REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721
Número 03 – Julho/Dezembro 2006
Cor, escolaridade e prisão: um estudo sócio-jurídico do fenômeno da reincidência criminal
Elisa Torelly – Graduada em Direito PUCRS.
E-mail: lisatorelly@yahoo.com.br
Mayara Silva – Graduada em Direito PUCRS e Ciências Sociais UFRGS.
E-mail: mayara.silva@gmail.com
Lígia Mori Madeira – Socióloga, bacharel em Direito. Mestre e doutoranda em Sociologia/ UFRGS. Professora das Faculdades de Direito da PUCRS e da UNISINOS.
E-mail: ligia.madeira@ibest.com.br
Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo analisar as trajetórias criminais de egressos do sistema penitenciário no intuito de revelar questões atinentes ao fenômeno da reincidência criminal. Para tanto, pretende-se investigar, de uma amostra de ex-presidiários atendidos por instituições de apoio nas cidades do Rio de Janeiro e Porto Alegre, o percentual de egressos reincidentes e a relação entre reincidência, cor e escolaridade como um possível indicativo da seletividade exercida pelo sistema de justiça criminal. O trabalho tem como justificativa a carência de estudos sobre o tema da reincidência no Brasil, tendo por referencial bibliográfico as pesquisas de Sérgio Adorno e justifica-se, ainda, na medida em que busca investigar o fenômeno da seletividade penal, cujo cunho racial é chave no Brasil, e a participação dos órgãos de justiça na criminalização de determinadas condutas. Como referencial teórico, utilizamos a matriz conceitual de Michel Foucault e Alessandro Baratta.
Sumário: 1. Introdução; 2. Revisão Bibliográfica: estudos sobre reincidência no Brasil; 3. Abordagem teórica; 3.1. A criminologia crítica de Alessandro Baratta; 3.2 A matriz desconstrutivista de Michel Foucault; 4. Reincidência de Egressos do sistema penitenciário no RS e no RJ: seletividades de cor e o papel da escolaridade; 4.1 Cor; 4.2 Escolaridade; 4.3 Reincidência; 5. Conclusões; 6. Bibliografia.
Palavras-chave: reincidência, egressos do sistema penitenciário, cor e escolaridade.
- Introdução
O presente trabalho persegue o propósito de examinar as trajetórias criminais de egressos do sistema penitenciário, tendo como principal enfoque as questões atinentes ao multifacetado fenômeno da reincidência criminal.
Diante da imagem de uma desigual repartição do acesso aos recursos e às oportunidades sociais dentro da realidade brasileira, faz-se imprescindível e urgente a observação da aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, destacando dentre estas as penas privativas de liberdade, como fator essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade.
É inequívoco o liame intrinsecamente estabelecido entre a reincidência criminal e o funcionamento dos estabelecimentos penitenciários. Assim, torna-se curial uma análise apurada de variáveis do perfil social de egressos do sistema carcerário, para que, dessa forma, possamos identificar as relações entre a cor da pele, o nível de escolaridade atingido e o índice do retorno dos ex-presidiários ao crime. Indo além, procuramos observar tais relações como um possível indicativo da seletividade exercida pelo sistema de justiça criminal e, outrossim, a efetividade do papel da escolaridade como prevenção à prática de condutas consideradas delituosas.
Não obstante o fato ser grande a quantidade de estudos acerca da questão prisional, nossa preocupação também se deve à exigüidade daqueles que tem como foco o fenômeno da reincidência. A pesquisa teve início no mês de agosto de 2006, sendo de caráter voluntário, ou seja, desvinculada de órgãos de financiamento. Surgiu a partir de interesses comuns entre as alunas Elisa Torelly e Mayara A. S. Nunes da Silva em relação à Iniciação Científica e à sociologia jurídica, contando desde o início com a orientação da professora Lígia Mori Madeira.
Foram analisados os dados colhidos pela professora Lígia no mês de julho de 2006, em virtude da realização de sua tese de doutorado, obtidos através dos prontuários e processos de execução criminal de egressos do sistema penitenciário das cidades de Porto Alegre e do Rio de Janeiro. Em relação à primeira, os dados foram fornecidos pelo Foro Central, e, quanto à segunda, pelo programa Agentes da Liberdade.
Nesse sentido, a investigação acerca da problemática da reincidência requereu uma análise do perfil social de 146 ex-presidiários da Cidade de Porto Alegre e 141 do Rio de Janeiro, mais especificamente em relação à cor e à escolaridade como fatores determinantes (ou não) para o retorno dos ex-presidiários ao crime. Note-se que se trata de uma pesquisa quantitativa e que os dados foram examinados com o auxílio do software SPSS.
O trabalho justifica-se, ainda, na medida em que observa egressos apoiados pela Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário (FAESP), criada em 1997, em Porto Alegre e, da mesma forma, egressos apoiados pelo programa Agentes da Liberdade, promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro. Destarte, procura também contribuir com a análise da efetividade de tais iniciativas de reinserção social. Daí o fato de a pesquisa ser classificada como quantitativa, uma vez que o universo de egressos apoiados gira em torno de 700 no Rio de Janeiro e 350 em Porto Alegre. Observe-se que, se trabalhássemos com a totalidade de egressos do sistema carcerário dos dois estados (apoiados e não-apoiados), o número de indivíduos analisados seria insuficiente para ocasionar a classificação “quantitativa”.
No entanto, é conveniente destacar que um dos principais obstáculos que se impõem no tratamento científico do tema gira em torno da imprecisão dos dados obtidos, porquanto sua fonte vem a ser as definições realizadas pelos membros do próprio sistema de justiça criminal, que, por sua vez, não se encontram desprovidos de ideologias, mormente em relação à atribuição da cor da pele dos indivíduos que chegam às instituições de tal sistema. Essa ponderação vem à tona ao serem observados os prontuários criminais e os processos de execução penal, a partir dos quais é possível depreender uma mudança na classificação da cor da pele ao longo do processo.
As questões supracitadas foram exploradas a partir de três hipóteses, quais sejam:
- i) o índice de reincidência da amostra de nossa pesquisa é muito aquém do encontrado para a massa carcerária nacional;
- ii) existe uma seletividade por parte do sistema de justiça, que (re) criminaliza mais pessoas da cor negra e;
iii) a escolaridade é um fator importante na prevenção da reincidência.
Entre os alicerces teóricos de nossa pesquisa está a contribuição de Sérgio Adorno, coordenador-adjunto do Núcleo de Estudos e Violência da USP (NEV), uma vez que o sociólogo traz à baila importantes questões acerca do tema da reincidência, e, outrossim, dados de pesquisas realizadas no Estado de São Paulo, mormente em relação ao perfil social dos réus por ele observados. Serviram também como base os estudos de Michel Foucault, filósofo e historiador francês que teve como destaque em sua obra as questões atinentes ao nascimento da prisão e às diferentes formas de manifestação do poder. Ademais, utilizamos a obra do italiano Alessandro Baratta, criminólogo crítico marxista. Observe-se que, dos dois últimos autores, depreendemos contribuições no que concerne à intrínseca relação –mais especificamente, de complementação – firmada entre o sistema escolar e o sistema penal.
- Revisão Bibliográfica: estudos sobre reincidência no Brasil
Como já referido, alguns dos principais estudos sobre o tema da reincidência penitenciária realizados no Brasil vêm a ser de autoria de Adorno. Dentre estes está a pesquisa sobre a reincidência na Penitenciária de São Paulo entre os anos de 1974 e 1985, em co-autoria com Eliana Blumer T. Bordini, na qual as principais preocupações foram a avaliação da magnitude da reincidência penitenciária e o conhecimento e a interpretação do perfil dos reincidentes penitenciários, quando comparados aos não-reincidentes. Neste trabalho, o autor destaca que a reincidência se dá como expressão do funcionamento dos estabelecimentos penitenciários. Assim, pondera que índices altos de egressos que reincidem poderiam significar um sistema pouco (ou totalmente) ineficaz, na medida em que não vai de encontro às finalidades para os quais foi criado.
Adorno e Bordini apontam o problema da fidedignidade dos dados como uma das principais dificuldades no tratamento científico do tema. Vão além, ironizando a carência de estudos sobre o assunto num país onde a problemática encontra-se freqüentemente inserida nos pronunciamentos das autoridades incumbidas de realizar o controle e a vigilância e, outrossim, encontra-se não menos alastrada de forma alarmante pela imprensa.
De suma importância é a reflexão dos autores ao referirem-se ao trabalho de Castro et alli (1984), destacando que, ao transitarem pelos aparelhos policiais e judiciais, os egressos adquirem um novo saber que se sobrepõe ao que decorre de sua condição de subalternos na estrutura de classes sociais. Tal saber seria desprovido de legitimidade e somente passível de ser transmitido como experiência individualizada que, por sua vez, se restringe “ao universo cultural de seus iguais”.
Na pesquisa de Adorno e Bordini, a taxa de reincidência penitenciária revelou-se baixa. Em estudos anteriores, restou por eles observado que a taxa de reincidência foi maior nos casos de condenação a penas privativas de liberdade do que nos casos de penas alternativas. Assim, concluem que quedou corroborada a “magistral intuição foucaultiana: a prisão agrava a reincidência”.
No que tange ao perfil social dos reincidentes, oportuno destacar a assertiva de que existem estigmas que atingem intensamente a condição social dos indivíduos que perpassam as instituições que compõem o sistema de justiça criminal. Assim, são deixados de lado os traços sociais que ocasionam as diferenciações, para atentar-se a categorizações que consideram os delinqüentes perversos, anti-sociais, embrutecidos e inadequados para o convívio em sociedade. Assim, a mídia e os demais segmentos da comunidade política continuam afeitos às teorias de impacto do encarceramento, difundindo-se a (falsa) idéia de que a pena privativa de liberdade tende a conter o comportamento considerado criminoso.
Nas palavras de Juan Mario Fandiño Mariño, o problema da reincidência constitui a “espinha dorsal” das chamadas carreiras criminosas. Para o professor, tal fenômeno explicita o fracasso do esforço social pela re-socialização dos infratores e o fortalecimento de sua exclusão. Assim, estabelece três “dimensões causais hipotéticas” da reincidência criminal: i)condições carcerárias; ii)condições socioeconômicas; e iii)tipos de crime, para, com elas, explorar sua principal preocupação: até que ponto a manipulação das condições prisionais pode diminuir a reincidência? Observe-se que, para proceder em tal análise, Mariño baseou-se nos registros do sistema prisional da Secretaria de Segurança do Estado do Rio Grande do Sul.
Tendo em vista que a cor da pele dos indivíduos é uma das variáveis analisadas em nosso trabalho, torna-se imprescindível atentar para o entendimento de Mariño a respeito da questão. Em seus estudos, o professor observou que, nos Estados Unidos, há fortes discriminações contra os negros e outras minorias. No entanto, essa diferença se dá apenas em relação às primeiras detenções, ao passo que, no tocante às detenções posteriores, não há resultados consistentes apresentados pelo fator raça. Já na Austrália, encontra-se tendências discriminatórias voltadas aos aborígines. Destarte, o autor pondera que “a medida em que o fator raça seja determinante para o recidivismo, e qual seja a posição hierárquica desse fator frente a outros, é uma questão empírica, histórica e regionalmente específica”.
Mariño também atenta para o problema da estigmatização, denominando-o, no entanto, de “rotulação do processo policial-judicial” ao associá-lo à insuficiência financeira quando trata da questão da base econômica para observar a reincidência. O autor relaciona os dois fatores à idade, ao inferir que, depois de ter sido rotulado, o problema do jovem sentenciado não se manifestaria na adolescência, e sim mais adiante, quando justamente as responsabilidades econômicas e financeiras e a auto-imagem tendem a ser muito mais importantes. De acordo com seu entendimento, “num entorno econômico de rápida mudança, isto pode ser crucial”.
Também com relação ao fator sócio-econômico, o professor destaca que nem sempre nos níveis mais agudos de pobreza se encontram os mais altos índices de reincidência, uma vez que esse impacto é muito mais comum nos casos de queda das condições de vida e nos casos de dificuldade de auferimento das condições de vida impostas culturalmente.
- Abordagem Teórica
Tendo em vista o enfoque crítico da presente pesquisa, nossa base teórica reside fundamentalmente nas obras de dois autores da sociologia contemporânea: o criminólogo crítico marxista Alessandro Baratta, nascido na Itália, e o filósofo e historiador francês de matriz desconstrutivista Michel Foucault.
3.1. A criminologia crítica de Alessandro Baratta
Primeiramente, destacamos o pensamento de Baratta no que tange à relação de complementação que se estabelece entre as funções exercidas pelo sistema penal e o sistema escolar. Para o autor, tal complementaridade vem a atender à exigência de reproduzir e de assegurar as relações sociais existentes, procedendo, assim, na manutenção do status quo. O cárcere e a escola seriam os principais aparelhos de controle social do indivíduo e, por conseguinte, os principais aparelhos de reprodução da estrutura vigente. O autor considera o desvio como construção cultural, afirmando que existem “processos de criminalização”, ocasionados, mormente, pelo tratamento dado ao delinqüente na prisão. No que tange à escola, a ação discriminante por ela exercida se dá através da relação que se estabelece entre os “maus” escolares e os outros. De acordo com Baratta, em relação aos jovens e às crianças provenientes de grupos marginais, a escola é, muitas vezes, um dos principais fatores que os impelem para o seu papel de marginalizados.
Da obra do estudioso, vale ressaltar as seguintes considerações:
“A homogeneidade do sistema escolar e do sistema penal corresponde ao fato de que realizam, essencialmente, a mesma função de reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da sociedade, criando, em particular, eficazes contra-estímulos à integração dos setores mais baixos e marginalizados. (…) Por isso, encontramos no sistema penal, em face dos indivíduos provenientes dos estados sociais mais fracos, os mesmos mecanismos de discriminação presentes no sistema escolar”.
Nesse sentido, o criminólogo defende a existência de uma série de mecanismos institucionais que, situados entre os dois sistemas, firmam sua continuidade e remetem, “através de filtros sucessivos”, determinado contingente da população de um para outro sistema. Assevera, outrossim, que nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas, tais mecanismos cumprem tarefas de assistência social, de prevenção e de reeducação em face do desvio de menores.
Citando Rusche, Baratta observa que o direito penal efetua, nas camadas economicamente inferiores da sociedade o que a escola desenvolve na zona média e superior a ele: “a separação do joio do trigo”, o que, por sua vez, viria a constituir e, de certa forma, legitimar a escala social existente, e desse modo, assegurar a manutenção da realidade social.
O estudioso italiano também traz à tona o problema da estigmatização penal e transformação da identidade social da população criminosa. A criminalidade não seria um dado pré-existente, mas uma realidade social de que a atuação das instâncias oficiais é elemento determinante. Mediante tal atuação, as instituições do sistema criminal, no caso, constituem essa realidade social ao proceder em uma percepção seletiva dos fenômenos, que acaba por se traduzir no recrutamento de uma “circunscrita” população criminal. Por conseguinte, conectam-se dois processos: a seletividade preferencialmente direcionada a determinados grupos de indivíduos que, por inúmeras razões, cometem delitos e a estigmatização exercida pelos efeitos da prisão, que, por sua vez, vem a ser um dos principais fatores que impelem tais indivíduos a reincidir em práticas delituosas.
No que tange à estigmatização, é imprescindível observar que esta (também) se dá na medida em que, durante sua permanência no cárcere, o indivíduo passa a ser “desadaptado” para a vida em liberdade, sendo desestimulado e, assim, perdendo a noção de auto-responsabilidade do ponto de vista econômico e social. Ademais, tal indivíduo passa a assumir os modelos comportamentais dos valores típicos do interior do sistema carcerário. Destarte, Baratta destaca justamente a relação inversamente proporcional que se dá entre a absorção de tais valores, que, por sua vez, compreende a assunção do rótulo de criminoso, e as chances de reinserção na sociedade livre.
Tecidas algumas considerações sobre a contribuição de Alessandro Baratta para o que estamos definindo como linha de pesquisa, convém ressaltar que essa influência expressa a nossa preocupação em apresentar uma análise fundamentalmente crítica dos dados obtidos, numa sociedade em que predominam discursos vazios e demagogos que visam alimentar teorias do senso comum que, amiúde, são inverossímeis.
3.2 A matriz desconstrutivista de Michel Foucault
Nesta mesma senda, não menos importante é o subsídio da obra de Michel Foucault, uma vez que esta reúne trabalhos que atentam para o nascimento da prisão e para a questão do poder disciplinar, explicitando as instituições penais e as instituições escolares como dois microssistemas que exemplificam as diferentes formas da manifestação do poder, o que se torna extremamente relevante para a presente pesquisa.
De acordo com o pensamento de Foucault, as práticas individualizantes do poder podem ser melhor vislumbradas nas referidas instituições, uma vez que os membros que as compõem se encontram observados e, através de prontuários criminais e fichas e boletins escolares, são mais precisamente individualizados. Para o autor, ambos os sistemas destacam a separação das pessoas, seu alinhamento, sua colocação em série e a vigilância que se exerce entre elas. Desta forma, o papel de fixação dos indivíduos em aparelho de normalização dos homens não caberia somente à prisão, mas a diversas instituições: escolas, orfanatos, centros de formação hospitais, hospícios. As pessoas sofreriam a influência desses mecanismos de controle e reprodução social durante toda a sua existência.
Observe-se ainda que, da mesma forma que, para Baratta, reserva-se um tratamento diferenciado ao “mau” aluno, de acordo com Foucault, o indivíduo transgressor das normas institucionalmente estabelecidas resta muito mais individualizado do que aquele que as cumpre. Destarte, o preso que tem um mau comportamento na prisão é dirigido para regimes que vêm a isolá-lo do grande grupo, e, outrossim, o aluno que se diferencia dos demais por não estudarem suficientemente são muito mais observados do que os “bons” alunos.
Tendo em vista que a questão da reincidência traz como um de seus principais fatores o estigma carregado por indivíduos que transitaram as instituições criminais, e que esse estigma é incompatível com um conceito de ressocialização, faz-se oportuno salientar o pensamento crítico de Michel Foucault no que tange à noção de ressocialização no sistema penitenciário.
Segundo o autor, o conceito de ressocialização surgiu por volta dos séculos XVII e XVIII, juntamente com a idéia da resposta ao crime oferecida através das penas privativas de liberdade. No contexto da época, e ainda atualmente, ressocializar seria sinônimo de disciplina, trabalho e obediência à hierarquia das relações de poder; tendo como fim a utilização econômica dos criminosos. Assim, não haveria que se falar em ressocialização, mas em uma adequação dos indivíduos ao modelo de sociedade vigente, sendo a prisão um instrumento garantidor da reprodução desse modelo. Nesse sentido, convém observar:
“Entre o crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão constituirá um espaço entre dois mundos, um lugar para as transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este perdera”.
Para Foucault, o cárcere representa um castigo, e tem como objetivo principal a educação dos corpos através da punição. O criminoso seria aquele que rompeu com o (mítico) pacto social, que a ele não se adapta e por isso pode ser considerado perigoso. Assim, a lei penal teria duas funções: reparar a perturbação causada pelo criminoso e impedir, através de uma coerção, que males semelhantes ocorram. Ocorre que, no entanto, é o próprio sistema prisional o responsável pelo retorno dos ex-presidiários ao crime, porquanto, nas palavras de do autor, “constata-se que a prisão, longe de transformar os criminosos em pessoas honestas, só serve para fabricar mais criminosos, ou para enterrar ainda mais os criminosos na criminalidade”.
Com base em tais assertivas, tem-se no funcionamento dos estabelecimentos penitenciários um dos mais sólidos argumentos referentes às causas de reincidência penitenciária. Assim, restaria demonstrada a falência do sistema carcerário no tocante ao propósito de reinserção social dos indivíduos que a ele chegam. Observe-se, todavia, que o fato de o sistema carcerário não atender ao que, teoricamente, se propõe, não será um tema analisado com profundidade na presente pesquisa, sendo apenas necessário destacar que tal fato faz, inegavelmente, parte do multifacetado fenômeno da reincidência criminal.
- Egressos do sistema penitenciário de Porto Alegre e do Rio de Janeiro: seletividades de cor e o papel da escolaridade
A despeito de sua insipiência, a pesquisa apresenta resultados preliminares e, dentre estes, alguns que corroboram com as hipóteses propostas. Os dados foram colhidos pela professora Lígia Mori Madeira, orientadora do presente trabalho, em virtude da realização de sua tese de doutorado. Foram analisados os prontuários e processos de execução criminal de egressos do sistema penitenciário das cidades de Porto Alegre e do Rio de Janeiro vinculados a iniciativas de apoio.
4.1.Cor
Na cidade de Porto Alegre, dentro de um universo de 146 egressos observados, há mais indivíduos da cor branca (44,5%). Já no Rio de Janeiro, a maior parte dos egressos (80,9%) foi descrita como “não-branca”.
Outrossim, há mais reincidentes da cor branca (44%) na capital gaúcha. Todavia, o coeficiente de reincidência é mais alto entre os negros (34%). No Rio de Janeiro ocorre exatamente o contrário: há mais reincidentes “não-brancos”, e a freqüência de reincidência é maior entre os brancos.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a maioria da população gaúcha se descreve como branca (87%). Tal fato elucidaria o motivo da maior parte dos egressos, e, outrossim, dos reincidentes, ser da cor branca. No entanto, essa assertiva não se aplica à capital carioca, uma vez que, não obstante 58,7% de sua população se descrever como da cor branca, a maioria dos reincidentes se descreveu “não-branca”.
Sobre o tema, convém atentar para o entendimento de Renato Sérgio de Lima, quando assevera que “o recorte cor sugere que alguém só pode ter cor se ser classificado por ela se existir uma ideologia na qual a cor das pessoas tem algum significado, ou seja, no interior de ideologias raciais”.
A premissa de que uma pessoa só pode ser considerada reincidente depois de ter sido condenada, associada ao entendimento de Sérgio Adorno, quando assevera que “a cor é poderoso instrumento de discriminação na distribuição da justiça” e que é mais alto o nível de reincidência entre os negros, comprova a idéia de que, no tocante à cidade de Porto Alegre existe uma seletividade por parte do sistema de justiça, que (re) criminaliza mais pessoas de cor negra. Imprescindível destacar as palavras do referido autor ao concluir que “se o crime não é privilégio da população negra, a punição parece sê-lo”.
4.2 Escolaridade
No que tange ao grau de escolarização, em ambas as cidades restou observado que há uma maior proporção de egressos que alcançaram entre a 5ª e a 8ª série do Ensino Fundamental. Nota-se que, também nas duas cidades, os mais altos índices de reincidência concentram-se principalmente entre os egressos que atingiram os mesmos níveis de ensino.
De tais assertivas, depreender-se-ia a idéia de que não há influência direta da baixa escolaridade no número de egressos que reincidiram, o que viria convergir com o entendimento de Adorno, quando este afirma que a escolaridade dos delinqüentes não é baixa porque sejam criminosos, mas porque a escolaridade da população resta nos níveis elementares.
Destaca-se, ainda que os dados do IBGE (PNAD-2004) vêm a confirmar tais considerações, com relação à caracterização dos níveis de escolaridade alcançados pelo povo gaúcho. Apenas 15% da população gaúcha estudou durante 11 anos, o que poderia equivaler ao Ensino Médio completo, não fosse a possibilidade de haver repetências das mesmas séries (reprovações escolares) dentro de tal número.
Em contrapartida, convém notar que 25,8% dos indivíduos que cursaram até a oitava série do nível fundamental reincidiram, ao passo que 12,5% daqueles que alcançaram o nível médio tornaram a delinqüir. Tais fatos podem, em certa medida, comprovar a hipótese de que a escolaridade pode servir como prevenção da reincidência, uma vez que, quanto mais alto o nível de ensino atingido, menor o índice de egressos reincidentes.
4.3 Reincidência
No que concerne à reincidência, o índice obtido na capital gaúcha foi de 23%, enquanto observou-se que 43% dos egressos do sistema penitenciário do Rio de Janeiro tornaram a delinqüir. Tais dados vêm a confirmar a hipótese de que o número de reincidentes encontra-se muito aquém do encontrado para a massa carcerária como um todo.
Ao serem cruzados os dados referentes aos três tópicos abordados na pesquisa, quais sejam: a cor, a escolaridade e a reincidência dos ex-presidiários, tem-se, em Porto Alegre, uma maior proporção de reincidentes brancos que cursaram entre a 5ª e a 8ª série. No Rio de Janeiro, os maiores índices encontram-se entre os negros que cursaram até a 5ª série.
- Conclusões
Com nosso trabalho, procuramos romper com um discurso, em certa medida, sofisticado da democracia racial, que visa resguardar o estado brasileiro da explicitação do racismo, ao deduzirmos que esse discurso não conseguiu abranger a esfera penal em sua totalidade. Note-se que a insistência em propagar uma imagem anti-racista não corresponde à realidade, uma vez que os negros sofrem dupla discriminação: aquela que diz respeito ao fato de estarem inseridos mais amiúde nas camadas desprivilegiadas da estrutura social e, outrossim, aquela eminentemente racista, que insiste em conceber os negros como biológica e culturalmente inferiores aos brancos.
Trata-se de uma realidade lamentável, ao nos distanciarmos em quase 120 anos da abolição da escravatura e notarmos que, como se não bastasse o fato de, notoriamente, os negros serem desprovidos das mesmas oportunidades dos brancos dentro da sociedade, têm de conviver com o fardo de serem preferencialmente selecionados pelo sistema de justiça criminal sofrendo, assim, a exclusão social fortalecida pelo preconceito e pela estigmatização.
No que tange à escolaridade, entendemos que, enquanto a escola continuar atendendo as exigências de uma estrutura capitalista, apenas visando formar as pessoas para cumprirem seu papel no mercado de trabalho, ou seja, para serem utilizadas economicamente, e, dessa forma, excluindo aquelas que não atendem a tal exigência, o problema da criminalidade, e, por conseguinte, da reincidência está longe de ser abrandado, e, tampouco, elidido.
Em outras palavras, faz-se urgente uma (re) estruturação fundamentalmente crítica dos métodos de ensino, que tracem uma estratégia que venha efetivamente a reinserir as crianças e jovens marginalizados pela sociedade, para, assim, estimulá-los a questionar e lutar por melhores condições/oportunidades para si e para os membros da classe de que são oriundos.
“Sempre se pode perdoar a mentira; a mentira é uma coisa simpática, porque conduz à verdade. O deplorável é quando mentem e reverenciam a própria mentira”.
Fiódor Dostoiévski – Crime e Castigo
- Bibliografia
ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros em perspectiva comparativa In: Estudos Históricos, n. 18. Rio de Janeiro: 1996.
______. Socialização na delinqüência: reincidentes penitenciários em São Paulo. Cadernos Ceru, série 2, n. 3, p. 113 – 147, 1991.
ADORNO, Sérgio; BORDINI, Eliana. Reincidência e reincidentes criminais em São Paulo: 1974 a 1985. RBCS, São Paulo, v.9, n. 3, p. 70 – 94, fev. 1989.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999.
DIAZ, Esther. Michel Foucault: los modos de subjetivacíon.Buenos Aires: Almagesto, 1992.
FIÓDOR, Dostoiévski. Crime e Castigo. São Paulo: Editora 34, 2001.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IV. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
______. Vigiar e punir: história da violência nas prisões, 14. ed., Petrópolis: Vozes, 1996.
LIMA, Renato Sérgio de. Atributos raciais no funcionamento do Sistema de Justiça Criminal Paulista. In: São Paulo Perspec., Jan. /Mar. 2004, vol.18, n.1, p.60-65.
MARIÑO, Juan Mario Fandiño. Análise comparativa dos efeitos da base socioeconômica, dos tipos de crime e das condições de prisão na reincidência criminal. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n.8, jul/dez 2002, p. 220-244.
SCHABBACH, Letícia Maria. Sistema penitenciário do Rio Grande do Sul: reincidência e reincidentes prisionais. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 1, n. 1, jan/jun, 1999, p. 224 – 243.
Outras versões deste texto estão publicadas nos anais do II Ciclo de Estudos e Debates sobre Violência e Controle Social, Porto Alegre: PPG Ccrim, PUCRS, 2006 (no prelo) e nos anais do VII Salão de Iniciação Científica da PUCRS.
Destacamos o vocábulo “entre” em virtude da consideração de Foucault ao inferir que o poder não se estabelece somente por parte do Estado (macropoder – decrescente) em relação aos indivíduos que lhes são subordinados, mas, outrossim, alastra-se por todos os recônditos dos microssistemas que compõem a organização do indivíduo em sociedade. Assim, a vigilância e o controle não são exercidos apenas pelo órgão superior (diretor da prisão, diretor da escola), mas, outrossim, pelos próprios indivíduos que fazem parte desses universos, uns em relação aos outros.
Ressalta-se que, em relação ao Rio de Janeiro, observou-se uma pluralidade de descrição de cor referentemente aos egressos considerados “não-brancos”. Entre tais descrições havia as mais diferentes formas de classificação da cor da pele (negros, pretos, escuros, morenos, mulatos…), o que tornou necessária a simplificação dessa classificação entre brancos e “não-brancos”.
Importante atentar para uma possível imprecisão em relação aos dados referentes à cor predominante dos gaúchos, uma vez que são depreendidos a partir de autodefinições, contando, assim, com a arbitrariedade da percepção que cada pessoa entrevistada pelo IBGE tem no que concerne a sua cor da pele.
Sociólogo, Chefe da Divisão de Estudos Socioeconômicos da Fundação Seade.
Note-se que o índice de reincidência encontrado no Brasil é de 82% (DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional – 2003).
A frase citada integra um diálogo entre personagens da obra de Dostoiévski, sendo atribuída ao personagem Razumíkhin, quando este se mostra revoltado com o andamento de um processo criminal no qual estava sendo injustamente indiciado um indivíduo que deduzia evidentemente inocente.