmente, mediante o reconhecimento de direitos individuais garantidos. Esta garantia consiste em outorgar aos direitos protegidos o caráter de imutáveis (Menezes, 1998, p. 70-71 – grifos nossos). 

Como se vê, a idéia de direitos imutáveis (ou direitos naturais que foram positivados como direitos ou como garantias fundamentais) refere-se à defesa da sociedade diante de um Estado que tende à centralização.

Com base na clássica e tradicional divisão do poder, Zippelius (1997) irá ressaltar essa qualidade ou função mais específica da própria Teoria da Autolimitação do Poder Político:

Na “clássica” doutrina da divisão dos poderes, o princípio político da limitação dos poderes é traduzido num esquema de distribuição das competências. O poder do Estado é um poder político juridicamente estruturado […] Assim, a distribuição do poder do Estado evidencia-se no essencial na distribuição das competências, ou seja, das competências para a adoção de regulamentações gerais e de decisões concretas juridicamente vinculativas (Zippelius, 1997, 409 – grifos nossos).

A regra da bilateralidade da norma jurídica obriga o Estado a seguir os freios criados, pelo próprio Estado, para o cidadão, e essa coerção bilateral é um contrapeso à concentração de poder. Guardar, proteger o Direito que impede o arbítrio é o objetivo de toda cláusula de pedra. Portanto, neste caso, a proteção da cláusula pétrea é uma garantia democrática — uma vez que, as defesas da Democracia e da República, sob o Estado Jurídico, são como rochas indevassáveis.

Referindo-se à característica da bilateralidade da norma jurídica de forma geral, e não especificamente em relação à sua imposição quanto ao Estado, Ascensão (baseado em Miguel Reale) revela essa condição de imposição geral, global, uma vez que: “Seria próprio da regra jurídica ligar entre si dois ou mais sujeitos, criar relações entre eles, de maneira que as posições de uns seriam a contrapartida das posições dos outros” (Ascensão, 2001, p. 537).

A pretensão de sua leitura é realçar as condições de sociabilidade que a norma jurídica tanto implica, quanto é implicada na esteira da relação social. Isto é, a relação jurídica, como fato social[3], tanto produz níveis de interação social quanto se vê sujeita às condições de sociabilidade predominantes:

No fundo, o que os autores pretendem quando falam de bilateralidade ou correlatividade pode exprimir-se utilmente falando emsocialidade ou alteridade da regra jurídica […] A regra jurídica não se ocupa de posições individuais senão para demarcar uma posição socialmente relevante dum sujeito. Por isso, as regras jurídicas, ao menos mediatamente, garantem superordenações e impõem subordenações. Este elemento de atribuição de posições socialmente relevantes fá-las distanciar das regras morais, e comporta um elemento útil para a determinação do próprio conceito de direito (Ascensão, 2001, p. 538).

Assim, vê-se que o sentido aplicado à bilateralidade da norma jurídica, no texto (posição estatal), é diferente do exposto acima (de implicações sociais), especialmente porque acarreta implicações diretas e objetivas de controle do Poder Político. De modo simples, a “Institucionalização do Direito e do Poder Político” é o início da transformação do Estado Direito Formal no “Estado como sujeito de direitos”.

  1. O Estado como Sujeito de Direitos

Se equipararmos o Estado ao “sujeito de direitos” — efetuando-se assim a síntese de vontades legítimas —, então, o Estado como “corpo múltiplo” (Estado Corporativo) tanto produz, quanto ingere a relação Direito/Dever.

Por outro lado, se aí também se configura a ação das classes sociais e das lutas sociais (o antagonismo e a exclusão), aí o Estado mais se pareceria como um “sujeito de direitos esquizofrênico”.

Mas estes casos, de graves crises ou entraves sociais e econômicos, é que o Estado Jurídico tem reservado uma de suas características ou funções derivadas (indiretas), quais sejam: amenizar os conflitos sociais, políticos e econômicos, a fim de que não se tornem crises institucionais ou até mesmo as perigosas quebras ou solução de continuidade das instituições jurídicas, como os golpes e a guerra civil.

Diferentemente do Welfare State, que desmobiliza as lutas sociais por meio de políticas assistencialistas, o Estado Jurídico procura pela mediação das clivagens, ao invés de simplesmente negá-las. Neste sentido, o Estado Jurídico é muito mais popular do que o modelo economicista do Welfare State.

De forma mais técnica, é essa característica que impede a relação entre Poder Extroverso e arbítrio, pois haveria a imposição geral e abstrata da “legitimidade assegurada”. Crer na legitimidade do Direito assegura o posto de vanguarda jurídica ao Estado Jurídico — o que também aprimora a precisão e o refinamento institucional.

O que faz o Estado Jurídico prevalecer — onde está estruturado — é a crença na previsibilidade da eficácia dos princípios públicos do próprio Estado de Direito, isto é, lá onde é possível, o Povo não espera receber menos do que o Direito Justo e, por isso, sua crença no Direito alimenta a expectativa da liberdade, da igualdade, da legalidade, da responsabilidade. Essa expectativa do Direito e da Justiça está atrelada diretamente aos princípios da igualdade e da certeza, como indica Norberto Bobbio:

A principal garantia da máxima que se desejaria fosse o fundamento do nosso ordenamento jurídico: “A lei é igual para todos”, é, indubitavelmente, a generalidade da norma, isto é, o fato de que a norma se dirija não àquele ou a este cidadão, mas à totalidade dos cidadãos, ou então a um tipo abstrato de operador na vida social. Quanto à descrição abstrata, ela é considerada como a única capaz de realizar um outro fim a que tende todo ordenamento civil: a certeza. Por “certeza” se entende a determinação, de uma vez por todas, dos efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão esteja em grau de saber, com antecedência, as conseqüências das próprias ações (Bobbio, 2005, p. 182).

Por sua vez, é esta mesma certeza na igualdade jurídica o que alimenta e sustenta o Estado de Direito na atualidade – mas, Estado Jurídico, na terminologia do texto:

Se refletirmos sobre o quanto tenha inspirado a moderna concepção do Estado de direito a ideologia da igualdade e da certeza frente à lei, não será mais difícil dar-se conta do estreitíssimo nexo intercorrente entre teoria e ideologia, e compreender, portanto, o valor ideológico da teoria da generalidade e abstração, que tende não a descrever o ordenamento jurídico real, mas a prescrever regras para tornar o ordenamento jurídico ótimo, aquele em que todas as normas fossem em seu conjunto gerais e abstratas (Bobbio, 2005, p. 182).

A já alegada principal garantia da máxima que se desejaria fosse o fundamento do nosso ordenamento jurídico, e que é a igualdade jurídica, igualmente supõe a igualdade entre os pares sociais (os muitos e múltiplos cidadãos) e destes para com o Estado. A igualdade apregoada por Bobbio tem de ser vista pelo ângulo de que o Estado também é sujeito de direitos, ou como diz Jellinek: Temos de partir do pressuposto da possibilidade da autolimitação jurídica do Estado, porque, ao submetê-lo ao Direito, acabaria por se converter em sujeito de direitos e de deveres(Jellinek, 2000, p. 195).

Quanto ao direito regulador-máximo do Estado, o encontro entre Teoria do Estado e Direito Constitucional, Jellinek será muito esclarecedor, pois os direitos protegidos por cláusulas pétreas devem incluir tanto direitos individuais quanto os chamados Direitos do Estado:

A idéia da auto-obrigação do Estado com respeito a seu próprio direito, tem desempenhado um papel importantíssimo na formação do constitucionalismo moderno. Não só porque trata de conter a onipotência do Estado mediante a fixação de normas para a exteriorização de sua vontade, senão porque trata de refiná-lo mais especialmente mediante o reconhecimento dos direitos individuais garantidos. Esta garantia consiste em outorgar o caráter de imutáveis aos direitos protegidos (Jellinek, 2000, p. 351 – tradução livre).

E assim temos a clara relação integradora entre autolimitação e auto-obrigação do Estado, direitos fundamentais (tanto aos direitos individuais, quanto às garantias institucionais) e cláusulas pétreas. Este é o conjunto ou amplo leque de componentes de que se vale a principal corrente explicativa da Teoria Jurídica do Estado – ramo teórico a que se liga o Estado Jurídico.

A “Institucionalização do Direito e do Poder Político” já indicará que se trata de uma fase avançada em direção à transformação/formação do Estado Jurídico, principalmente se entendermos que aqui se trata das formalidades tanto do Direito, quanto da Política, e que tem por função evitar a ocorrência da violência e a consagração da corrupção.

Um exemplo claro disso é o fato de que o Legislativo (mobilizado por “n” motivos) deve/pode pressionar o Executivo e a si mesmo, bem como o Judiciário é capaz de decidir contra o Estado – especialmente o Judiciário chamado de “primeira instância”.

Da mesma forma define Canotilho, pois o Estado de Direito é um conceito altamente elaborado e por isso também não deveria ser confundido com derivações, distorções ou deformações decorrentes do seu próprio emprego ou uso. Portanto, seguindo Canotilho (1999), a divisão do poder lhe é inerente porque inibe naturalmente o arbítrio

A separação de poderes, a garantia de direitos e liberdades, o pluralismo político e social, o direito de recurso contra abusos dos funcionários[4], a subordinação da administração à lei constitucional, a fiscalização da constitucionalidade das leis […] a publicidade crítica, a discussão e dissensos parlamentares e políticos, a autonomia da sociedade civil (Canotilho, 1999, p. 16).

Como vimos, o Estado Jurídico formulou as garantias, as defesas e os direitos que atuam para obstaculizar ou evitar o arbítrio, mas — se mesmo assim se instalou o mal público na República: um contra-senso lógico, mas jurídica e politicamente muito plausível —, também traz a previsão das sanções ao abuso de poder. É este o compasso institucional descrito pela regra da bilateralidade da norma jurídica.

No Estado Jurídico, o Direito funciona como primeiro regulador e como meio propulsor da Autolimitação do Poder Político — este que foi instituído e garantido, anteriormente, pelo próprio Estado de Direito Formal. O abuso de poder, portanto, deve estar sempre ao alcance da própria coerção estatal. Também por isso a discricionariedade é tida como dever (agir dentro dos limites e do rigor estabelecidos pela própria lei) e não se configura como poder, porque seria equivalente a decidir acima ou ao arrepio da lei.

  1. Estado de Direito, Jurídico e Judiciário

No Estado de Direito prevalece o princípio da isonomia (equiparar para buscar e auferir igualdade entre os sujeitos de direito)[5] e de onde decorre, é claro, a própria igualdade formal (todos são iguais perante a lei), a liberdade negativa[6] e a eqüidade[7].

Já no Estado Jurídico o princípio fundador é o da Autolimitação do Poder Político (funcionando como mecanismo de elevação ou de aprofundamento dos níveis de juridicidade do Poder Político), quando o Direito e os meios democráticos tendem a controlar melhor o poder do Estado – por exemplo, garantindo a institucionalização da separação dos poderes.

O Estado Jurídico pode ser sinônimo de Estado Judiciário, mas ressalve-se que isto se verificará apenas se atentarmos para a ocorrência de uma eficiente[8] separação dos poderes e que disso, inevitavelmente, também resulte uma maior desenvoltura (autonomia e interdependência) do Poder Judiciário.

Isto revela a importância de se discutir a reforma do Judiciário, mas uma reforma que garanta duas coisas ao mesmo tempo: a) maior autonomia; b) maior grau de juridicidade à política[9]. Trazer um maior grau de juridicidade à política é uma das mais importantes funções alocativas do Poder Público. Portanto, ao contrário do que possam pensar alguns dos “mais positivistas”, não se trata só da aplicação unilateral e incidente do Poder Extroverso.

Por isso, o Estado Jurídico também pode ser entendido como um Estado de Direito Moderno. Neste caso, como Estado atuante e provocador da Justiça formal e material, ou seja, o Estado Jurídico é o Estado de Direito que, realmente, presta serviços públicos de relevância para o conforto e convívio da população[10].

O Estado Jurídico ainda pode ser entendido como uma fase sucessória do Estado de Direito, quando conferimos maior grau de juridicidade à resolução dos conflitos políticos – portanto, sendo o Estado de Direito precedente, o Estado Jurídico lhe é decorrente[11]. O que se acentua aqui é realmente esse maior grau de juridicidade, mas, no fundo, são como duas fases ou faces do mesmo conceito, e que vêm sendo elaborados desde o século XVII. Contudo, será um outro modelo de Estado, principalmente se compreendermos que ganhou impulso com as novas formas instauradas pelo chamado Estado Capitalista a partir do século XVIII (a fase mercantilista do capital). 

  1. Estado Judiciário

No mais, nessa análise do Estado de Direito, do Estado Judiciário e do Estado Judicial [12], pretendemos destacar uma noção crítica, mas acima de tudo teleológica, do Direito e do Estado. Por crítica, entenda-se a análise que ressalta aspectos ideológicos que estão na base do Direito e do Estado como, por exemplo, as artimanhas e as chicanas que obscurecem e embargam nossa compreensão acerca da realidade política.

Já por perspectiva teleológica (ainda que redundante) destacamos a interpretação que busca no Estado os meios necessários à realização das finalidades sociais, populares e democráticas desse mesmo Poder Político. Sem isso, não há projeto social e político que resista às formas autoritárias do poder, às injustiças, aos privilégios ou às mesquinharias dos donos do poder. Mas não se veja nas afirmações nenhuma imputação de verdade ou determinação absoluta e irrefreável do poder, pois, historicamente, é fácil notar que a capacidade teleológica da sociedade civil é sempre superior aos Estados abusivos.

Por fim, podemos dizer que aplicar o Direito Justo é promover uma revolução na estrutura social e política que porventura ainda se mantenha atrelada a benefícios injustos. E nisto, ao propor a Justiça por meio do Direito, o Estado de Direito neoclássico ou Jurídico é inovador e revolucionário. Num país como o nosso, o Direito mantém uma relação inversamente proporcional às necessidades sociais dos mais pobres. 

  1. Da divisão e do equilíbrio entre os poderes

Entre o Executivo e o Judiciário é necessário acabar com todo tipo de “relações de apaziguamento” entre ambos ou, simplesmente, deveria acabar a indicação/nomeação dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF) e dos demais tribunais, pelo Executivo. Essa relação de ingerência, não poucas vezes, desvirtua toda e qualquer pretensão de “equilíbrio dos poderes”, como querem os defensores do “sistema de freios e contrapesos”.

Uma outra tarefa mais específica envolveria o Judiciário, agora com mudanças simples, mas de efeito imediato e transformador, como por exemplo: 1) criação de Tribunais especiais para crianças no Brasil todo; 2) para os sem-terra nas regiões de maior conflito, contratação de sociólogos especializados na “questão agrária”; 3) para os sem-teto, contratação de sociólogos especializados na “questão urbana”; 4) para os índios (na região Norte), contratação de antropólogos especializados na “questão indígena”; 5) para as mulheres, pobres e negros que se sintam maginalizados nos tribunais comuns; 6) para as violações da chamada 5ª Geração de direitos, com destaque para os crimes informáticos e à avaliação do meio ambiente.

Trata-se de uma proposta concreta da chamada “divisão de tarefas” e que se segue à clássica interdependência dos poderes. Percebe-se como também seria uma aplicação efetiva e prática do “princípio público da especialidade” – o que requer, igualmente, a contratação de outros profissionais especializados, como psicólogos, antropólogos e sociólogos.

Em relação ao Executivo e ao Legislativo, também de modo especial, a reforma política teria de impor a fidelidade partidária e teria que passar por uma punição muito mais grave aos casos de corrupção e demais crimes do colarinho branco, com a suspensão dos direitos políticos (talvez até em definitivo), além da perda do patrimônio pessoal (e familiar, se forsse comprovado que os familiares são “laranjas”), para pagar o que foi desviado e roubado do erário público.

Estas são reformas gerais e não estão na mesma “altura da estrutura do poder institucional”, porém, são mais do que necessárias. Com isso, poderíamos mostrar que o realismo político pode ser endereçado ao bem público; afinal, hoje, o Estado é o que mais precisa de resultados positivos e éticos.

Na essência, o Estado Jurídico é o Estado de Direito que cumpre com suas funções alocativas

  1. Função Alocativa

A maior e melhor demonstração pública da função alocativa do Estado — pois que o Estado aloca para si certas tarefas, funções e ações consideradas muito específicas ou de complexidade exagerada[13] — se dá pela aplicação justa e ampla do princípio correcional do Direito. No Estado Jurídico, aplicar o Direito com isonomia e parcimônia é pura obrigação do Estado e por isso é esta a função alocativa de maior relevo, da qual o Estado não pode abdicar em hipótese alguma.

Desse modo, algumas atuações/funções são distintas e descreveriam claramente a finalidade pública do Estado Jurídico, na prática, como:

  • Organizar/Efetivar o Estado de Direito.
  • Combater/inibir o arbítrio ou o abuso de poder.
  • Promover/estimular:
  1. Um maior grau de juridicidade.
  2. Melhor funcionamento das instituições jurídicas.

2.1 – objetiva alcançar a Justiça.

  1. Um maior equilíbrio entre as Instituições Políticas.

Desse modo, ao menos teoricamente, o Estado Jurídico ainda é capaz de dissolver/minimizar um dos mais emblemáticos (e falsos, mal colocados) problemas da República: a dificuldade de se atribuir responsabilidades públicas quando se pensa (erroneamente) que o público não tem dono e, por isso, ninguém precisa se responsabilizar.

No Estado Jurídico, o Estado se coloca como primeiro responsável pelo que é de todose, com seu gesto, anima/estimula o povo a perseguir as mesmas metas coletivas. Para os que vivem a ordem jurídica, sob o Estado Jurídico, não soa estranho que de fato possa haver materialidade ou efetividade das finalidades públicas do Estado, na sua prática institucional cotidiana e de modo relativamente constante. Portanto, os princípios públicos gerais do Estado de Direito, estão em vigência e há grande expectativa de continuidade.

No Estado Jurídico, a regra da bilateralidade da norma jurídica (além de funcionar como meio específico) objetiva especificar as fundações da Teoria da Autolimitação do Poder Político e, por si, é o que evidencia um maior grau de juridicidade: este, concluindo, é o fim ou objetivo proposto e almejado pelos que desejam um Direito Justo.

  1. Uma síntese de alguns mecanismos de controle

O Estado Jurídico deve edificar os instrumentos que possam inibir ou regular o apego excessivo às concepções que valorizam e enaltecem a visão simplista do Estado Instrumental. Dizemos isto porque a definição jurídica de Estado, mais costumeira, só realça esses aspectos instrumentais do Estado, do Poder e do Direito:

Do ponto de vista de uma definição formal e instrumental, condição necessária e suficiente para que exista um Estado é que sobre um determinado território se tenha formado um poder em condição de tomar decisões e emanar os comandos correspondentes, vinculatórios para todos aqueles que vivem naquele território e efetivamente cumpridos pela grande maioria dos destinatários na maior parte dos casos em que a obediência é requisitada. Sejam quais forem as decisões. Isto não quer dizer que o poder estatal não tenha limites (Bobbio, 1987, p. 95).

Hoje, notoriamente em função das críticas de conteúdo (mais o conteúdo e a função, do que a forma e o modelo[14]), toda a análise instrumental do Estado iniciada por Kelsen é importante, uma vez que nos permite ver as instituições estatais em seu funcionamento administrativo. Porém, limitados a isso, a lenda de que a Justiça é o conteúdo do Direito continuaria sendo exatamente isso, ou seja, lenda: “Com a terminologia de Kelsen, o Estado enquanto ordenamento coativo é uma técnica de organização social: enquanto tal, isto é, enquanto técnica, ou conjunto de meios para um objetivo, pode ser empregado para os fins mais diversos” (Bobbio, 1987, p. 94).

É preciso ter sempre à mente o processo histórico-ideológico que levou à formação do Direito na modernidade ou, mais exatamente, do Direito como meio de frenagem do próprio Poder Político e que outrora foi sua fonte de nascimento:

Uma ulterior fase do processo de limitação jurídica do poder político é a que se afirma na teoria e na prática da separação dos poderes. Enquanto a disputa entre estamentos e príncipe diz respeito ao processo de centralização do poder do qual nasceram os grandes Estados territoriais modernos, a disputa sobre a divisibilidade ou indivisibilidade do poder diz respeito ao processo paralelo de concentração das típicas funções que são de competência de quem detém o supremo poder num determinado território, o poder de fazer as leis, de fazê-las cumpridas e de julgar, com base nelas, o que é justo e o que é injusto. Embora os dois processos corram paralelamente, são mantidos bem diferenciados pois o primeiro tem a sua plena realização na divisão do poder legislativo entre rei e parlamento, como ocorre antes de todos os demais na história constitucional inglesa, e o segundo desemboca na separação e na recíproca independência dos três poderes — legislativo, executivo, judiciário —, que tem sua plena afirmação na constituição escrita dos Estados Unidos da América (Bobbio, 1987, p. 99). 

Depois dessa regulação jurídica do Poder, como fase avançada desse processo, há que se destacar o papel primordial desempenhado pela declaração e garantia dos direitos fundamentais:

A última luta pela limitação do poder político foi a que se combateu sobre o terreno dos direitos fundamentais do homem e do cidadão, a começar dos direitos pessoais, já enunciados na Magna Charta de Henrique III [1225] até os vários direitos de liberdade, de religião, de opinião política, de imprensa, de reunião e de associação, que constituem a matéria dos Bill of Rightsdos Estados americanos e das Declarações dos direitos do homem e do cidadão emanadas durante a revolução francesa […] Segundo a terminologia Kelseniana, eles constituem limites à validade material do Estado (Bobbio, 1987, pp. 100-1). 

No tocante à separação dos poderes, como princípio de regulagem do Poder estabelecido, ainda é notória a posição assumida pela Federação. A união federativa contrabalanceia a centralidade administrativa (agora na União), concomitantemente com a expansão de parcelas de autonomia política das partes, dos Estados-Membros. A articulação entre Democracia, República e Federação deve ser uma realidade.

Ainda é preciso destacar que, no Estado Jurídico, devemos passar da simples idéia do Direito à sensação da Justiça e é claro como essa relação envolve a questão da consciência: “O direito não é uma simples idéia, é uma força viva. Por isso, a justiça sustenta numa das mãos, a balança com que pesa o direito, enquanto que, na outra, segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito” (Ihering, 2002, p. 27).

Em relação ao Estado e ao Direito — como partes do mecanismo de mudança social —, pensamos em três níveis de consciência:

1) o nível elementar em que o sujeito de direitos vê só a si mesmo e a seus interesses. Aqui o Outro, o outro sujeito social de direitos, é mais um desafeto ou concorrente direto: “aquele que violou meu direito de propriedade”; “aquele sujeito que abusou do seu direito e invadiu o território alheio”. O Outro não passa de aquele porque está excluído do nosso rol de direitos primários – não será benquisto ou bem-vindo, se julgarmos que nossos direitos individuais podem sofrer algum abalo em suas matrizes. Portanto, o aquele é o Outro excluído. Talvez por isso se diga aquele outro, em diminutivo. A Revolução Inglesa, de 1688-69, é um nítido exemplo histórico: “A propriedade e o direito têm cabeça de Jano, com face dupla. A uns volta uma das faces, aos demais, a outra” (Ihering, 2002, p. 28).

2) um tipo de nível intermediário, em que se acredita que o Direito possa ser um mecanismo de mudança social, quando se supõe que o Outro deve ser incluído. Neste caso, há o reconhecimento prático dos direitos básicos que antes só pertenciam a um grupo minoritário. Aqueles direitos que só pertenciam à categoria dos mesmos passam agora a pertencer a novos sujeitos sociais de direitos. O Outro passa a existir porque novos direitos são criados, além dos tradicionais que passam a serreconhecidos, incrementados, pelo reclamo dos que não os tinham acessado historicamente. O aquele não existe mais porque foi incluído no jogo democrático e porque o Direito está ao alcance – mas não se rompeu totalmente a categoria dos direitos individuais. Assim, ainda prevalece o direito de propriedade, mas agora é preciso reconhecer o Outro, por meio, por exemplo, da Justiça Social. É um discurso próprio à democracia radical[15] e a Revolução dos Cravos, em Portugal é um bom exemplo.

3) Ocorre quando devem se superar tanto o Outro, quanto o aquele-outro (outrora banido), pois o direito a ter direitos pressupõe, neste caso, um Direito não mais pautado na propriedade privada ou nas meras garantias individuais dos direitos. Para outros, nesta fase, estaríamos acima do Direito, uma vez que a consciência social acerca do Direito será evidentemente nova, inusitada até o presente, no sentido de que novos direitos serão criados socialmente e não como hoje — em que o Estado é refém de interesses sociais e econômicos determinados e determinantes[16]. Uma referência teórica é o pensamento marxista e as revoluções socialistas realizadas em seu nome: o objetivo teórico era abolir o Estado, mas a prática revelou o recrudescimento da burocracia estatal.

É óbvio que não se trata aqui da inconsciência própria ao Estado de não-Direito, em que a ausência dos postulados jurídicos revela-se na própria forma em que o Estado se apresenta. Em suma, neste caso, podemos ter: a) o popularmente chamado Estado Paralelo (onde o Estado não existe, é ausente, a exemplo das periferias brasileiras); b) o Estado Arbitrário e que pode ser autoritário ou totalitário (o Estado Total).

Em tese, de tudo o que vimos, o que melhor evitaria a concentração do Poder Político seria o uso contínuo de mecanismos que levariam à separação dos poderes, bem como a consumação/ampliação de outros meios, iniciando-se pelo próprio governo das leis: “O direito, no sentido objetivo, compreende os princípios jurídicos manipulados pelo Estado, ou seja, o ordenamento legal da vida” (Ihering, 2002, p. 29).

No governo das leis, o Povo participa de decisões eminentemente jurídicas — votando em leis ou na criação de direitos, e não exatamente em pessoas —, como nos referendos[17] ou nos plebiscitos[18]. Seriam exemplos concretos dessas votações em leis, o referendo do desarmamento em 2005, além da própria Constituição Federal em 1988, que deveria ter recebido aval do Povo para confirmar sua adesão. A votação acerca da Constituição Européia pelos povos dos países-membros da União Européia é outro exemplo concreto: em alguns casos, a votação popular teve resultado diverso do obtido nas votações em plenário, nos Parlamentos. Alguns exemplos americanos atuais também seriam o recall judicial e o veto popular: em que se vota sobre uma determinada lei ou acerca de sua eficácia. Enfim, trata-se de escolha (por votação direta) sobre leis que deverão orientar ou gerir o governo ou determinada atividade administrativa. Portanto, não se trata de eleição pessoal, nem de princípios ou de metas, mas sim de leis em sentido estrito, como parte do direito positivo.

  1. Bibliografia

ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito – Introdução e Teoria Geral. 2 ed. Ampliada. Rio de Janeiro : Renovar, 2001.

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______ Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

_______ Teoria da norma jurídica. 3 ed. revista. Bauru-SP : EDIPRO, 2005.

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ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3 ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

 

[1] No caso brasileiro, seria correto falarmos das propostas constitucionais em torno da Justiça Social.

[2] É de se aceitar a análise de que o Direito realmente aceito – reconhecido como valor, partilhado nas práticas sociais – acaba por afastar a incidência da coerção. Sob esse prisma, Direito e coerção são antagônicos, excludentes. Pois o Direito só seria imposto àqueles que não o aceitassem e desse modo o descumprissem frontalmente.

[3] “O Direito é uma ordem da sociedade, e não uma secreção do Estado” (Ascensão, 2001, p. 52)..

[4] Historicamente, esta é a garantia institucional atribuída à conquista do direito de petição.

[5] Também podemos dizer que a isonomia é o meio indicado e que a eqüidade é o fim almejado – e isso, é óbvio, de acordo com uma leitura teleológica do Direito e do Estado.

[6] Ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo, senão em virtude da lei.

[7] Tratar os iguais, igualmente e os desiguais, desigualmente.

[8] Eficácia jurídica como verificação real das especificações da lei.

[9] Especificamente quanto a este ponto, esse modelo de Estado será denominado de Estado-Juiz.

[10] O que exclui as obras faraônicas ou maquiadas pelo marketing para surgimento na mídia. O Estado Jurídico deve se preocupar em primeiro lugar com a infra-estrutura, mesmo que essas obras não sejam vistas.

[11] Da mesma forma, a jurisdicização da política é decorrente, e a constitucionalização da política lhe é precedente.

[12] Entendido o Estado Judicial como uma deturpação moralista, autoritária e fascista do Estado de Direito.

[13] A exemplo da saúde, da educação e da segurança pública, ou serviços públicos de outra natureza que o mercado não possa ou não demonstre interesse em suprir por si só.

[14] Mais a ética, do que a estética.

[15] Entendida como a possibilidade de se utilizar do Direito como meio democrático de transformação da realidade social. O modelo teórico do Estado Democrático de Direito Social, como definido por Elíaz Dias (1998), é um exemplo notório na literatura especializada.

[16] Disto resulta a idéia de que o Direito é uma secreção do Estado: “[…] a manutenção da ordem jurídica pelo Estado nada mais é que uma luta contínua contra as transgressões da lei, que representam violações dessa lei” (Ihering, 2002, p. 28).

[17] Em que se dá aval a um projeto e não se vota em temas propriamente ditos abertos — não é um cheque em branco.

[18] Quando se promovem consultas à população, agora em torno de temas em aberto, a exemplo do plebiscito de 1993, justamente para se decidir a Forma de Estado adotada: Se República, ou Monarquia