REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721
Número 09 – Julho/Dezembro 2009
Cartografia à margem: impasses sobre a violência na contemporaneidade
Augusto Jobim do Amaral: Advogado, Professor de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da ESADE e da ULBRA; Mestre e Especialista em Ciências Criminais (PUCRS) e Doutorando em Altos Estudos Contemporâneos (Coimbra – Portugal).
E-mail: guto_jobim@hotmail.com
Resumo: O ensaio tem por objetivo tratar de um tema polissêmico por excelência: a violência. Para tanto, num diálogo interdisciplinar, recorre-se a incursões pontuais na obra do Professor esloveno Slavoj Žižek, em especial no que tange à chamada violência objetiva, elemento importante para entendermos o que engendra um panorama catastrófico nos tempos atuais.
Sumário: 1. Algo de contemporâneo; 2. Contornos de uma Violência Espectral; 3. A Violência Ideologicamente Fundada; 4. Conclusão: um Lúcido Bartleby?; 5. Referências Bibliográficas.
Palavras Chave: violência – política – ideologia – capitalismo.
Abstract: The paper analyses a complex theme: violence. For in such a way, for an interdiscipline dialogue, appeals to an incursions in a Slavoj Žižek´s lessons, in special the called objective violence, important element to understand the catastrophic environment in a current days.
Keywords: violence – politics – ideolowgy – capitalism
- Algo de Contemporâneo
Logo no início do Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, melhor, Bernardo Soares – ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa – escreve o que representaria o epíteto, a seu tempo, daquilo que se poderia chamar de uma postura contemporânea diante do mundo:pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado.[1]
Se quisermos firmar passo em algum discurso contemporâneo sobre questão por certo complexa, tal como a violência, teremos que relevar inicialmente o que isto significa. Agamben, num texto que retoma a sua lição inaugural do curso de Filosofia Teorética 2006-2007 junto à Faculdade de Arte e Design da Universidade Iuav de Veneza, vai direto ao ponto. Assevera, na esteira da segunda consideração intempestiva de Nietzsche, que ser contemporâneo assinala uma relação singular com seu próprio tempo – aderir a ele através de uma dissociação e um anacronismo:
“pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.”[2]
Um olhar que se quer oblíquo, de relance, como este que aqui minimamente se pretende compor, será talvez o mais interessado em perceber as trevas sobre o assunto, ser tocado e sensibilizado pelos cantos escuros que ao tema concerne. A própria neurofisiologia da visão já relatou que mesmo a ausência de luz não traz meramente uma não-visão, mas, sim, aquilo que chamamos escuro é produto da atividade das chamadas off-cells em nossa retina[3]. Ou seja, perceber o escuro da contemporaneidade, neste sentido, é não se deixar cegar pelas luzes do seu século e entrever os fachos de trevas de nosso tempo que não cessam de nos interpelar. Pensar o nosso tempo, à altura de transformá-lo, de alguma forma, passa, pois, por cindi-lo, trazer à tona a desomogeneidade para com outras temporalidades. Pôr em questão algumas inquietações relativas a este tema, já ampla e profundamente melhor discutido, diferentemente, também passa por transbordamentos do discurso, como se fossem espasmos, sobre diversos níveis, ainda que aparentemente desconexos, todavia onde o fio de Ariadne permanentemente se insinua: instigar-se por um pensar de raízes que insista em, na linguagem de Timm de Souza, pôr a existência em decisão.[4]
- Contornos de uma Violência Espectral
A problemática da violência pressupõe uma multiplicidade pertinente de entradas possíveis[5]. O cardápio é vasto e os contornos seriam impossíveis se não tivéssemos que fazer algumas escolhas, enfatizar algumas linhas de fuga que possam interrogar certos pontos que não raro são postos entre parênteses. Para ajudar no caminho, trava-se, dentre outras incursões, um diálogo profícuo com algumas pistas colocadas na vastíssima obra do filósofo e psicanalista Slavoj Žižek.
Assim, quanto à violência, num primeiro plano, mais visível, podemos nos deparar com seus sinais mais evidentes, como quer Žižek, de contornos “subjetivos”, que podem ir do espectro que engloba desde a criminalidade propriamente dita até os confrontos internacionais. Não obstante, nossa preocupação é recuar um passo. Importa, sobretudo, perceber os contornos antecedentes que engendram este quadro. Será possível então refletirmos e nos darmos conta, por exemplo, da violência que subjaz os mesmos esforços que visam a combatê-la e, por exemplo, promover a tolerância? Em outros termos, estamos às voltas, ao menos para o momento, ainda que a extensão do ensaio seja um obstáculo, a chamar a atenção para examinar uma classe de violência que o autor esloveno chama de violência objetiva, em especial aquela de caráter sistêmico e de conseqüências catastróficas atinente ao funcionamento homogêneo de nossos sistemas econômico e político. De mais invisível sutileza, portanto, é ela que diz respeito aparentemente àquilo que vivenciamos como um estado “normal” das coisas.[6]
Intimamente ligado a esta catapulta mercadológica estão claramente os significantes daeficiência, da competência, da flexibilidade, do profissionalismo, do pragmatismo, doplanejamento estratégico ou outro significante da novilíngua pronto a encobrir o discurso do mestre, que acabam por se ligar até mesmo ao corolário da esquerda humanitária inocente, trazendo o diapasão da urgência como estandarte também frente ao tema da violência[7]. Diante das catástrofes humanitárias, do caos que se espalha mundo a fora – sempre, é claro, este sentido mediado pelo espaço simbólico da mass media – o sentimento de urgência não tarda a dominar também o dito discurso progressista, e nos obriga ao engajamento obrigatório, ao “faça alguma coisa imediatamente”. Emerge daí um falso sentimento de urgência, engajamento a todo custo, diga-se, uma pseuda representação de uma cena que encobre a hipocrisia da indignação, que não cansa de nos ensinar a conviver com os absurdos. Não precisamos fazer referência, apenas para ir a um único exemplo, aos nossos “McDia Feliz”, em que “x% dos lucros são destinados à associação y de combate ao câncer infantil ou ao hospitalz“. Utiliza-se, assim, de alguma situação de fragilidade para, como no caso, inferir que se consumíssemos aquilo salvaríamos a vida de uma criança. Seria de impressionar a larga escala destas campanhas de “responsabilidade social” que insistem “não há tempo para refletir, aja agora” se não se fizesse perceber facilmente que ignoram ou nada se importam para a realidade “exterior”, ao mesmo tempo em que capciosamente se referem a ela a todo momento. Neste ponto, o exercício de análise crítica indica resistir à tentação imediata de adesão.
Quando falamos de violência objetiva estamos a referir a estas formas mais sutis de coerção que sustentam de algum modo as relações de dominação e de exploração. A lógica auto-geradora e insana da circulação do capital (o Real da dança especulativa do capital[8]), se assim quisermos definir, passa por aí.[9] Não se trata meramente de aceitar este novo patamar do capital como uma simples abstração ideológica que ignora tudo e todos, uma percepção distorcida da vida social material cotidiana, que dispensa pessoas reais e recursos naturais. Por trás desta abstração, por óbvio, há seres humanos vivendo, sofrendo e consumindo em seu meio ambiente frágil, mas isto não é suficiente. Não pára por aí. Não basta dizer que o que existe, de um lado, é a realidade social (base da circulação do capital, numa leitura marxista, que a tudo se reduz) e, doutro, o parasita gigante que suga suas forças. Isto porque esta abstração é radicalmente concreta, ela estrutura processos materiais – vide o comportamento indiferente do especulador que pode mandar à bancarrota um país inteiro pelo teclar de seu palm top. O crivo diferenciado acerca da violência sistêmica, assevera Žižek[10], reside em situá-la, sim, como real, no sentido de que determina, pois, a estrutura dos processos sociais materiais. Pouco irá se compreender, suma, da realidade das interações sociais e suas catástrofes sem o recurso ao estudo desta dança teológica enlouquecida e auto-propulsiva do capital. Há algo aí de puramente anônimo, objetivo, no sentido de ser descolado da realidade ordinária, transcendente às atribuições a indivíduos concretos. Claramente isto se antevê no gap entre os relatórios econômicos “financeiramente sólidos” de certos países (por não o Brasil?) em vista da sua enorme degradação ecológica e miserabilidade humana. Mesmo o universo do mercado virtual não estará indicando que não podemos mais subestimar esta natureza espectral? A forma mais extrema de ideologia – não aquela simplesmente na qual poderíamos ser levados a esquecer as criaturas reais – é a que pretende referir diretamente, como no reino das “abstrações reais” das Bolsas ao redor do mundo, que “o mercado de valores não lida com flutuações misteriosas, mas com pessoas reais e seus produtos”. Mesmo impulso que traz a nós a cegueira quando chamamos a atenção para os resultados da globalização capitalista. Não tardamos, em larga medida, a denegar a responsabilidade e vê-la como um resultado objetivo que ninguém planejou e executou, afinal não há um “manifesto capitalista” para atribuirmos a culpa.
Interessante se discutir algumas novas bordas que se anunciam nesta conjuntura de auto-reprodução do capitalismo global. Anuncia-se para janeiro de 2010 o início das atividades dos 10 anos do Fórum Social Mundial, evento que vem comungando movimentos sociais dos mais plurais na tentativa de nos convencer e de se convencerem de que a globalização capitalista não é uma fatalidade para todos. Paralelamente, como de costume, há Davos, a reunião, atualmente mais de um grupo de empresários que a si próprios tentam vender que a globalização é o melhor negócio para si mesma. Contudo, o que importa frisar é um fenômeno que lá vem tendo ressonância, qual seja, a dos chamados “comunistas liberais”: sujeitos que, por não verem mais qualquer necessidade de confronto com as hipóteses de Porto Alegre, estão preocupados com o sucesso das suas Cias., porém vinculados em aprovar suas causas anticapitalistas de responsabilidade social e de preocupação ecológica. Novamente não precisaremos recorrer aos exemplos de Bill Gates ou George Soros para ver o dogma desta versão pós-moderna da mão invisível de Adam Smith: mercado e responsabilidade não estão aí como elementos contrapostos. Este um mega-especulador preocupado agora com as conseqüências sociais da economia de mercado desenfreada; aquele – além de fantasmaticamente (talvez rirmos de nós mesmos diante disto seja ainda algum sinal de sanidade psíquica) um ex-hacker que teve sucesso, logo, ao nível subjacente, alguém que triunfou sendo subversivo e marginal – despudorado empresário do monopólio virtual que insolitamente se transforma no maior filantropo do mundo. O que retirar desta configuração? O que entrever nesta estratégia? Naturalmente, como “cidadãos do mundo” (soa alguma peça de marketing?), ávidos são por “crises humanitárias” nas quais possam se empenhar a fazer com que as “coisas avancem”, nem mesmo precisando usar da retórica imperialista de antigamente. Afinal, dirão, “num mundo estagnado na pobreza em massa e no terrorismo, devemos ajudar os outros”, e que isto seja feito pela iniciativa privada, em que a regulação pelo Estado não passe nem perto de alguma tributação, pois ela apenas irá “minar as condições de vida daqueles despossuídos”.[11]
Notório que, em seu ideário de um suposto “capitalismo sem atrito”, são eles próprios agentes de uma violência estrutural que criam condições para explosões visíveis de violência dos mais diversos gêneros. Mais importante ainda do que a escancarada beneficência a acobertar a exploração econômica (algo que, obviamente, é atitude comum também em escala internacional, quando os Estados ditos desenvolvidos “socorrem” os subdesenvolvidos e evitam a questão central da sua cumplicidade nesta situação miserável), saliente é a gesto soberanoaqui se alinha. Žižek traça, desde Peter Sloterdijk, os contornos da auto-superação imanente do capitalismo: o capitalismo atinge o seu ponto culminante quando cria fora de si próprio o seu próprio oposto – e o único fecundo – mais radical (…)[12]. Por este golpe fabuloso – é preciso admitir – há uma auto-negação da acumulação sem fim, que romperia com o círculo vicioso da reprodução do lucro ao infinito. Nada além de si é necessário, o absoluto universo é realizado. Algo que permite diferir sua própria crise e, em contrapartida, manter a reprodução do seu ciclo social.
Ademais, há um modo de vida, para não dizer um sintoma social, que toma envergadura e acaba por encontrar solo fértil para vir à tona neste panorama: o medo[13]. Atualmente, toma força uma variável no horizonte, que Žižek preferiu chamar de biopolítica pós-política, que configura a notória política do medo. Se a biopolítica, ao menos desde o seu destrinchamento realizado por Foucault[14] e a sua releitura feita por Agamben[15], tem como epicentro a gestão da segurança e administração eficaz das vidas humanas, aliada agora a uma pós-política alheia aos velhos e estéreis debates ideológicos e mais preocupada “neutramente” com a governabilidade especializada do cotidiano[16], o cenário está pronto para a mobilização do medo. Não de se estranhar que num contexto político “despolitizado” é através do medo que algum tipo de mobilização e mesmo a formação de novas subjetividades possa se dar. A multidão paranóide[17] não cessa de nos fornecer exemplos: desde a expansão das políticas anti-imigração prevalecentes mesmos nos cantões ditos “liberais”, passando pelas demandas de lei e ordem por mais criminalização e punição, até mesmo a febre do politicamente correto que assola a linguagem – pouco preocupados que estão seus defensores com o local do qual se enuncia a fala, ou seja, a posição subjetiva, e atados a prescrever freneticamente regras que, vãmente pretendem encerrar a linguagem, relativas ao conteúdo do que é dito.
A segregação, ainda, é que acaba por dar as cartas como forma de existência social, fato que o Brasil sabe bem como demonstrar. Implica dizer mais. Sendo o capital representante do acúmulo do gozo, e o prazer a maneira pelo qual o movimento para a morte pode ser regulado pelo sujeito, ao menos desde Freud[18], importante a afirmação de Birman[19], de que há no Brasil uma apropriação do gozo por parte de uma pequena elite insensível à destruição que promove. Condensa-se o capital do gozo da nação nestes pontos privilegiados. Inflacionando-se exponencialmente ainda mais este poder, o efeito ricochete de disseminação da violência, de alguma maneira, não tarda a cobrar a fatura. De fato, o que se formam são verdadeiros muros – vide a decisão da prefeitura do Rio de Janeiro, com o apoio do governo do Estado, em 2009, de cercamento “com fins ambientais” de 11 favelas cariocas com muros de mais de 3 metros de altura.
E sobre os que estão do outro lado do muro fantasiamos. Vivem estes seres cada vez mais noutro mundo, o qual funciona muito bem para a projeção de nossos medos, ansiedades e desejos secretos. Certamente, jamais seremos mais iguais a estes sobre os quais o mal extremo foi personificado. Quando acreditamos numa linha simbolicamente intransponível, materialmente realizada ou não, servirá isto, em algum registro, para nos proteger de próprios medos.[20] Entretanto, vai-se além. Mais profundamente que a tranqüilidade que supõe, é a distância e a indiferença absolutas que são enfatizadas. Afinal, não podemos correr o risco de identificação com aquele outro lado sobre o qual depositamos nossa monstruosidade. Completo estará o ciclo de transferência de tudo aquilo que não gostamos em nós mesmos, para a descarga de nossas culpas. O sujeito suposto saquear e violar está do outro lado do muro.[21]
Quando damos um salto e nos preocupamos rapidamente a analisar a ode à tolerância, promulgada hoje aos quatro ventos, algo poderá se perder pelo caminho. Inscrito geneticamente no termo tolerância, que o moderno liberalismo consagrou – com seu negativo exposto – vemos naturalmente que “toleramos aquilo que em princípio, de antemão, não toleraríamos”. Tolera-se algo ou alguém, mas, é claro, desde que sua presença não seja por demais intrusiva: “não tenho problema nenhum com ele, mas ele lá, eu aqui”. Temos, fundamentalmente, como pano de fundo, vez mais, o velho e ainda hoje “remasterizado” valor contratual da liberdade em seu sentido clássico perverso: “minha liberdade termina onde começa o do outro”. Formaliza-se e individualiza-se a liberdade, como se ela pudesse vir antes dos termos de sustentação da própria vida. Em outras palavras, ignorada a liberdade como concretização da condição vital de sobrevivência dos múltiplos. Opacidade que oblitera a resolução ética da liberdade investida.[22]
- A Violência Ideologicamente Fundada
Como se isto apenas não fosse suficiente, o sucedâneo pós-político do momento que não cansa de ser retomado, é a tolerância como categoria ideológica. Para Žižek, é uma operação derivada e viabilizada pelo que se poderia chamar, com explícitos tons benjaminianos, de culturalização da política, quer dizer, as diferenças políticas são postas/reduzidas como/às diferenças culturais. Acondicionam-se entre parênteses a desigualdade política e econômica – neutralizadas e, ainda mais, naturalizadas – para reduzir-se a problemática ao enquadramento sobre os diferentes “modos de vida”. A fórmula de sucesso que bem espelha isto foi o “choque de civilizações” apregoado por Huntington, que nada mais concebe do que os desejos da democracia liberal em escala mundial defendidos por Fukuyama, a cortina política nestes tempos de “fins da história”.[23]
A cultura, assim, torna-se o problema central e é encarada agora como simples conjunto de regras e práticas (idiossincrasias pessoais) alheias a qualquer fundo tradicional coletivo. Na medida em que ela própria (a ausência dela, ao menos, no ideal esclarecido dominante no ocidente), neste viés, é a origem da barbárie, inevitavelmente, para superá-la, deve-se afastar o indivíduo de suas raízes sócio-culturais. Separar, esquizofrenicamente, nesta lógica, a cultura do núcleo do sujeito. Algo de patente e visceralmente violento, assim, anuncia-se e sustenta esta problemática noção de tolerância liberal. Como postulado básico, pelo desiderato moderno ocidental de cultura centrado na autonomia, estará presente o sentido de intolerância quando não for dado a alguém o direito de liberdade de escolha. Para isto, deve-se informar o sujeito e educá-lo nos termos a poder realizar tal opção. Como exemplo, Žižek[24] traz o caso das mulheres muçulmanas que usam véu. Na lógica liberal tradicional, se for de sua livre escolha, é tolerável que a mulher faça uso do véu. Não obstante, e isto se perde de vista, quando realiza este gesto como expressão de sua individualidade, cai por terra o plano espiritual que dá sentido ao próprio uso dele: o sinal de pertença a sua comunidade muçulmana, que traz o uso do véu, é completamente aniquilado. Não raro, por isso, quando alguma delas apresenta-se, por exemplo, em solo estrangeiro, com este símbolo de pertencimento substancial, tal como é de fato para si, a acusação de “fundamentalista” mostra suas garras. Em resumo, não é temerário afirmar que o sentido tolerante ocidental emerge como produto de um processo violento de dilaceração das raízes particulares.
Outro prisma, pousando-se em algum repertório mais caro às ciências criminais, algo a ressaltar – principalmente quando nos deparamos com ambientes criminais perversos, em especial, a compulsão por legislação criminalizante que, ao anverso, denuncia a fraqueza do próprio referencial – são as estratégias (as quais já fizemos referência) de severidade, a todo o custo, que caracterizam os regimes totalitários em matéria penal. Nada de novidade nisto, mas digamos de forma diversa. Boa estratégia nestes Estados (vejamos se não ocorre algo bem semelhante em terra brasilis?) é a tipificação exacerbada de quase toda e qualquer conduta, ao passo que fica difícil, como os estudos criminológicos já apontaram faz mais de meio século, que alguém possa dizer, senão cinicamente, que não lhe poderá ser imputado algum delito. Contudo, como cristalino, a seletividade do sistema penal sempre impera de forma determinante, ou seja, não serão naturalmente todos os crimes que cairão na malha penal. O que isto carrega consigo? Aparentemente, poderá se dizer que o sistema é ineficaz (lógica que só gera o seu próprio inchaço e desconhece que este é um dado estrutural de qualquer sistema punitivo) ou que é complacente de alguma maneira. O que, todavia, se esconde neste impulso, e é combinado a ele ao mesmo tempo, é a constante ameaça disciplinar.[25] O reverso denegado que poderia ser registrado diria: “nada de brincadeira conosco, comportem-se a nossa maneira, senão…”. Ou seja, é a sobreposição da potencial culpabilidade de todos(num sistema frágil de freios ao arbítrio estatal, o que quer que façamos pode ser crime) e daseletividade (dispositivos de criminalização primária e secundária que, para usar a linguagem foulcaultiana, forjam uma rede diferenciada de ilegalidades) que constituem as próprias condições de sobrevivência destes regimes. Por definição, estes Estados totalitários necessitam, assim, serem indulgentes a certas violações à lei para que permaneçam e ampliem suas baterias disciplinares “extra-legais”.
Talvez não fosse necessário que se alertasse sobre o perigo de alguma estigmatização no campo da violência, quer dizer, condená-la como má ideologicamente de antemão. Este impulso leva, como frisamos, a colaborar para a invisibilidade de certas formas fundamentais e brutais de violência social. Há violências e violências: existe um amplo espectro, sobre o qual minimamente nos debruçamos neste espaço, que poderá ir desde a falsa anti-violência até alguma violência emancipatória. Se podemos estar às voltas com um ato violento que, de fato, pode mudar as coordenadas básicas de um panorama social, há violências cuja verdadeira meta é sempre garantir que nada mude, onde algo deve sempre ocorrer (de preferência extraordinário) para que nada aconteça de verdade.
Diante do primeiro aspecto, fazendo uso da já consagrada diferenciação de Walter Benjamim, no seu ensaio Zur Kritik der Gewalt de 1921, podemos estar frente à violência divinaque, sobretudo, representa as intrusões de uma justiça para além da lei:
“Assim, como em todos os campos, Deus se opõe ao mito, de igual modo a violência mítica se opõe à divina. A violência divina constitui, em todos os pontos, a antítese da violência mítica. Se a violência mítica funda o direito, a divina o destrói; se aquela estabelece limites e fronteiras, esta destrói sem limites, se a violência mítica culpa e castiga, a divina exculpa; se aquela é ameaçadora, esta é fulminante; se aquela é sangrenta, esta é letal sem derramar sangue. (…) Porque o sangue é o símbolo da vida nua. A dissolução da violência jurídica se remonta, portanto, à culpa da vida nua natural, que entrega ao vivente, inocente e infeliz ao castigo que “expia” sua culpa, e expurga também o culpado, mas não de uma culpa, mas do direito. Pois com a vida nua cessa o domínio do direito sobre o vivente. A violência mítica é violência sangrenta sobre a nua vida em vista de si própria, a pura violência divina é violência sobre toda a vida em nome do vivente. A primeira exige sacrifício, a segunda os aceita.”[26]
No viés de Žižek[27], trata-se de algo decisivamente revolucionário, politicamente emancipatório e radical, da ordem do puro acontecimento, domínio do trabalho de amor do sujeito. Gesto político que, querendo-se autenticamente ativo e instaurador de uma outra visão, não poderá distar da dimensão teológica de uma pura pulsão de excesso de vida. Estaríamos de fronte a uma violência de outra consistência, instauradora simbólica, se assim quisermos adjetivar, do horizonte ético de justiça. Oposto ao registro mítico, jurídico-estatal, de violência real.
Sobre o segundo plano, aquele da violência permanente que sustenta o “normal” estado das coisas, é necessária a mobilização de enormes forças para que tudo continue como dantes. Por exemplo, recorrendo a uma analogia crua, para que os movimentos sociais não exerçam a pressão legítima, muito menos alcancem êxito em suas empreitadas para as quais obviamente são criados é necessária a mobilização de muita força. As tendências criminalizantes nesta área, a figuração como bodes expiatórios da hora, postos que são como inimigos da ordem sinalizam nesta direção. O “nada social”, o êxtase do sistema, a sua “simples” reprodução sem transformações, demanda o dispêndio de grande quantidade de esforços: rede de “forças-tarefa” contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra, onde se aliam Ministério Público, Brigada Militar e mesmo o Judiciário, como em parte foi realizada no Rio Grande do Sul faz pouco tempo, vem bem a demonstrar esta dinâmica. Por isso, o gesto de “não fazer nada”, de abandonar qualquer atividade que contribua para a manutenção deste contexto violento, acaba por ser profundamente subversivo.
- Conclusão: um Lúcido Bartleby?
E isto nos leva, retomando o núcleo deste modesto escrito, às vezes, como dissemos, a constatar que aquilo de mais crítico e responsável a ser feito passa por resistir à tentação da ação imediata, irrefletida. Uma análise crítica, principalmente neste contexto problemático da violência, ao contrário do que se poderia aceitar, rejeita radicalmente a convocação. Difícil mesmo é abster-nos de contribuir com esta engrenagem. Não se trata, por certo, de passividade complacente e nulificante que mais tarde levaria à catástrofe, mas atentar para a ameaça da pseudo-atividade: não contribuir para a invenção de novas formas para a manutenção deste estado de coisas ou não cultivar novas instâncias para o funcionamento do sistema com menos atrito, que pontualmente tratamos. Por vezes, fazer nada é a coisa mais violenta que temos a fazer.[28]
Um ato político violento, de resistência profundamente radical, que viole os parâmetros fundantes da vida social, não se duvida, é de extrema dificuldade – por vezes, um sorriso é mais violento que um tremendo soco no rosto. Pode-se descortinar este aspecto em dois exemplos literários que vêm bem a calhar ao final: o estilo de Bartleby de Herman Melville ou a atitude do povo no Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago. Este, a própria experiência coletiva da política bartlebyana: conhecido romance[29] em que a população reitera sua postura de maciçamente votar em branco nas eleições de uma capital. Muito mais que a denúncia da natureza compulsiva de certos rituais democráticos, a história convida a perceber um salto adiante da mera negação intra-política. Faz o governo encarar a perturbadora condição de ver-se só, de só existir poder, sem nenhum tipo de reconhecimento. Não que o povo decida por outra postura política mais à direita ou esquerda do que antes, recalcandoalguma delas, mas o próprio quadro da decisão que é rejeitado: dissolve-se efetivamente o governo[30]. Em termos psicanalíticos, um movimento de foraclusão – no recalque, mesmo que o recalcado seja negado, o sujeito ainda pode reconhecê-lo/reconhecer-se nele, uma vez que é nomeado e está presente no campo simbólico; já na foraclusão não, pois se trata de um movimento mais radical, de rejeição completa do campo simbólico.[31]
Na história do inquietantemente passivo escriturário de um escritório de advocacia em Nova York, que responde a quase tudo que o patrão lhe reclama com “preferiria não” (“I would prefer not to“), vemos a mesma senda noutro registro.[32] Ao assinalar literalmente que “preferiria não”, não está dizendo “não se importa” (“prefiro não”), diz que “prefere não fazer algo” e não que “não quer fazer”. Há algo mais sutil quando se afirma um não-predicado do que uma simples negação dele. Passa-se, quanto à Žižek[33], de um mero protesto de negação para a criação de um espaço novo fora da posição hegemônica. O gesto de Bartleby não é meramente a postura suicida da inação, que poderia advir de alguma interpretação que não levaria a nada, mas, propriamente, é fonte e pano de fundo de uma nova ordem alternativa, um tipo de arqué, o novo fundamento posto. Pergunta-se: porque não entrever algo de performático, e mais, contagiante – tal que a própria expressão colou-se também aos outros personagens durante a narrativa – que nos faça ceder a este agenciamento, para usar um termo deleuziano, que nos impila a romper com as meras palavras de ordem?
De alguma forma, pretendemos contribuir para perturbar os alicerces não-ditos da nossa vida cotidiana. Talvez possamos reverter a pálida desesperança que porventura se abata sobre Bartleby – já que, como conta o final da narrativa, fora, segundo um pequeno boato, funcionário de uma “Seção de Cartas Extraviadas em Washington” –, homem cuja natureza fora forjada ao lidar continuamente com cartas a serem levadas ao incinerador. Se tais cartas corriam para morte, pode haver boas novas aos que já se foram.
A tudo nos convida e somos tentados a não ceder em nosso desejo de remeter, neste desfecho, ao breve e derradeiro fim história:
“Ah, Bartleby! Ah, humanidade!”
- Referências Bibliográficas
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[1] PESSOA, Fernando. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Organização Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 40.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è il contemporaneo? Roma: Nottetempo, 2008, p. 9 (tradução livre).
[3] AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è il contemporaneo?, p. 14.
[4] TIMM de SOUZA, Ricardo. Existência em Decisão: introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
[5] Conferir, em especial, o primeiro capítulo do nosso Violência e Processo Penal: crítica transdisciplinar sobre a limitação do poder punitivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[6] ŽIŽEK, Slavoj. Violence: six sideways reflections. New York: Picador, 2008, p. 2.
[7] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, p. 6.
[8] ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 499-500.
[9] Conferir o nosso O Zahir de Borges e a Fantasia Ideológica do Mercado: um estudo de antropologia dogmática. In: Direitos Fundamentais, Economia e Estado: reflexões em tempos de crise. MARCELLINO JR., Julio et. al. (orgs.). Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, pp. 37-85.
[10] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, p. 12.
[11] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, pp. 15-17.
[12] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, pp. 22-23 (tradução livre).
[13] Cf. BAUMAN, Zigmunt. Medo Líquido. Tradução de Carlos Almeida Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
[14] Cf. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Edição estabelecida por Michel Senellart sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Eduardo Brandão. Revisão da tradução Cláudia Berliner. São Paulo: Matins Fontes, 2008.
[15] Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2002.
[16] Cf. RANCIÈRE, Jacques. Hatred of Democracy. New York: WW Norton, 2009.
[17] Cf. MELMAN, Charles. Como alguém se torna paranóico: de Schreber a nossos dias.Tradução Telma Queiroz. Porto Alegre: CMC, 2008.
[18] FREUD, Sigmund Freud. El Malestar en la Cultura. In: Obras Completas. Tomo III. Traducción directa del alemán Luis López-Ballesteros y de Torres. Buenos Aires: El Ateneo, 2005, pp. 3017-3067.
[19] BIRMAN, Joel. Cadernos sobre o mal: agressividade, violência e crueldade. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 244.
[20] ATHAYDE, Celso; BILL, MV; SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p. 120.
[21] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, p. 103.
[22] TIMM de SOUZA, Ricardo. Justiça em seus termos: dignidade humana, dignidade do mundo (inédito), 2009, pp. 40-42.
[23] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, p. 140.
[24] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, pp. 145-146.
[25] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, pp.158-159.
[26] BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia. Traducido del inglés por Héctor A. Murena. Buenos Aires: Editorial Leviatán, 1995, p. 41(tradução livre).
[27] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, pp. 196-205.
[28] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, p. 217.
[29] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
[30] ŽIŽEK, Slavoj. Violence…, pp. 214-216.
[31] Cf. LACAN, Jacques. O seminário: as psicoses. Livro 3. Tradução de Aluisio Menezes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
[32] MELVILLE, Herman. Bartleby, o escriturário (uma história de Wall Street). Tradução de Cássia Zanon. 2ª ed.. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 30. Necessário frisar que a tradução referida, de mais fácil acesso aos leitores interessados, acaba por pecar no aspecto central da expressão-chave “I would prefer not to”, cunhada classicamente por Bartleby. Acaba em português virando “prefiro não”, perdendo-se o acento do modo literal da versão inglesa, central ao argumento da narrativa.
[33] ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe…, pp. 497-498.