REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721
Número 16 – Janeiro/Junho 2013
Esboço historiográfico sobre a prostituição feminina até o Século XVIII: do sagrado ao mal necessário cristão
Historiographical outline on prostitution of women to the eighteenth century: from sacred to the necessary christian evil
Juliana Teixeira de Freitas da Silva – graduanda de psicologia na Universidade Federal Fluminense.
E-mail: jutfreitas.uff@gmail.com
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar um pequeno esboço historiográfico sobre a prostituição, desde a Antiguidade até o século XVIII, se limitando a recortes gerais na sociedade europeia. O estudo deste corte temporal demonstra como a prostituição torna-se objeto marginalizado e enfatizado – nas legislações, por exemplo – não como forma de proteção às mulheres prostituídas, mas como artifício segregador e higienizador. Compreender a prostituição enquanto fenômeno histórico, e delimitado no tempo e espaço, apresenta-se como estratégia contra a invisibilidade que marca a temática.
Sumário: 1 Introdução; 2 Tentativas de definição; 3 A prostituição através dos tempos; 4 Idade média; 4.1 Processos de urbanização; 4.2 Corpo e sexualidade na Europa do antigo regime; 4.3 Diferenças entre o papel da mulher e do homem: da corte ao casamento; 4.4 A igreja e o sexo; 4.5 Condenação, interdição ou tolerância?; 5 A prostituição dos séculos XVI à XVIII; 5.1 Pinceladas sobre fatos históricos importantes; 5.2 Reforma católica; 5.3 O comércio sexual; 5.4 O renascimento; 5.5 A prostituição no século XVIII; 6 Conclusão; 7 Referências bibliográficas.
Palavras-chave: prostituição; historiografia; invisibilidade, Dispositivo de sexualidade.
Abstract: This paper aims to present a small historiographical outline about prostitution from Old Ages to the Eighteenth Century, limited to general clippings in European society. The analyses of this temporal cut demonstrates how prostitution becomes a marginalized and emphasized object – in legislation, for example – not as a form of protection for prostituted women, but as a segregating and sanitizer’s device. Understanding prostitution as a historical phenomenon, and limited in time and space, presents itself as a strategy against the invisibility that marks the thematic.
Keywords: Prostitution; Historiographical; Invisibility; Sexuality Apparat.
1 INTRODUÇÃO
Trataremos sobre a prostituição. Tema tido como universal e onipresente na história das civilizações, porém, nem tão evidente assim. Escondido, dissimulado, negado de forma hipócrita. Entretanto, nem por isso, necessariamente reprimido. Para melhor pensá-lo é importante notar que as questões que envolvem a gestão do sexo se desenvolvem concomitantemente às transformações políticas e econômicas da sociedade. A Modernidade é um período marcado pelo surgimento de uma nova concepção de Humanidade e de Homem, em que o corpo e a sexualidade se tornam temáticas inerentes a esse novo Homem. O corpo passa a ser uma referência constante, artística e científica, e a sexualidade torna-se a própria identidade do Homem – e o seu caminho para a verdade. Michel Foucault, importante pensador francês, aponta que esse processo de invenção do indivíduo é histórico e contextual; ou seja, que está ligado ao processo de crescimento e de estabelecimento do modo de vida da burguesia.
“A valorização do corpo deve mesmo ser ligada ao processo de crescimento e de estabalecimento da hegemonia burguesa; mas não devido ao valor mercantil alcançado pela força de trabalho, e sim pelo que podia representar política, econômica e, também, historicamente, para o presente e para o futuro da burguesia, a ‘cultura do seu próprio corpo’. Sua dominação dependia dele em parte; não era apenas uma questão de economia ou de ideologia, era também uma questão ‘física’”.[1]
Ao enfatizar os estudos no tema do corpo, faz-se necessário lembrar que este não é um objeto único ou universal. Podem-se apontar diferenças temporais, culturais e também os diversos enfoques dados ao objeto. Assim, estudar o corpo é uma forma de elucidar diferentes épocas e sociedades; e mais que isso uma forma de se compreender o mundo em que se está. O mesmo pode ser dito quanto à sexualidade como objeto de estudo.
Em termos foucaultianos, a sexualidade adquire, portanto, um lugar central no discurso e se configura como um dispositivo de poder. A hipótese seria de que, a partir do século XVII, tem-se uma proliferação de discursos sobre sexo. Não apenas fala-se de sexo; além disso, busca-se o sexo. De acordo com Foucault foi o próprio poder que incitou essa proliferação de discursos, através de instituições como a Igreja, a escola, a família e o consultório médico. Essas instituições não visavam proibir ou reduzir a prática sexual – como podemos a princípio pensar em termos de repressão. Visavam, ao contrário, o controle do indivíduo e da população, por meio da regulamentação da prática sexual. Há um lugar, uma maneira, um número de vezes, um parceiro pré-determinado para o sexo. E busca-se mais: o sexo perfeito. Grita-se em cada nova edição das revistas femininas, em cada livro de autoajuda, em cada posição do Kama-sutra “ocidentalizado”, na procura desenfreada pelo gozo infinito.
Como chegamos a esse dispositivo sexual? O presente artigo tem como objetivo traçar um pequeno esboço histórico da prostituição até o século XVIII. Esta – que o senso comum aponta como a profissão mais antiga da humanidade – da maneira como concebida em nossa sociedade está diretamente ligada ao processo da Modernidade: é um fenômeno vinculado ao surgimento das cidades, ao modelo de família monogâmica, aos ideais burgueses e à noção de fidelidade. Com a família burguesa nasce uma nova ordem sexual, em que o prazer foi privatizado, e a mulher “dessexualizada”. A esposa é a “rainha do lar” e o sexo com ela tem a função apenas de procriação; o prazer e a realização de fantasias se dão na rua. A questão da prostituição, então, perpassa tanto a representação social de “mulher direita”, quanto de “prostituta”. Essas representações são construídas lentamente pelas sociedades e para compreendê-las é preciso percorrer a história.
2 TENTATIVAS DE DEFINIÇÃO
Primeiramente, é preciso lembrar que mesmo sendo majoritariamente feminina e heterossexual, a prostituição pode ser igualmente masculina, homossexual, travesti ou transexual. No presente trabalho foca-se apenas a prostituição feminina na sociedade Ocidental.
De forma simplista, podemos colocar a prostituição como atividade em que uma pessoa “vende” o seu corpo em troca de dinheiro, com frequência e com parceiros sexuais diferentes. Partindo apenas desta noção poderíamos dizer que a prostituição é um negócio como qualquer outro, em que há uma venda ou troca; ou ainda, no qual ocorre a prestação de serviço.
No entanto, cabe aqui perguntar, o que de fato se troca nessa relação entre prostituta e cliente? Normalmente falamos da venda do corpo, porém o corpo se mantém sempre com a profissional. Assim, o que se vende de fato seria uma fantasia, uma ilusão, uma relação; seria um prazer, ou simplesmente um ato e a possibilidade do gozo; o que caracterizaria, portanto, esta transação econômica como um serviço prestado[2]. Há de se questionar essa necessidade de definir a atividade da prostituta, uma vez que nos indagamos: a prostituição não abarcaria a expressão de diferentes práticas e indicaria uma diversidade de relações?
O capitalismo insere todas as relações em uma mesma lógica, dita do mercado, e paralelamente, todas as relações econômicas estariam intermediadas pela troca de dinheiro. Sendo assim, o trabalho em nossa sociedade atual, seja ele de qualquer tipo, implica na extração da mais valia do trabalhador e em uma relação econômica de troca de dinheiro. Esta, não é, portanto, uma especificidade do trabalho sexual. Porém, nada é tão simples. Não poderíamos assentar a prostituição no parâmetro de “um trabalho como qualquer outro” na medida em que ela atravessa o tabu da sexualidade e na nossa sociedade é, justamente, a sexualidade que marca o Homem – como já explicitado anteriormente[3]. Sendo assim, como pensar a prostituição: como simples fruto da dominação masculina? Como escolha individual da mulher patologizada ou vitimizada?
3 A PROSTITUIÇÃO ATRAVÉS DOS TEMPOS
Não podemos falar aqui de uma história linear. Não se pode contá-la de forma causualista, ou supor um início e um fim para acontecimentos e fatos, dividindo o tempo em fases bem limitadas e cronológicas. O esboço que almejamos está longe de ser tão límpido. No entanto, podemos identificar no percurso da Prostituição algumas linhas históricas que se entrecruzam e compõe este complexo enredo. Feita esta ressalva, pode-se de uma maneira um tanto generalista ensaiar um pequeno histórico da mesma, que chamamos aqui de esboço. Há título de ilustração, inicia-se essa narrativa pela Prostituição Antiga.
Na Civilização Antiga encontrava-se comumente um modelo de Prostituição dita Sagrada, por sua associação com os deuses e rituais. De acordo com a tradição, essas mulheres estariam a serviço dos deuses, e, portanto, ocupariam um lugar na sociedade muito diferente das prostitutas “ordinárias” – que podem ser encontradas nos outros períodos históricos. Apesar de também passarem por uma hierarquização, as prostitutas sagradas “possuem uma posição melhor do que as outras mulheres dentro da sociedade e são símbolo de bom algoro”[4]. A ligação direta com a Religião faz com que essas mulheres não sejam estigmatizadas ou colocadas à margem da sociedade.
No entanto, a atividade exercida por elas só pode ser considerada como prostituição na medida em que, por alguma faceta, também se aproxime da vida comercial e da sociedade capitalista. Ainda hoje, podemos encontrar vestígio dessa Prostituição Antiga em algumas aldeias da Índia (ou porque não dizer no interior do Brasil?) onde algumas meninas são vendidas pelas próprias famílias a fim de resolver questões de herança. Ainda que essas mulheres sejam bem vistas por sua sociedade e tenham orgulho pela sua posição social, o que ocorre, de fato, é uma “negociação comercial” – aproximando-se da exploração sexual. Seria preciso problematizar os limites que distinguem o conceito de venda do de exploração.
Faz-se necessário resgatar a importância das civilizações grega e romana para o mundo Ocidental. Foram os legisladores dessas duas civilizações os primeiros a organizarem regulamentações sobre a atividade das prostitutas, e assim, controlarem seus ganhos, o que de alguma forma institucionalizou a atividade. Em Atenas, por exemplo, Sólon criou o primeiro bordel municipal, que possuía preços regulados. O conjunto de leis criado por Sólon regulamenta também o comportamento das prostitutas e de todas as mulheres atenienses, uma vez que diferencia as mulheres em prostitutas e esposas, dando continuidade aos fundamentos patriarcais da sociedade em que estava fundado.
Pode-se dizer que na Grécia Antiga, a prostituição é reconhecida como um fato evidente, e que, por conseguinte, possui uma ordem social estável e hierarquizada, além de ser reconhecida como necessária para o bom desenvolvimento da civilização. Podemos distinguir a existência tanto de uma prostituição de luxo, a serviço dos senadores e grandes proprietários, como também a existência de uma prostituição mais democrática e popular. É necessário lembrar a existência de uma prostituição sagrada, mesmo que de forma reduzida. Porém, de forma geral, podemos dizer que a prostituição representava para as mulheres uma forma de independência e de ascensão social, já que as prostitutas possuíam uma liberdade relativamente maior que as esposas e conseguiam fugir das regras do regime patriarcal.
Também no Império Romano as prostitutas eram regulamentadas pelo Estado, sendo inclusive identificadas pela forma particular que deveriam se vestir. No início, elas provinham das classes baixas da população, porém, após a segunda guerra Punique (218-201 av J.C.) aparecem algumas mulheres especialistas nas artes do amor, da dança e da música. Esse é um fato de grande notoriedade no contexto Romano, uma vez que a civilização era conhecida pela sua falta de “pudor” e por seu investimento nas questões do corpo e do sexo, bem diferente do que foi pregado após a ascensão do catolicismo. O sexo era visto como um serviço de primeira necessidade, o que pode ser constatado nas estratégias militares: foram instalados bordeis improvisados nos campos de batalha.
Dessa forma, a lei Romana não proibia a prostituição. O Estado, ao contrário, controlava a prática – o que marca o Proxenetismo Estatal que caracteriza esse período – criando os lupanares e as casas de tolerância. O governo Romano é, também, famoso por fazer o primeiro sistema de registro estatal de prostitutas, que permitiu a divisão das prostitutas em classes. Nesse ínterim, a prostituição era vislumbrada como um trabalho comum, utilizado por qualquer cidadão romano que assim desejasse e pudesse arcar com os dispêndios. Registra-se que, de modo geral, a prostituição na antiga Roma não possuía nenhum tipo de vinculação com a religião. O ato de prostituir-se estava envolto, destarte, às questões de ordem financeira.
- A IDADE MÉDIA
4.1 Processo de urbanização
De acordo com o livro « Histoire et Dossier de la Prostitution », de Jean-Jacques Servais et Jean-Pierre Laurend[5] o Ocidente Medieval era marcado por castelos e Igrejas. A vida estava dividida por classes sociais e regrada pela disciplina religiosa, pela austeridade eclesiástica e pela ascese monástica. Nesse contexto, as devoções e superstições iam de encontro com o natural e com o prazer da carne. A Igreja apresentava um mundo dicotômico, dividido entre o bem e o mal, o pecado e a virtude.
No início da Idade Média tem-se o recomeço de uma vida política e social na Europa, uma organização das cidades e o desenvolvimento do modo de vida urbana, graças às ligações sociais que se deram em consequência das invasões bárbaras. Pode-se dizer que entre os séculos V e X os refinamentos da vida Romana deixam de existir, e que, portanto, não se encontram nesse período grandes registros da prostituição. Esta continuaria existindo, apenas, de forma muito limitada.
A prostituição, assim sendo, é um fato social urbano. E, portanto, pode-se perceber um ressurgimento da mesma a partir do século XI junto com as primeiras cidades da Europa. Apesar de ser possível notar a existência de uma dita “prostituição rural”, formada por mulheres que vagavam entre as cidades, é apenas no meio urbano que a prostituição toma formas mais complexas e institucionalizadas.
A institucionalização cobra algumas regras: de ordem sanitária, religiosa – as prostitutas não devem ser frequentadas na Semana Santa –; moral – não podem ocorrer escândalos sexuais em torno das igrejas e ruas principais -; vestimentarias – para permitir a distinção entre as damas e as prostitutas -; e, por fim, fiscal. Porém, essa institucionalização não se dá de forma simples. É, ao contrário, marcada por diferentes movimentos de permissão e interdição. Por exemplo, o rei Luis IX começou por proibir a prostituição com a legislação real de 1254. Esta lei ordenava o fechamento de todas as saunas e casas de banho – que possuíam uma posição de destaque na Idade Média – e ameaça de extradição toda pessoa que estivesse ligada ao comércio do sexo. No entanto, o resultado dessa interdição brutal foi o oposto do esperado, e fez surgir rapidamente uma prostituição clandestina fortemente tolerada pela sociedade em geral. A ampliação da prostituição ilegal levou Luis IX a novamente autorizar a prática e a regulamentá-la – delimitando-a a locais específicos da cidade. Paralelamente a esse processo, é criado o “Couvent des filles-Dieu”, centro de readaptação destinado a mulheres que queiram deixar a prostituição – e fechado 100 anos depois no reinado de Charles V.
- Corpo e sexualidade na Europa do Antigo Regime
O livro « Histoire du Corps », organizado por Georges Vigarello[6], pretende, no capítulo 3, investigar as práticas sexuais, pautando-se, principalmente, sobre arquivos judiciais. Dessa forma, revela “a complexidade dos contextos em que se inserem o corpo e a sexualidade do cotidiano da Idade Media”. Para pensar-se a prostituição neste período é necessário, primeiramente, analisar o sentido do corpo, da sexualidade, do erotismo e do amor nesta mesma sociedade.
Nessa conjuntura a Europa vai conciliar dois movimentos: o crescimento do poder da Igreja e o crescimento da burguesia. Para a Igreja Católica, há uma explicita divisão entre o Sagrado e o Profano, com um número de regras que devem ser respeitados a fim de seguir um bom caminho na terra. A burguesia traz conceitos de higiene, moral e pudor. O prazer físico não é mais natural, o mesmo deve ser regulado por uma série de ritos e decoros que marcam a “corte” (formalizada nos séculos XVII e XVIII). É no contexto da “corte” que o amor é inventado, caracterizando-se por ser heterossexual e por exigir, de alguma forma, a reciprocidade dos sentimentos e desejo dos amantes. Esse tipo de amor é próprio das elites e é um traço que estabelece paralelismo entre a Idade Moderna e a Antiguidade.
Percebe-se, então, que a Europa se esforça para desenvolver uma visão de corpo e da sociedade que seja compatível com sua ordem social, sua religião e suas crenças populares. Assim, este pode ser considerado um período de transição.
- Diferenças entre o papel da mulher e do homem: da corte ao casamento
O amor cortês faz parte do domínio da sedução, mas não do casamento propriamente dito. Ele é formado por ritos e regras seguidos pelos enamorados, em que o rapaz e a moça adotam certos papéis específicos. A mulher, por exemplo, não pode deixar transparecer o que ela realmente deseja; o papel de tomar a iniciativa é sempre masculino, pois demanda coragem e mostra a qualidade viril necessária para fundar uma família. A mulher, quando de acordo com a corte, deve dizê-lo de forma indireta e sem contato físico. Essas são as regras teóricas do jogo.
De acordo com a Igreja Católica, a sexualidade estaria restrita ao casamento e, assim, a adolescência era marcada por um longo período de “abstinência” – principalmente para os rapazes, que normalmente se casavam mais tarde. Surgem, portanto, diversas práticas para lidar com os desejos e necessidades sexuais na juventude – mesmo que estas não sejam bem vistas pelas autoridades religiosas e pela sociedade -, como a masturbação, o bestialismo e as práticas homossexuais, por exemplo. Esses rituais de sedução ofereciam aos jovens uma oportunidade de terem alguma atividade sexual antes da atividade legitima da vida conjugal, denominando-as como atividades pré-nupciais.
A corte é, então, um tipo de jogo entre namorados, que envolve cartas, poemas e declarações de amor. O casamento, ao contrário, é um contrato que acontece entre duas famílias – e não entre dois indivíduos. Assim, um casamento só é oficialmente reconhecido pela Igreja quando há o consentimento dos pais, e deve ser consumado por uma relação sexual para que possua validade. Esse dever sexual (o dever conjugal) expressa bem a finalidade da instituição casamento: regular a afiliação e a passagem do patrimônio, proporcionando uma prole saudável e numerosa. Porém, a Igreja deixa uma margem para considerar-se ainda um objetivo secundário para as relações sexuais: a satisfação de necessidades ditas “biológicas”[7]. Dessa forma, o prazer da carne não seria imediatamente um pecado. O pecado – no caso a Luxúria – seria um apetite desregrado, sem modéstia e sem obedecer as regras delimitadas pela Religião. Dentre essas regras, o casamento é a melhor – e mais aceita – forma para saciar esse fraco vício da carne.
Vale ainda dizer, que essas regras eram definidas de formas diferentes para homens e mulheres. O adultério, por exemplo, é considerado “normal” quando cometido pelo homem, cabendo a mulher ignorá-lo para não provocar escândalos. As relações entre patrões e empregados, que ocorrem muitas vezes no ambiente íntimo e familiar da casa, também não causam nenhum espanto, uma vez que é um direito do patrão ter poder sobre o corpo do empregado. Marcam-se, assim, a exploração sexual de serventes e a frequentação de prostitutas como as formas mais comuns de atividades extraconjugais, e também, como as formas mais aceitas socialmente.
- A Igreja e o Sexo
Durante os seis primeiros séculos depois de Cristo a Igreja Católica se caracterizou como uma instituição que condenava a prostituição. Entretanto, após esse período, ela passa a adotar uma atitude de tolerância. Essa mudança de atitude pode ser notada, principalmente, na obra de dois grandes pensadores cristãos: Santo Augustinho (354-430) e São Tomas de Aquino (1225-1274). De acordo com Santo Augustinho[8]: « Supprime les prostituées, les passions bouleverseront le monde ; donne-leur le rang de femmes honnêtes, l’infamie et le déshonneur flétriront l’univers », como marcado no « Le livre noir de la prostitution ». Oito séculos depois São Tomás de Aquino aponta para a mesma direção ao admitir a existência da prostituição, de uma forma organizada e racionalizada, como uma maneira de evitar à existência de vícios considerados como “piores” pela Igreja. Dessa forma, o discurso eclesial dos séculos XI e XII estabelecido pelo Decreto de Burchard, coloca a prostituição como tendo um duplo estandarte: ela é um mal, porém, é uma necessidade social, o que faz das prostitutas “artigos de primeira necessidade” na sociedade.
A posição adotada pela Igreja permite a existência da prostituição, uma vez que a mesma se mostra como um comércio interessante e lucrativo. Por exemplo, em 1510 o papa Julio II ordenou a construção de um bordel reservado estritamente aos cristãos[9]. A Igreja, contudo, irá colocar algumas regras para a institucionalização da prostituição, assim como foi feito na Grécia e Roma Antigas. A primeira seria a diferenciação das prostitutas das outras mulheres – damas da sociedade, utilizando-se de um código de vestimenta que possui a função de distinguir essas mulheres « ordinárias » e marginalizá-las. Da mesma forma, as prostitutas não são totalmente livres, e sofrem outras restrições da ordem de deslocamento, frequentação e locais que podem habitar. Essas regras também são válidas para os bordeis: que devem seguir uma ordem de dias e horas de fechamento obrigatório e o pagamento de impostos – à Igreja e ao Estado. Além disso, a Igreja coloca ainda ressalvas sobre a natureza do cliente: os bordeis não poderiam, na teoria, receber homens casados, padres e judeus.
Nenhuma dessas regras, como dito, visa à proteção das mulheres em situação de prostituição, contra a violência e a exploração que as acometeria. A posição da Igreja é naquele momento apenas de colocar essas mulheres como sacrificadas para um bem maior: a ordem social e pública, ou até mesmo como culpadas e pecadoras. Apenas muitos séculos depois a Igreja tomará atitudes a favor dos Direitos Humanos, e apontará como indigno a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e crianças.
- Condenação, interdição ou tolerância?
Existe uma grande diferença entre a condenação religiosa e a tolerância social. Por exemplo, a Igreja não autoriza a prostituição, mas no meio católico ela é tolerada socialmente, ocupando uma posição marginal.
Como apresentado, antes da Reforma Católica a Igreja adotava uma postura de tolerância perante a prostituição, e a mesma era regulada e controlada pelos chefes da Igreja. Após o Concílio de Trento (1545) a prostituição passa a ser interdita e as leis da Igreja mais severas, passando os seguintes atos passam a serem condenados: masturbação, adultério, incesto, sacrilégio, bestialismo, sodomia e a fornicação – ato sexual entre duas pessoas livres, mas que não são casadas. Porém, de forma geral a condenação religiosa consistia apenas na confissão dos pecados, no pagamento de penitencias e no ressarcimento da vítima (quando a justiça real era acionada). Pode-se, então, perceber que apesar das proibições e condenações, esses atos eram geralmente aceitos e integravam a vida social urbana a partir da Idade Média.
É importante salientar essa tênue linha entre o condenável e o tolerável, complexificada ainda mais pelo fato de que muitas práticas – e a prostituição era uma delas – serem condenadas apenas quando ganhavam visibilidade, sendo cotidianamente aceitas. A tolerância social se encontrava em “fechar os olhos” para aquilo que era “pecaminoso”, porém considerado “necessário” para a sociedade patriarcal e para o ideal de família.
- A PROSTITUIÇÃO DOS SÉCULOS XVI AO XVIII
- Pinceladas sobre fatos históricos importantes
Entre os séculos XVI e XVIII o mundo Ocidental foi marcado por enormes transformações. A Europa Cristã é marcada em três pontos[10]. Estes, mais do que “acontecimentos históricos” engendraram uma nova percepção de mundo, de forte influência – ainda presente em nossa sociedade. Foram eles as Grandes Descobertas, o Renascimento, e a Reforma; que de maneira simplificada podem ser traduzidos em: sífilis, a libertação do homem do pecado da carne e a retomada da moralidade católica.
O primeiro grande acontecimento, conhecido como a descoberta da América pelos europeus, se caracterizou por um processo de encurtamento das distâncias e de descobrimento de um mundo totalmente novo. De fato, as percepções do tempo e do espaço, antes tão extensas e progressivas, ganharam uma sensação mais intensa e volátil. Além disso, a América contribuiu para o acúmulo de capitais na Europa e para a dinâmica mercantilista. Com isso, as ações econômicas tomadas em um lugar passaram a repercutir em outras parcelas do planeta.
No que concerne a prostituição pode-se dizer que não havia prostituição nos povos “primitivos” da América – com exceção de alguns povos em que existia algo como uma prostituição sagrada. De forma geral foi encontrada uma liberdade sexual e pouca “comercialização”, fazendo com que a prostituição em si não tivesse razões para existir.
Porém, a principal contribuição dos “descobrimentos” para a história da sexualidade foi o início de uma “epidemia” de sífilis na Europa. Ou mais precisamente, o início da crença de que a sífilis teve a sua origem na América. Mesmo que as doenças sexualmente transmissíveis sejam conhecidas há muito tempo, a origem (local e temporal) do seu aparecimento não é clara. De acordo com alguns historiadores[11] a Sífilis surgiu na Europa quando o Rei Francês Carlos VIII invadiu a Itália em 1495 e conquistou Nápoles. Nesse momento os Italianos a chamaram “gallicus do morbus” ou algo como “doença Francesa”, e em contra ponto, os franceses preferiram chamá-la de “doença Napolitana”. Porém, existe uma teoria – chamada “pré-Columbiam” – que evidencia a presença da sífilis antes do descobrimento da América. A doença teria sido relatada por Hipócrates na Grécia Antiga e haveria suspeitas da doença também em um mosteiro Augustinian do século XIII ou XIV na porta Inglesa do nordeste de Kingston. Apesar de evidências da existência da sífilis na Europa Medieval, na época Moderna a população acreditava que a doença havia chegado na Europa através dos portos, trazida do Novo Mundo pelas companhias de Colombo.
É importante notar como a sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis foram – e são – ao longo da história, consideradas como “doenças sociais”. Como tais, todo um movimento de “higiene social” foi imposto para combatê-las, movimento este diretamente ligado à “interdição” da prostituição. Esse mesmo processo pode ser observado contemporaneamente com o “surgimento” da AIDS nos anos 80, como apontado por Rodrigues[12]:
“No caso das prostitutas constata-se o recrudescimento da discriminação, decorrente do surgimento da epidemia de HIV/Aids e do endurecimento da repressão policial. O surgimento da epidemia de HIV/Aids, no final do século passado, fez com que as prostitutas voltassem ao centro das preocupações da área de saúde. A percepção inicial da epidemia, profundamente transformada ao longo dos anos, repercutiu sobre a prostituição, provocando o recrudescimento da discriminação e do preconceito, e, ao mesmo tempo, oportunizando a organização política do segmento”.
- Reforma Católica
Os movimentos religiosos que culminaram na grande reforma religiosa do século XVI tiveram início desde a Idade Média, através dos teólogos John Wycliffe e Jan Huss. Porém, é justamente no século XVI que temos a chamada Reforma Protestante, movimento iniciado por Martinho Lutero na Alemanha. Nesse momento a Igreja Católica passava por um período delicado: o crescente poder de soberanos europeus, a queda do poder papal e o surgimento de um sentimento nacionalista em algumas partes da Europa. Os monarcas voltaram seus olhos para o imenso patrimônio da Igreja – um terço das terras da Alemanha e um quinto do território francês. Foi com a tradução da Bíblia para o idioma alemão que o número de fiéis adeptos a Lutero aumentou e o poder da Igreja Católica diminuiu ainda mais.
A Reforma pregava um novo padrão moral e religioso, indo contra as práticas medievais da Igreja Católica. A importância desse período para a história da Prostituição é grande, uma vez que é neste que a mesma enfrenta seus maiores entraves. Com a entrada em vigor de uma nova moralidade protestante tem-se, consequentemente, uma nova moralidade sexual, muito mais repressiva que a católica: as relações extraconjugais e a condição do sexo como forma de obtenção do prazer foram amplamente combatidas.
“Não é difícil perceber a conexão entre as características valorizadas pela ética protestante e o caráter anal descrito por Freud, que tem origem na sublimação do erotismo anal (Freud, 1976a:177) (…) Brown (1985:202-233) recorre a elementos históricos para aprofundar a conexão capitalismo/analidade. Ele mostra que Lutero é obcecado pelo Diabo, pessoalmente (narra frequentes encontros com o Diabo) e em sua doutrina. Para Lutero, o corpo e o mundo visível pertencem ao Diabo; o próprio papa é o Diabo encarnado, o Anticristo; o mundo capitalista (e particularmente a usura) representa o Diabo. A figura do Diabo, por sua vez, reporta-se de várias formas à analidade: uma de suas metáforas designa o homem como o excremento que sai do ânus do Diabo” [13]
De acordo com Castro a visão da sexualidade no protestantismo é associada com a reprodução, especificamente, dentro da estrutura familiar:
“Nesse sentido, o celibato é atacado e a importância do sexo dentro do casamento é enfatizada, mas ao mesmo tempo são condenados a contracepção, o aborto, a sodomia, a prostituição e o adultério (Garton, 2004:81-82). O comportamento sexual é objeto do escrutínio da comunidade e os desvios são criminalizados, com o intuito de garantir que a expressão sexual seja canalizada para dentro do casamento e vinculada à procriação (D’Emilio & Freedman, 1997:16)”[14].
A prostituição não é mais “necessária”. Ela é agora, para os protestantes, apenas um mal que deve ser ferrenhamente combatido.
Com a Reforma Protestante surge outro movimento: a Contra-Reforma Católica. Em 1545 foi convocado o Concílio de Trento entre algumas medidas foram tomadas: a retomada do Tribunal do Santo Ofício – ou seja, da Inquisição -, a criação do “Index Librorum Prohibitorum” – uma relação de livros proibidos pela Igreja -, e o incentivo à catequese dos povos do Novo Mundo. Além disso, deve-se citar a afirmação da autoridade papal, a manutenção do celibato eclesiástico e reformas na instituição, como a adoção de uma tradução oficial da Bíblia (Vulgata), o fim dos abusos pelas vendas de indulgências.
Contudo, a Contra-Reforma não atingiu o seu principal objetivo: a unidade do cristianismo. Tal fato não anula as transformações sofridas no período, de grande importância para a mesma: a Igreja por meio do Concílio de Trento conseguiu, apesar da lentidão em alguns países, moralizar o clero e se libertar do luxo e dos privilégios que este havia obtido com o passar dos anos. Quanto ao que concerne ao tema da sexualidade e das Reformas Religiosas precisa-se dizer que todo o pudor e a moral colocados em torno do sexo, no fim, tiveram um efeito “contrário”. O pudor e a moral deram ao sexo um lugar de destaque na vida do homem moderno: a sexualidade a partir da Modernidade torna-se o caminho para a verdade. Como dito por Castro:
“Foucault (1984b:41) observa que, na Antiguidade, a preocupação com a comida era maior do que a preocupação com o sexo; na Idade Média, as duas equivaliam-se; do século XVII em diante, a preocupação com o sexo passa a ser dominante[15]”.
Para Foucault[16] não há uma repressão sexual – como normalmente acredita-se -, mas uma proliferação dos discursos sobre o sexo após o século XVIII, incitados justamente pela Igreja. O poder que controla a sexualidade não é negativo e repressor, pelo contrário, ele está ligado à ideia de produção que nasce com a prática da confissão: aquele que fala do sexo ganha um lugar de destaque. A regulação do sexo, portanto, ocorre, não pela via negativa da proibição, e sim pela positividade de se colocar em discurso – em um discurso esquadrinhado.
A pastoral cristã cumpriu a tarefa de transformar tudo em palavra; através de uma “vontade de saber”, surge o imperativo da fala que vai muito além do julgamento do certo e errado, do verdadeiro e falso. Pois para dominar o sexo é preciso reduzi-lo ao nível da linguagem, fazendo o controle da sua circulação através dos discursos. Vale enfatizar que o que ocorre não é uma censura, mas uma proliferação de toda uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo. Assim, são definidas normas de desenvolvimento sexual, de controle pedagógico, de regime matrimonial e condenações jurídicas para os perversos. Trata-se de uma forma de produzir uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora.
O discurso torna os corpos dóceis e úteis, e são os efeitos produzidos ao se colocar o sexo em discurso que devemos analisar[17]. Um dos efeitos é a própria criação do sujeito, e da relação do homem com o desejo – tão caro a nossa sociedade atual. Este é o maior legado da Modernidade. Vale notar, que esse dito “ascetismo” em relação às práticas sexuais não deve ser apenas atribuído ao Cristianismo e Protestantismo. Para Santos, no artigo “A descoberta freudiana e o modelo de moral sexual da Igreja Católica”:
“O Cristianismo teria apenas preservado um legado hostil ao prazer e ao corpo, originado na Antigüidade. O estoicismo, por exemplo, teria intensificado uma visão redutora das práticas sexuais, transformando a importância que os filósofos gregos reservavam à busca do prazer e concentrando a sexualidade no casamento. A visão estóica foi característica marcante nos dois primeiros séculos depois de Cristo, influenciando o Cristianismo através dos chamados “Padres da Igreja” como, por exemplo, Agostinho e Tomás de Aquino. O sexo passa a ser considerado apenas em sua finalidade procriativa, o que possibilita a emergência da moralidade sexual”[18].
- O comércio sexual
Pode-se dizer que na época feudal não existia comércio propriamente dito, uma vez que a base da economia estava na troca de produtos e a produção era voltada para o sustento local e não para a venda. Com a passagem para um modelo monetário mais unificado mudam as relações de produção e trabalho, deixando explícita a relação entre trabalhador e patrão (dono dos meios de produção) e uma incessante busca pelo aumento da produção, do mercado de consumidores e dos lucros. Portanto, é com o surgimento de uma política econômica mercantilista que se tem o “auge” do comércio sexual.
É possível afirmar que a institucionalização do comércio do sexo se deu pela união de dois fatores: a moralidade pública instalada pela burguesia e pelas Reformas Religiosas, e a crescente normatização médica que conduzia à preocupação com a saúde do corpo – individual e social. Além desses dois fatos maiores, que pintavam o contexto da época, devemos lembrar as regras sociais de casamento, que faziam que os jovens passassem muito tempo solteiros e em abstinência sexual, causando alguns problemas de desordem social. Como resposta para esse problema social, para salvar a moralidade pública, o governo passa a incentivar à criação de bordeis e manter controle fiscal sobre eles[19].
O que é preciso enfatizar, é o fato de que todo o cuidado com a prostituição, e consequentemente com as prostitutas, apenas se dá como uma forma de proteger a sociedade urbana: das violações de mulheres, de desordens sociais, das práticas homossexuais, entre outros males. Ou seja, a prostituição como instituição surge para proteger a família, a sociedade e a sexualidade heterossexual. Assim, às prostitutas era proporcionada uma zona claramente delimitada: para habitar, para recrutar os clientes e para procurar um quarto para deitar-se com eles. Pretendia-se evitar que mulheres respeitáveis da sociedade fossem corrompidas pela prostituição.
De fato, a grande maioria das prostitutas era formada por mulheres que nada possuíam: haviam sido violadas, seduzidas e abandonadas; eram órfãs, mães de crianças ilegítimas, domésticas sem emprego, e que não possuíam ninguém que pudesse ajudá-las. Em uma sociedade altamente machista e patriarcal, uma mulher sozinha estava fadada à fome e à pobreza; havia perdido o direito de participar de uma sociedade “honesta”. Essas mulheres viam na prostituição uma forma de trocar o corpo por uma refeição, um abrigo e roupas limpas. Não queriam outra coisa do que sobreviver: eram seduzidas por promessas de bem-estar imediato, boa alimentação e roupas elegantes. Promessa nem sempre cumprida.
- O renascimento
No início do século XVI na Itália, inicia-se um movimento de retomada à cultura Greco-Romana, e que se espalha por toda a Europa. O termo “renascimento” foi empregado primeiramente pelo historiados francês Jules Micheler, em 1855, para referir-se ao “descobrimento do Mundo e do homem” no século XVI. Seria, portanto, considerado como um momento de florescimento e renascença após um “longo período de decadência” na Idade Média. Progressivamente tem-se a centralização política, a urbanização e a mercantilização.
O Renascimento italiano foi, sobretudo, um fenômeno urbano, produto das cidades que floresceram no centro e no norte da Itália, como Florença, Ferrara, Milão e Veneza, resultado de um período de grande expansão econômica e demográfica dos séculos XII e XIII. Os estudos humanísticos e as grandes conquistas artísticas da época foram fomentados e apoiados economicamente por grandes famílias, chamados de “mecenas”.
A ideia renascentista de humanismo pressupunha outra ruptura cultural com a tradição medieval. Redescobriram-se os Diálogos de Platão, os textos históricos de Heródoto e Tucídides e as obras dos dramaturgos e poetas gregos. O estudo da literatura antiga, da história e da filosofia moral tinha por objetivo criar seres humanos livres e civilizados, pessoas de requinte e julgamento, cidadãos, mais que apenas sacerdotes e monges. Dentre as contribuições do Renascimento para a história da sexualidade podemos citar a invenção da imprensa, no campo da tecnologia, ainda no século XV. A imprensa revolucionou a difusão dos conhecimentos, e permitiu, também, o surgimento e expansão de uma indústria pornográfica. Porém, a maior contribuição do Renascimento seria uma certa mudança na forma de enxergar as mulheres, agora de forma idealizada.
Durante toda a Idade Média, a mulher é apenas um ser inferior: assim como o homem é um desenho mal feito de Deus, a mulher é um desenho mal feito do homem. Para a Igreja as mulheres, como filhas de Eva, são pecadoras e criaturas diabólicas. Os romances do período instauram uma “elevação” da mulher como musa inatingível. Ela é nesse momento uma criatura divina, como os anjos e as santas. Porém, na prática, para os homens a mulher é considerada apenas como esposa: um sujeito que tem como papel fazer filhos e educá-los. O renascimento não elimina todas essas concepções, entretanto, seus pensadores e poetas, colocarão um ideal de amor cortesão e mais humano em voga.
Na prática, a posição da mulher é caracterizada por sua submissão em relação ao homem, e, portanto, deveria restringir-se ao âmbito exclusivamente doméstico. Essa situação propiciou a existência de uma figura comum na antiga sociedade grega: a prostituta da classe alta (cortesã), muito importante na Renascença, inicialmente nas cidades de Veneza, Florença e Milão. Essas belas mulheres – conhecidas como “les honnêtes courtisanes”, em Italiano – eram ricas e célebres, e assim como as famosas cortesãs da Antiguidade, também possuem algum poder político. Podemos citar alguns nomes: Isabelle de Luna, Mellina la Belle de Ferrare, Cecilia d’Imola, Tullia d”Aragon et Romaine Imperia[20]. Essas damas mostram uma outra faceta da prostituição, marcada por uma quase “honestidade” – honestidade dada, claro, pelas riquezas e poder político que possuem seus clientes. Porém, as boas maneiras, o refinamento, a riqueza e a ligação com homens importantes das cidades, não eram suficientes para tirar essas mulheres da marginalidade.
“Essas representações construídas pelo imaginário social eram incorporadas pela própria produção científica relativa ao tema, que reproduzia a polarização das imagens associadas à prostituta, de um lado, como vítima, com uma explicação essencialmente econômica da comercialização sexual do corpo feminino e, de outro, como mulher rebelde, a partir de uma leitura psicologizante que interpreta a prostituição como um caso patológico de sexualidade desviante. Em ambas representações, a imagem romantizada da meretriz é construída a partir de uma perspectiva normativa.[21]”
Com exceção da sífilis, a Renascença foi, sem dúvida, a época de ouro da prostituição. O número de prostitutas cresceu de forma espetacular, uma vez que a questão moral colocada pelos livros perdeu um pouco de importância. Além disso, a distância entre cortesãs e damas da sociedade diminui na aceitação social. Essa época, exemplificada pelas belas prostitutas de Veneza – em suas mansões suntuosas, com a pele branca, os cabelos loiros, e muito perfumadas -, dão uma aura de glamour sobre o comércio do sexo, como se essas mulheres vivessem um vida plena de paixões, felicidades, luxos e prazeres. A prostituição nesse momento entra como uma fantasia bonita para o imaginário popular. Continuam à margem, porém saem do lixo das ruas para o luxo dos bordeis.
- A prostituição no século XVIII
O século XVIII é marcado pela grande expansão da prostituição, apesar das tentativas da burguesia – e da invenção de uma moral em torno do pudor – de tentar reprimí-la. A burguesia, ao se esforçar para se diferenciar da nobreza, advogava em nome da família e dos valores morais. Porém, o mercantilismo, a Revolução Industrial e a economia do livre mercado consolidam-se, abrindo terreno para a prostituição como meio de subsistência da população pobre, que muito sofre com as taxas de desemprego.
Apesar de políticas de represão, adotadas por alguns países, como a Áustria e a Prússia, a grade maioria dos países se preocupava em regular a prostituição e esconde-la da população “honesta”. A França, por exemplo, criou centros de reabilitação – os chamados “hospitais gerais” – que tentavam normatizar todos aqueles que eram marginalizados pela sociedade: os doentes mentais, os ladrões e as prostitutas, como apresentado na obra de Michel Foucault[22].
O século XVIII coloca uma importante ligação entre a sexualidade e a medicalização, apontando uma legitimação do prazer erótico como fenômeno “natural” e necessário quando promovido por relações heterossexuais – entre homens e mulheres adultos e uma consciência do caráter “não natural” de todas as outras formas de atividade sexual. Ocorre, portanto, a normatização da sexualidade a partir das estruturas fundamentais da sociedade: a família, a herossexualidade e a reprodução. Percebe-se, então, uma mudança na apreensão do corpo humano: até o início do século XVII o corpo era um instrumento moral, marcado pela idade, pelo sexo e pela classe social. Agora, uma nova cultura sexual foi imposta.
Paralelamente, pode-se apontar o surgimento de uma nova dinâmica de poder, mais indireto, sutil e eficaz, a qual Foucault denomina Biopoder. A Modernidade não faz uso apenas das tecnologias disciplinares centradas no indivíduo como no século XVII. É preciso, agora, controlar o corpo através da regulação dos nascimentos, da longevidade, da mortalidade e da saúde. Nas palavras de Julio Castro:
“O malthusianismo coloca na ordem do dia a necessidade de limitar o crescimento da população (Garton, 2004:105-106). Aliando-se ao discurso médico, a burguesia leva a cabo uma gestão rígida da sexualidade, como forma de contrapor-se à “degeneração” aristocrática e à “imprevidência” operária. A preocupação em poupar energias vitais, que ecoa a preocupação com a acumulação econômica, manifesta-se na condenação da masturbação e na regulação da duração e da frequência dos atos sexuais (Guillebaud, 1998:270-277). Para o Dr. William Acton, um dos médicos mais destacados da Inglaterra vitoriana, o corpo humano contém um reservatório finito de energia sexual que declina em função do consumo, de acordo com um modelo hidráulico (Garton, 2004:4, 110). O establishment médico engaja-se numa verdadeira cruzada contra a masturbação, atribuindo-lhe toda sorte de efeitos nefastos sobre a saúde (Guillebaud, 1998:267-270; D’Emilio & Freedman, 1997:68-69; Garton, 2004:111-112)”[23].
O Biopoder como estratégia de regulação das populações e controle do sujeito, vai ampliar medidas de incentivo ao casamento e à procriação, além de voltar o olhar especialista para as questões de gênero. Pensar o sexo, o corpo e as relações interpessoais constituem em uma forma de vigilância do corpo da população que surge com o processo de Modernidade.
6 CONCLUSÃO
Como já atentado pela historiadora Margareth Rago[24] há um perigo em colocar a prostituição como a profissão mais antiga da humanidade: corre-se o risco de naturaliza-la e assim, de torna-la também invisível. A diferenciação entre prostitutas e “mulheres direitas” é antiga – data de 2000 a.c.[25]– porém faz parte de um processo histórico. São conceitos construídos e marcados pelo seu tempo e espaço. De acordo com Rago, a profissional do sexo hoje é um conceito “construído no século XIX, a partir de uma referência médico-policial” e que, portanto, “não pode ser projetado retroativamente para nomear práticas de comercialização sexual feminina em outras formações sociais, sem realizar um aplainamento violento da singularidade dos acontecimentos”[26].
Como visto, a prostituição constitui-se como fenômeno urbano, característico de uma sociedade mercantil, monogâmica, que valoriza a família nuclear, a virgindade e o papel reprodutivo da mulher (mãe e santa)[27]. O duplo Puta e Santa possibilita a marginalização e estigmatização da mulher prostituída. Esse “estigma” como enunciado por Goffman[28], não é sofrido apenas como externo, mas é uma discriminação também interna. Assim sendo, as prostitutas apresentam-se sempre em uma posição de inferioridade perante as outras mulheres. O seu lugar é sempre a marginalidade e fora do discurso. Esse fato independe de serem consideradas como vítimas de um destino triste ou miserável, como pecadoras, dissimuladas, ou ricas e sedutoras mulheres.
De forma geral, após a ascensão da Igreja Católica na Idade Média, a prostituição foi sempre tratada como um “mal-necessário”: era considerada como comportamento desviante, porém, tolerado em nome da preservação do casamento em face dos desejos masculinos. Não existia, e não existe, uma intenção clara de se erradicar a prostituição uma vez que é tida como necessidade social. Ao contrário, a luta de forças dá-se no terreno da reclusão das mulheres em zonas bem delimitadas: certas ruas das cidades, ou em seus arredores. É interessante sublinhar o fato de que as legislações existiam não para melhorar as condições de vida das prostitutas ou protege-las, mas apenas para manter a ordem social e obter benefícios para o governo. Luta-se não para eliminá-las, mas para escondê-las. A conduta da prostituta não é alvo de extermínio – o foi poucas ocasiões ao longo da história, como durante as Reformas Religiosas. A prostituição se constitui, na verdade, como mais um dispositivo a favor da sexualidade normativa.
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[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011, p. 107.
[2] PASINI, Elisiane. Prostituição e a liberdade do corpo. 2005.
[3] FONSECA, Patrícia. A dupla carreira da mulher prostituta. Porto Alegre: 1996, p.19.
[4] COQUART, É. & HUET, P.. Le livre noir de la prostitution. Paris : Albin Michel, 2000.
[5] SERVAIS, Jean-Jacques & LAUREND, Jean-Pierre. Histoire et Dossier de la Prostitutions. Paris : C.A.L., 1965.
[6] VIGARELLO, Georges. Histoire du corps. v.1. Paris: Éditions du Seuil, 2005.
[7] VIGARELLO, Georges. Histoire du corps. v.1. Paris: Éditions du Seuil, 2005.
[8] COQUART, É. & HUET, P.. Le livre noir de la prostitution. Paris : Albin Michel, 2000.
[9] Idem.
[10] SERVAIS, Jean-Jacques & LAUREND, Jean-Pierre. Histoire et Dossier de la Prostitutions. Paris : C.A.L., 1965.
[11] MANDAL, A. História da Sifilis. News Medical. http://www.news-medical.net/health/Syphilis-History-%28Portuguese%29.aspx ; Acessado em 2 de abril de 2013.
Arquivos de Sexologia Magnus Hirschfeld. O primeiro Grande surto de Sifilis. http://www2.hu-berlin.de/sexology/ECP4/html/the_first_great_outbreak_of_sy.html ; Acessado em 2 de abril de 2013.
[12] RODRIGUES, M.. A prostituição no Brasil contemporâneo : um trabalho como outro qualquer ? Universidade de Brasília (UnB). Rev. Katál. v.12 n.1 Florianópolis: 2009, p.68-76.
[13] CASTRO, Julio. Eros e seus descontentes: da Reforma Protestante ao sexo virtual. Rev. LatinoAmericana, Sexualidad, Salud y Sociedad, n.4, 2010, p.105-p.126.
[14] Idem.
[15] Idem
[16] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2011.
[17] Idem.
[18] SANTOS, A.. Psicanálise e moral sexual. Reverso v.32, n.59. Belo Horizonte, 2010.
[19] « Vers la fin du XIV siele en France, les gouvernements municipaux et l’autorité royale unirent leurs forces pour promouvoir la prostitution comme solution aux désordres. Les citoyens pouvaient ainsi demander une licence pour gérer un bordel que bénéficierait à la fois de la protection de la municipalité et de celle du roi. » VIGARELLO, Georges. Histoire du corps. v.1. Paris: Éditions du Seuil, 2005.
[20] SERVAIS, Jean-Jacques & LAUREND, Jean-Pierre. Histoire et Dossier de la Prostitutions. Paris : C.A.L., 1965.
[21] GERSHON, Priscilla. Profissionais do sexo: da invisibilidade ao reconhecimento. Sociologia Jurídica: http://www.sociologiajuridica.net.br/numero-2/168-profissionais-do-sexo-da-invisibilidade-ao-reconhecimento ; Acessado em 20 de janeiro de 2014.
[22] FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.203-222.
[23] CASTRO, Julio. Eros e seus descontentes: da Reforma Protestante ao sexo virtual. Rev. LatinoAmericana, Sexualidad, Salud y Sociedad, n.4, 2010. p.105-p.126.
[24] RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite. 2ª Ed. São Paulo: Paz e Terra. 2008.
[25] CARVALHO, S.. As virtudes do pecado : narrativas de mulheres a « fazer a vida no centro da Cidade ». [Mestrado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública, 2000.
[26] RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite. 2ª Ed. São Paulo: Paz e Terra. 2008.
[27] GERSHON, Priscilla. Profissionais do sexo: da invisibilidade ao reconhecimento. Sociologia Jurídica: http://www.sociologiajuridica.net.br/numero-2/168-profissionais-do-sexo-da-invisibilidade-ao-reconhecimento ; Acessado em 20 de janeiro de 2014.
[28] GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 7ª Ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.