Discurso jurídico e conflitos de terra no Rio de Janeiro

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 04 – Janeiro/Junho 2007

Discurso jurídico e conflitos de terra no Rio de Janeiro: uma investigação das decisões da magistratura fluminense sobre as ocupações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Estado do Rio de Janeiro.

Mariana Trotta Dallalana Quintans – Mestre pelo programa de pós-graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC –Rio), Professora Substituta do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense, Professora de Direito Constitucional e Lógica e Hermenêutica do Centro Universitário Geraldo di Biase. 

E-mail: maritrott@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho pretende-identificar o discurso hegemônico entre a magistratura fluminense sobre os conflitos de terra. Para tanto, serão analisadas decisões judiciais proferidas pela magistratura fluminense, entre 1997 e 2005, nas ações possessórias sobre as áreas ocupadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Estado do Rio de Janeiro.

Sumário: Introdução. 1 . Interpretação e ideologia: o papel político desempenhado pelos juízes; 2. Conflitos de terra e os julgados da magistratura fluminense; 3. O Poder Simbólico e o Judiciário: a hegemonia do discurso proprietário; 4. Conclusão; 5.Bibliografia.

Palavras-chave: Poder Judiciário – Interpretação Jurídica – Direito de Propriedade – Movimentos Sociais.

Os conflitos de terra no Brasil

foram e são permeados por lutas diversas:

pela história das ocupações,

pela interpretação das normas legais,

pelo direito à área ocupada

e muito mais…[1]

Introdução

Pretendemos no presente trabalho investigar o discurso da magistratura fluminense sobre os conflitos possessórios, envolvendo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra- MST, tentaremos traçar o perfil desta magistratura e identificar o discurso hegemônico sobre os conflitos de terra no campo jurídico.

Será a partir da análise das decisões judiciais sobre as ocupações dos sem-terra no período de 1996 – ano marco na constituição do MST no Rio de Janeiro – até o ano de 2005, que nos colocaremos a refletir sobre o Poder Judiciário, seu discurso jurídico hegemônico e sua possíveis rupturas.

1 . Interpretação judicial e ideologia: o papel político desempenhado pelos juízes

O entendimento majoritário na processualística brasileira, que ganhou força na segunda metade do século XIX com o trabalho do jurista italiano Guiseppe Chiovenda, era do caráter meramente declaratório das sentenças judiciais. A função do juiz seria a de aplicar a lei ao caso concreto, baseando-se na vontade do legislador para por fim ao conflito. Dessa forma, o juiz dotado de neutralidade declararia o direito já determinado na lei.[2]

A teoria kelseniana introduziu no debate jurídico uma outra leitura sobre o caráter das decisões proferidas pelos magistrados. Entendendo serem estas, na realidade, criadoras de direito. O texto normativo como qualquer outro texto ou palavra permitiria diferentes leituras, cabendo ao magistrado escolher um de seus sentidos para solucionar o caso concreto – o texto normativo seria apenas uma moldura, um limite para a interpretação.[3]

Kelsen entende que os textos normativos possuem indeterminações em graus diferentes. Para oferecer respostas a estas indeterminações os juízes terão de fazer uso de outros elementos, como as suas noções de justiça, seus juízos de valor social, e tantos outros.[4]

Neste sentido, podemos dizer que as decisões judiciais não são meras aplicações da lei ao caso concreto, ao contrário, o ato judicial é a criação do direito do caso concreto. O juiz a partir de sua subjetividade – seus valores, sua ideologia – determina o direito que será aplicado em cada situação específica.

Segundo as reflexões de Antonio Gramsci as relações vivenciadas pelos indivíduos irão influenciar na constituição de sua subjetividade e na formação de suas noções de justiça e nas suas convicções político-ideológicas.[5] Seguindo esta reflexão, entendemos que os juizes também constituem suas noções de justiça a partir de suas experiências individuais e coletivas. Estas concepções influenciam as decisões tomadas pelo magistrado no exercício de sua função. [6]

  1. Conflitos de terra e os julgados da magistratura fluminense 

O movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST apenas conseguiu ganhar força no Estado do Rio de Janeiro no final da década de 1990, após tentativas frustradas em meados da década de 1980.

A estruturação no estado encontrou algumas dificuldades, principalmente, devido ao forte caráter urbano da região. Pois, diferentemente das demais regiões do país, já na década de 1950 o Rio de Janeiro foi marcado por fortes conflitos fundiários, devido a oposição dos trabalhadores rurais à especulação imobiliária, caracterizada pela acelerada urbanização e a exploração turística. Tendência apenas vivida pelos demais estados da federação algumas décadas depois.

Por este motivo, o MST do Rio de Janeiro apresenta como principais características dos trabalhadores que se identificam e passam a integrar o movimento, serem estes desempregados das periferias urbanas, ex-trabalhadores de Usinas falidas e cortadores de cana-de-açúcar.

O movimento se reorganiza no território fluminense a partir de 1996 quando militantes do MST do sul do país retornam ao Rio de Janeiro e reiniciam a articulação. Realizaram um encontro dos Sem Terra no estado, organizando a estrutura estadual do movimento e a estratégia de luta, priorizando as ocupações de terra no interior.

Nacionalmente, a formação do MST inicia-se no final da década 1970 e início dos anos 1980, tendo como referência experiências anteriores na luta pela terra. Depois de anos de muito trabalho e empenho na articulação dos trabalhadores sem-terra organizados em vários pontos do país, o MST foi fundado em 1984 no encontro  realizado em Cascavel – Paraná.

O MST, devido as lições históricas do movimento camponês, nasce com a percepção de que a terra não se ganha, mas que é conquistada através da luta dos trabalhadores organizados. Compreendendo, desta forma, a importância das ocupações coletivas como forma de pressionar os Poderes Públicos para a promoção da Reforma Agrária, com o assentamento de famílias sem-terra e o investimento na agricultura familiar.

No Rio de Janeiro, é em 1996 que o MST passa a promover uma série de ocupações no interior, tendo como foco a região norte do Estado. Nos anos que se seguiram, os Sem Terra continuaram a promover ocupações por todo o estado, realizaram também marchas, ocupações no prédio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária- INCRA e em outros prédios públicos, buscando respostas do Poder Executivo a falta de investimento e vontade política na realização da Reforma Agrária.

Nos dois últimos anos do governo do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso (2000-2002) o movimento diminuiu o ritmo de suas ocupações, em grande parte pelo crescente processo de criminalização vivido pelo MST, impulsionado pelo Governo Federal, que pode ser observado na edição da Medida Provisória n. 2.027 (de 04 de maio de 2000), que proibia a realização de vistorias pelo INCRA em áreas “invadidas”.

Em 2002, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva – militante histórico do Partido dos Trabalhadores ligado as causas populares – o MST passa a vislumbrar a implementação do programa de Reforma Agrária, fato que não foi verificado. Atualmente, quatro mil famílias encontram-se acampadas no estado pressionando o Governo Federal para serem assentadas. O atual governo, desde o início de sua gestão até o ano de 2004, não havia assentado nenhuma família de sem-terra no estado do Rio de Janeiro, não cumprindo a meta estabelecida no Plano Nacional de Reforma Agrária. Foi apenas no segundo semestre de 2005 que os primeiros assentamentos no estado durante o governo Lula começaram a ser criados, estão em processo de instalação de quatro assentamentos de famílias sem-terra ligadas ao MST.

Diante desta realidade o MST manteve sua estratégia de ocupações de terra improdutivas ou que não cumpram com sua função social como forma de pressionar o Governo Federal a realizar a Reforma Agrária. Dos casos de ocupações coletivas promovidas pelos Sem Terra a maioria foi levada ao judiciário. No período de 1996 a 2005,das trinta e três ocupações de terra, em vinte e uma o proprietário obteve a liminar de reintegração de posse pleiteada judicialmente, em apenas sete casos sua concessão foi negada pelo magistrado competente.[7]

Abaixo transcrevemos os trechos de algumas dessas decisões, para que possamos observar o discurso da magistratura fluminense sobre os conflitos fundiários.

A primeira decisão que vamos analisar é relativa a uma ocupação do MST no Município de Italva em agosto de 2003, onde foi negada a liminar de reintegração de posse pleiteada pelo latifundiário (ação nº 5018/03), sobre área improdutiva, que já havia sido matéria de decreto desapropriatório emitido pelo Poder Executivo. Destacamos alguns trechos da decisão:

“(…) Seja quem for, seja quem cumpra a promessa constitucional da função social, é este o protegido pelo Direito e pela Constituição Federal. A propriedade de terra sem o cumprimento de função social não é propriedade a ser tutelada pelo Direito, quando em confronto com outros valores (…)”

Nesta decisão paradigmática o magistrado defende que nos casos envolvendo famílias de trabalhadores sem-terra e proprietários, estariam em jogo dois direitos: de um lado o direito patrimonial de propriedade e de outro o direito à vida e ao trabalho na terra. Vejamos neste outro fragmento retirado da mesma decisão:

“(…) A bifurcação que se apresenta pode levar a dois caminhos, e a escolha revelará o quão justa é a sociedade em que vivemos ou que queremos viver: o bem patrimonial inexplorado, moribundo, objeto apenas de uma dominação quase feudal, ou a atividade vinculada à vida no campo, à fixação da família em terras e (…) a subsistência (…).”

Neste sentido, o juiz expressou que o texto normativo possibilitaria a escolha pelo magistrado de um de seus significados, tal opção feita pelo juiz seria um reflexo da sociedade em que estivesse inserido. Dessa forma, a decisão pela garantia do direito sobre a terra ao proprietário ou pelos sem-terra, estaria relacionada à ideologia do magistrado e ao discurso hegemônico na sociedade.

Foi nesse sentido que o magistrado negou a concessão da medida liminar, mantendo os sem-terra na área. Hoje, as famílias que ocuparam a fazenda estão sendo assentadas pelo INCRA.

Posição diferente foi a adotada pelo Juiz da 2a Vara Federal de Campos dos Goytacazes na ação de reintegração de posse nº 2004.5103000888-0, também ocupada pelo MST, que foi vistoriada sendo considerada improdutiva, entretanto, como em inúmeros outros casos o latifundiário ingressou com ação de nulidade do laudo de vistoria, esta lide encontra-se em andamento e por este motivo o processo de desapropriação encontra-se suspenso. Sobre este caso o magistrado entendeu pela reintegração de posse e pela ilegalidade da ocupação, considerando tal prática como esbulho possessório:

“ (…) O esbulho possessório – mesmo tratando-se de propriedade alegadamente improdutivas – constitui ato revestido de ilicitude jurídica.

Ponderou o magistrado, na mesma decisão, sobre outras práticas do Movimento Sem Terra – como as ocupações de prédios públicos – considerando-as, também, como ilícitas e autoritárias. Completou:

“(…) Revela-se contrária ao Direito (…) a conduta daqueles que – particulares, movimentos ou organizações sociais – visam, pelo emprego arbitrário da força e pela ocupação ilícita de prédios públicos e de imóveis rurais, a constranger, de modo autoritário, o Poder Público a promover (…) programa de reforma agrária.(…)”

Em outra passagem da mesma decisão, o magistrado faz menção ao direito constitucional de propriedade para justificar sua posição de retirar as famílias da área ocupada. A decisão entende o direito à propriedade como absoluto, não levando em conta o dever constitucional de cumprimento da função social por toda a propriedade, diz:

“O processo de reforma agrária, em uma sociedade estruturada em bases democráticas, não pode ser implementado pelo uso arbitrário da força e pela prática de atos ilícitos de violação possessória, ainda que se cuide de imóveis alegadamente improdutivos(…).”

Completa o magistrado utilizando-se do dispositivo constitucional, constante entre as garantias fundamentais da cidadania, sobre o direito de propriedade excluindo de sua análise os demais direitos expressos nos incisos do mesmo artigo da Constituição Federal de 1988 (art. 5o). Vejamos:

“(…) notadamente porque a Constituição da República ao amparar o proprietário com a cláusula de garantia do direito de propriedade (CF, art. 5o, XXII) – proclama que ‘ ninguém será privado (…) de seus bens, sem o devido processo legal’ (art. 5o, LIV).”

Neste sentido, também, foi o entendimento do Juiz de Direito da 1a Vara Federal da mesma comarca, Campos dos Goytacazes, na ação de reintegração de posse nº 2001.51.03.001441-6 contra o MST, que ocupou quatro fazendas do Complexo Cambayba, de propriedade da Usina falida de mesmo nome.

Nesta ação não foi feita pelo proprietário da área a correta individualização do pólo passivo, ou seja, determinado nominalmente a quem ela se destinava. O Ministério Público pronunciou-se pela correção do pólo passivo, condicionando o segmento da ação ao aditamento da inicial, o autor deveria acrescentar a expressão “a todos os demais invasores” em seu pedido.

“ (…) A opinião do MPF baseou-se no fato de que a demanda foi instaurada, apenas, contra LUIS MACHADO e LUIS VELASCO, enquanto que o pedido de reintegração de posse foi feito para retirar, além dessas quatro pessoas, todas as outras que se encontrassem ilegalmente nos imóvel rurais da autora (fl. 163 a 167).

O juiz concordou com a posição do Ministério Público requerendo a emenda à inicial, para que passasse a constar no pólo passivo a referência aos demais invasores, devido a dificuldade de identificação de todos os ocupantes. Com a correção autoral o magistrado  concedeu a liminar reintegratória da posse. Vejamos:

“(…) pela parte autora, que pediu que no pólo passivo, além daquelas duas pessoas, também constasse a expressão genérica ‘todos os demais invasores’, diante da notória impossibilidade de se identificar os integrantes do MST que ocuparam as suas fazendas. (…)”

Entretanto, as normas que regulam a matéria  do processo civil no Brasil determinam expressamente que todos os réus da ação devem ser cuidadosamente indicados pelo autor em sua petição inicial, sob pena de extinção da ação (art.282, IV do Código de Processo Civil).

Em outra decisão, na ação de reintegração de posse nº 2004.51.11.00096-4, relativa a ocupação da fazenda Santa Justina em Mangaratiba, o juiz entendeu pela reintegração de posse. Mesmo tendo o INCRA ingressado com pedido de assistente do Movimento, alegando o interesse do órgão na desapropriação do imóvel em disputa e no assentamento das famílias. O magistrado entendeu que a discussão sobre a Reforma Agrária não tinha relação com o conflito possessório em analise na ação. Decidiu:

“(…) Mesmo que a propriedade não esteja adequada à função social, o que não se sabe e não se saberá neste procedimento, em virtude da relação entre o objeto de cognição, a situação não autorizaria a invasão de propriedade privada. (…)”

As decisões judiciais prolatadas nos conflitos fundiários envolvendo o movimento Sem Terra, apresentam diferentes conteúdos: algumas criminalizam as ocupações coletivas realizadas pelos sem-terra, outras as consideram como forma legítima de pressão popular; umas entendem o direito de propriedade como absoluto e intocável, em outras a propriedade é compreendida a partir do princípio da função social.

Entretanto, pelos dados apresentados nesta pesquisa caracterizamos nossa magistratura como portadora hegemonicamente do discurso proprietário, que criminaliza a luta dos sem-terra e assegura os interesses das elites rurais. Valorizam o direito à propriedade privada em detrimento do direito ao trabalho e à vida digna. Observamos também que existem juízes que não compartilham da ideologia hegemônica do judiciário e rompem com o discurso proprietário.

  1. O Poder Simbólico e o Judiciário:  a hegemonia do discurso proprietário

Diante deste quadro, de hegemonia do discurso proprietário entre a magistratura fluminense,  devemos investigar a origem deste olhar conservador ponderando buscando suas raízes na formação do pensamento jurídico brasileiro.

José Murilo de Carvalho chama atenção ao fato que as primeiras faculdades de direito do Brasil, criadas em 1827 e instaladas em São Paulo e Olinda, foram escolas particulares e seus alunos vinham das classes dominantes. O autor destaca que “de modo geral, os alunos das escolas de direito provinham das famílias de recursos. As duas escolas cobravam taxas de matrícula (…) Além disso, os alunos que não eram de São Paulo ou do Recife tinham que se deslocar para essas cidades e manter-se lá por cinco anos. Muitos, para garantir a admissão, faziam cursos preparatórios ou pagavam repetidores particulares. Esses custos eram obstáculos sérios para alunos pobres, embora alguns deles conseguissem passar pelo peneiramento. Menciona-se, por exemplo, a presença de estudantes de cor já nos primeiros anos da Escola de São Paulo, aos quais, por sinal, um dos professores se recusava a cumprimentar alegando que negro não podia ser doutor.”[8]

A professora Gizlene Neder relata que a ideologia liberal, necessária à emancipação do país do monopólio político da Metrópole e ligada aos grandes proprietários rurais da época, esteve diretamente vinculada à criação dos primeiros cursos jurídicos brasileiros. No Brasil, o liberalismo foi adotado pelos grandes latifundiários e escravistas, garantindo-se, entretanto, os direitos à propriedade privada de forma absoluta e à utilização da mão-de-obra escrava.[9]

Os cursos de direito no Brasil surgiram ligados às classes dominantes e auxiliaram na formação das elites políticas do país. O pensamento sedimentado nas escolas de direito e adotado pelos profissionais do direito no campo jurídico tem suas raízes na defesa dos interesses das elites rurais. Portanto, o judiciário surge ligado a elite dominante econômica e politicamente. E, mesmo com as tentativas de democratização deste Poder, como por exemplo com a adoção de concurso público na seleção de seu corpo técnico, não se conseguiu diversificar o discurso jurídico de forma significativa.

Tentamos buscar as explicações para este fato nas teses do filosofo francês Pierre Bourdieu  sobre o poder simbólico do Judiciário: “(…) por mais que os juristas possam opor-se  a respeito de textos cujo sentido nunca se impõe de maneira absolutamente imperativa, eles permanecem inseridos num corpo fortemente integrado de instâncias hierarquizadas que estão à altura de resolver os conflitos entre os intérpretes e as interpretações. E a concorrência entre os intérpretes está limitada pelo facto de forças políticas a medida em que apresentem como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos: como a Igreja e a Escola, a Justiça organiza segundo uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se apóiam, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decisões.”[10]

Dentro deste quadro, a atuação dos juízes de primeira instância encontra limites na hierarquia dos Tribunais e, portanto, nas decisões dos magistrados de segunda instância. A promoção dos magistrados depende dos critérios de antiguidade,  merecimento[11] e da participação constante em cursos, seminários e palestras de atualização oferecidos pela Escola de Magistratura, que freqüentemente são ministrados por desembargadores restringindo “o caráter inovador e crítico desses cursos”.[12]

Por tal motivo, é comum que indivíduos com diferentes vivencias sociais e oriundos de diversas classes, quando ingressam neste espaço, passem a incorporar a postura e o discurso hegemônico nele presente. Pois, “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”[13]

Desta forma, muitas vezes os magistrados não percebem que sua atividade profissional lhes permite diferentes interpretações da lei e a descoberta de novas formas de mediação de conflito. Acabando por reproduzir as posições majoritárias, adotando-as como “verdades absolutas”.

Como explicado por Terry Eagleton, “qualquer campo social é necessariamente estruturado por um conjunto de regras não enunciadas para o que pode ser dito ou percebido validamente dentro dele, e essas regras, portanto, operam como um modo do que Bourdieu denomina ‘violência simbólica.’ Como a violência simbólica é legítima, geralmente não é reconhecida como violência.(…)”[14]

É neste sentido que percebermos porque juízes novos e de diversas classes sociais, ao ingressarem na magistratura passam a atuar dentro da dinâmica do campo judiciário, incorporam o discurso conservador, sem perceber, muitas vezes, que estão sujeitos à violência simbólica,  já que tal discurso aparece dotado de legitimidade.

Também devemos registrar que os magistrados, principalmente nas cidades do interior, encontram como espaço de socialização as mesmas festas, restaurantes, clubes, academias de ginástica das classes e frações da classe dominante. Como destaca Bourdieu, “a proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade doshabitus[15], ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo.”[16]

Por esse motivo, na maior parte dos casos torna-se mais fácil a adesão dos magistrados as teses dos proprietários do que a aceitação dos argumentos que levam trabalhadores sem-terra a promoverem a ocupação de uma propriedade privada.

  1. Conclusão

Nesta pesquisa observamos que as demandas por terra freqüentemente levadas ao judiciário nos últimos anos vêm sendo interpretadas de forma hegemônica como uma afronta ao direito de propriedade. A Constituição Federal de 1988 garantiu importantes conquistas para as classes populares, entretanto, nas questões relativas à propriedade privada, foram (e são) poucos os magistrados que romperam (e rompem) com o discurso proprietário, incorporando o paradigma da função social da propriedade.

Dessa forma, os movimentos que lutam pela democratização do acesso à terra não vêm encontrando no judiciário um campo propício para a concretização de suas reivindicações. Entretanto, os trabalhadores sem-terra não desistem e através de sua luta cotidiana, das marchas, das ocupações de terra, prédios públicos e na resistência à despejos que vêm tentando garantir o cumprimento dos direitos sociais assegurados na Constituição Federal de 1988.

  1. Bibliografia

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WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito, 4a edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000

Outras publicações

As lutas pela terra no Estado do Rio de Janeiro, cartilha do MST/RJ.

 

[1] MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do Poder: Conflitos de Terra e Direito Agrário no Brasil de meados do século XIX. Unicamp, 1996.

[2] BALDEZ. Miguel. Notas sobre a Democratização do Processo. In Estudos de Direito Processual em memória de Luiz Machado Guimarães. Org: José Carlos Barbosa Moreira, Editora forense, 1999.

[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, capítulo VIII, p. 387-397.

[4] Idem, Ibidem,

[5] GRAMSCI. Antonio. Introdução ao Estudo da Filosofia e do Materialismo Histórico(s/d)

[6] Para uma análise mais aprofundada sobre a interpretação judicial e o papel político desempenhado pelos juízes ver WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito, 4a edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000 e STRECK, Lenio Luiz.Hermenêutica jurídica e(m) crise, 6a edição. Porto Alegre: editora livraria do advogado, 2005.

[7] Dessas trinta e três ocupações realizadas pelo MST no território fluminense, entre os anos 1996 e 2005,  não temos informações processuais sobre três e em dois casos o proprietário não ingressou com ação possessória. Desta forma, o número de liminares negadas passa para seis. Dados obtidos na pesquisa realizada no mestrado disponibilizados em QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana. A magistratura fluminense: seu olhar sobre as ocupações do MST. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005.

[8] CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 74-75

[9] NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 103.

[10] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, 7ª edição. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2004, p. 213-214.

[11] “Reforçando a adaptação dos novos magistrados à cultura organizacional do Poder Judiciário, o próprio sentido de hierarquia –  estritamente vinculado à política de promoção por mérito  – funciona como mecanismo para reduzir a renovação da jurisprudência. Para o juiz preocupado com sua carreira é fundamental estar de acordo com o Tribunal e estar de acordo com a jurisprudência dominante, de forma a não Ter suas sentenças sistematicamente revogadas.” (JUNQUEIRA, Eliane Botelho [et ali] Juízes retrato em preto e branco. Rio de Janeiro: editora Letra Capital, 1997, p. 164) 

[12] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Ed. Saraiva, 1996, p. 34.

[13] Idem, Ibidem, p. 7-8.

[14] EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Ed. UNESP/Boitempo, 1997, p.141.

[15] Lado ativo de um conhecimento adquirido. (BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico,7ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 61). Terry Eagleton irá explicar o conceito de habitus como a “inculcação nos homens e nas mulheres de um conjunto de disposições duráveis que geram práticas particulares.” (Op.Cit. p.141).

[16] BOURDIEU, Pierre. Poder Simbólico, Op.Cit. p. 242.