Análise dos procedimentos de revistas íntimas realizados no Sistema Penitenciário do estado do Rio de Janeiro

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 10 – Janeiro/Junho 2010

Análise dos procedimentos de revistas íntimas realizados no Sistema Penitenciário do estado do Rio de Janeiro

Analysis of intimate inspections in the penitentiary system of Rio de Janeiro State, Brazil

Thais Lemos Duarte – Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como pesquisadora do Laboratório de Análise de Violência da UERJ e como pesquisadora da ONG Observatório de Favelas.

E-mail: thais-duarte@hotmail.com

Resumo: Esse trabalho pretende estudar o controle institucional exercido sobre os familiares de presos nas entradas das unidades prisionais do estado do Rio de Janeiro. Especificamente, buscar-se-á analisar os procedimentos de revistas íntimas executados nas entradas das unidades prisionais estaduais. Para tanto, esse artigo analisa legislações federais e do Estado do Rio de Janeiro que tratam das revistas realizadas nas unidades carcerárias e estuda as narrativas dos familiares de presos sobre esses procedimentos realizados nas entradas das instituições penais estaduais.

Sumário: 1 Introdução; 1.1 Foco de estudo e objetivos; 1.2 Metodologia; 2 Familiares de presos: quadro de referência; 2.1 Cidadania no Brasil; 2.2 Rótulo e “Prisionização secundária”; 3 Revisão legal sobre revista íntima; 3.1 Cadastramento na SEAP; 3.2 Leis sobre revistas no sistema penitenciário; 4 “Só vai quem ama”: procedimentos de revistas; 4.1 Revista íntima nos familiares de presos; 5. Considerações finais.

Palavras-chave: sistema penitenciário, revistas íntimas, famílias de presos, cidadania.

Abstract: This work aims to study the institutional control exercised over the families of prisoners on entry to prisons in the state of Rio de Janeiro. Specifically, it will seek to analyze the intimate review procedures realized on entry of state prisional unities. In so doing, this paper analyzes federal and Rio de Janeiro state’s laws related to intimate review carried out in prision unity and study relatives speech about these procedures performed at the entrances of states penal institutions.

Key-words: penitentiary system, intimate review, prisoners relatives, citizenship.

  1. Introdução

            A democracia em diversos países, inclusive a do Brasil, apresenta uma contradição central que se manifesta de forma bastante peculiar na área de segurança pública[1][1]. Ao mesmo tempo em que se busca assegurar as liberdades individuais, há o crescimento de instrumentos de controle repressivo. Atualmente, há a revisão dos postulados do Welfare State, especialmente em relação ao papel do Estado na defesa e promoção dos direitos dos cidadãos e no reconhecimento de suas responsabilidades na consecução desses direitos. De maneira inversamente proporcional, há o fortalecimento do mercado como paradigma das relações econômicas e sociais que aumentam o controle sobre os cidadãos de um modo geral, mas, sobretudo, nos segmentos populacionais de baixa renda.

            No campo da segurança pública, essa perspectiva se converte em propostas de controles sociais mais rígidos e políticas penais mais severas. Atualmente, há o fortalecimento do “Estado Penitenciário”. Ou seja, formam-se instituições de policiamento e controle como maneira de o Estado se contrapor às desestabilizações sociais e econômicas causadas pelos regimes neoliberais[2][2].

A literatura internacional constata que o encarceramento em massa atualmente é produto do parâmetro de que os riscos devem ser reduzidos, as políticas de prevenção ao crime devem ser amplas e que os criminosos devem ser severamente punidos e controlados[3][3]. Ao passo que aumenta os níveis de aprisionamento, cresce o problema da superlotação nas penitenciárias, havendo, no caso brasileiro, um déficit crônico de vagas no sistema prisional[4][4].

            Apesar de o governo federal ter liberado recursos, em meados da década de 1990, para a construção de 35.000 vagas no sistema penitenciário do país, o problema da superlotação ainda persistiu[5][5]. Há presos que já foram condenados, mas cumprem suas penas em delegacias de polícia, junto com presos provisórios. Em contrapartida, no Brasil, existem presos que têm direito a cumprir suas sanções em regime semiaberto, entretanto não conseguem locais no sistema penitenciário para o devido cumprimento desse estágio de pena. Para agravar esse cenário, outro problema de funcionamento do Sistema de Justiça Criminal é a não execução dos mandados de prisão. De acordo com o Ministério da Justiça[6][6], até o ano 2000, havia o acúmulo de 300.000 mandados de prisão a serem executados. Se isso ocorresse, haveria forte pressão sobre o sistema penitenciário brasileiro cujas vagas seriam insuficientes para absorver todas as pessoas condenadas pelo Sistema de Justiça Criminal.

As condições de encarceramento brasileiras, em específico, as do Rio de Janeiro, rompem com as prescrições legais nacionais e os documentos internacionais de proteção aos direitos humanos. Por exemplo, as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, adotadas em 1955 durante o Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento dos Delinquentes, e as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (Resolução n° 14 de 11/11/1994) são desrespeitadas no país. São ignorados os princípios básicos que norteiam ambas as legislações como a necessidade de tratamento igual a todos os detentos, independente de qualquer condição econômica, social, política, orientação sexual, étnica etc. As prisões são predominantemente ocupadas por pessoas negras e pardas, com baixo nível de escolaridade.

            A Anistia Internacional, em relatório publicado em 2008[7][7], relatou que os maus tratos e as precárias condições sanitárias continuam a marcar o sistema penitenciário nacional. Isso porque, formam os cenários das prisões: celas muito pequenas, construções mal conservadas, dependências sem iluminação e ventilação, áreas semidestruídas e sujas. Além disso, a assistência jurídica e de saúde aos presos são deficientes. Na maior parte das prisões brasileiras, os serviços internos dos cárceres são alvos de críticas dos detentos pela ausência de profissionais habilitados para o exercício de determinadas funções. Em contrapartida, as condições de trabalho no sistema penitenciário são precárias, visto que as estruturas física e administrativa dos presídios são problemáticas, os salários são baixos e existem altos níveis de corrupção por parte do setor administrativo dos sistemas penitenciários estaduais.

1.1 Foco de estudo e objetivos

Embora abranja as temáticas do crime e da prisão, esse trabalho apresenta um foco que permanece quase imperceptível aos grupos sociais e, de forma geral, ao Sistema de Justiça Criminal: as pessoas que estão do “lado de fora” do sistema prisional. Quais sãos os efeitos da sanção penal às famílias dos condenados? Esse trabalho parte da hipótese de que as penas impostas às pessoas condenadas pelo Sistema de Justiça Criminal são extensivas aos seus parentes. Ainda que existam restrições de entrada nos presídios e revistas aos familiares, os dias de visitas podem ser concebidos como “ameaças” à tentativa de domínio estabelecido pelo sistema penitenciário aos seus internos. Os familiares de presos são intermediários entre o sistema penal com a vida além muros. Dessa maneira, intensifica-se o controle institucional sobre os familiares de presos.

Em vista disso, pretende-se nesse artigo estudar o controle institucional exercido sobre os familiares de presos nas entradas das unidades prisionais, do estado do Rio de Janeiro. Especificamente, buscar-se-á analisar os procedimentos de revistas íntimas executados nas entradas das unidades prisionais estaduais, estudando o ponto de vista dos familiares de presos, textos e legislações que tratam dessa temática.

1.2 Metodologia

            O trabalho foi iniciado pela identificação e análise exploratória da produção bibliográfica e documental pertinente. Desse modo, foram levantados artigos, livros, publicações em geral, folhetos, resenhas, manuais, legislações ou quaisquer documentos que fornecessem informações sobre a temática dos familiares de presos e dos procedimentos de revistas.

Em um segundo momento, a pesquisa qualitativa se efetivou através do contato com os familiares de presos que participaram de uma Oficina de Direitos Humanos desenvolvida na cidade do Rio de Janeiro voltada aos familiares de presos. Esse projeto, realizado por três organizações da sociedade civil, se constitui por reuniões marcadas por dinâmicas de grupos com vistas a discutir temáticas relacionadas à Segurança Pública, Sistema Penitenciário e a atuação dos órgãos do Sistema de Justiça Criminal. O método de pesquisa desenvolvido para acompanhamento desse projeto foi o da observação. Assim, eu assisti e participei das reuniões e dos grupos de discussões estabelecidos nas reuniões. Além disso, realizei entrevistas semiestruturadas com os familiares de presos participantes desse projeto, coletando informações sobre as revistas realizadas nas unidades prisionais.

Para além do contato com os familiares de presos da Oficina, criei, através de outras fontes, relações com algumas pessoas que tinham membros da família cumprindo pena restritiva de liberdade no Rio de Janeiro. Faço parte de pesquisas sobre Sistema Penitenciário, Segurança Pública, Sistema de Justiça Criminal e Violência Urbana. A partir de um desses projetos de pesquisa[8][8], consegui entrar em contato com alguns familiares de presos. Nessa etapa da pesquisa, utilizei o método denominado “bola de neve”, constituindo contato e entrevistando um familiar de preso, que me indicou outro, que, por sua vez, me orientou a conversar com um terceiro parente de preso.

             Também procurei me relacionar com os parentes de presos que formam as filas na porta central de um Complexo penitenciário da cidade do Rio de Janeiro, nos dias de visita. Especificamente, fiz observação das filas formadas em frente à entrada principal do Complexo de Gericinó. Esse Complexo é composto por 12 penitenciárias, dois presídios, dois Institutos Penais, três cadeias, três hospitais, um sanatório penal e uma unidade materno infantil. Portanto, por Gericinó abranger um grande número de instituições carcerárias, pude ter uma perspectiva geral da dinâmica das filas de familiares de presos formadas em dias de visitação no local.

  1. Familiares de presos: quadro de referência

            Antes de descrever as legislações e as experiências dos familiares de presos a respeito dos processos de revistas realizados no sistema penitenciário do Rio de Janeiro, penso ser importante propor um enquadramento analítico sobre esse grupo de pessoas. Para tanto, introduzirei noções sobre cidadania no Brasil, assim como buscarei analisar os familiares de presos através do conceito do rótulo[9][9] e da “prisionização secundária”[10][10].

2.1 Cidadania no Brasil

A construção da cidadania no Brasil se desenvolveu de forma bastante peculiar, visto que a escravidão esteve institucionalizada legalmente até 1888 no país e a classe média urbana e a trabalhadora eram relativamente pequenas e fragilizadas até a década de 1950. Como consequência, durante muito tempo, a maior parte da população esteve distante do exercício dos direitos civis e políticos, ainda que estes já estivessem previstos pela legislação nacional[11][11]. Esse cenário é contraditório, visto que, com exceção dos períodos ditatoriais (1935-1945 e 1964-1985), o Brasil se constituiu como uma democracia liberal desde a elaboração da primeira Constituição de 1824[12][12].

             Se, de um ponto de vista formal, os direitos civis e políticos já estavam sancionados no início do século XX, esse não era o caso dos direitos sociais que possuíam uma legislação muito tímida até a década de 1930. Esse quadro se reverteu na Era Vargas, quando o Ministério do Trabalho foi criado em 1931. Nesse período, foram legisladas diversas matérias referentes à esfera trabalhista, tais como a formulação da lei sobre o direito às férias, sobre o estabelecimento de fundos de pensão governamentais e sobre o seguro saúde. Contudo, o acesso a esses direitos e benefícios era mediado pela carteira de trabalho fornecida aos trabalhadores, cujas ocupações estavam controladas pelo Estado. Essa situação dos trabalhadores pode ser definida através da idéia de “cidadania regulada”[13][13].

Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei.[14][14]

A construção da cidadania no Brasil está relacionada à luta pela democracia cujo ímpeto ocorreu após o fim da ditadura militar em 1985[15][15]. Com o entusiasmo cívico, a Constituição promulgada em 1988 foi denominada de “cidadã”. No entanto, havia certa ingenuidade no ânimo do período, porque não necessariamente a democratização das instituições e o direito ao voto ocasionaram automaticamente a garantia de liberdade, de participação, de segurança, de desenvolvimento, de emprego e de justiça social. De fato, acarretou a liberdade e a participação, mas o desejo de desenvolvimento das demais áreas não foi concretizado. A violência urbana, o desemprego, o analfabetismo, a má qualidade de educação, as grandes desigualdades sociais e econômicas e a má oferta de serviços de saneamento básico e de saúde continuam sendo constantes no Brasil. Portanto, o exercício do voto não proporcionou, por si só, a existência de governos aptos a solucionar os problemas básicos da população. A conquista dos direitos políticos não extinguiu os problemas sociais brasileiros.

A cidadania brasileira pode ser dividida em classes[16][16]. A primeira classe é composta por pessoas privilegiadas, “os doutores”, cujas posições estão acima da lei. Os interesses dessa classe são alcançados através do poder, prestígio e dinheiro. A segunda classe é formada por “cidadãos simples”, que estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei. Essa classe é constituída pela classe média modesta, por trabalhadores assalariados com carteira assinada, por pequenos funcionários e por pequenos proprietários urbanos e rurais. Por fim, existem os “cidadãos de terceira classe”, que formam a população marginal das grandes cidades. Na prática, biscateiros, trabalhadores urbanos e rurais sem carteira assinada, camelôs, mendigos etc têm seus direitos civis desrespeitados por outros cidadãos e pelas instituições do governo.

DaMatta, ao analisar a cidadania brasileira afirma que é bastante trivial encontrar, no país, pessoas que se julgam especiais e, por isso, lançam mão de suas redes de relações pessoais para não se submeterem à uma ordem universal[17][17]. Estudando as relações entre indivíduos e leis no Brasil, esse autor teve como foco de estudo uma pergunta corriqueira usada por quem busca romper com alguma regra: “você sabe com quem está falando?” Desenvolve-se uma lógica paradoxal provocada pela interseção de dois tipos de ética. O primeiro tipo, hierárquico, as necessidades dos homens são ignoradas ou subordinadas ao interesse do conjunto[18][18]. No segundo, igualitário, as necessidades da sociedade é que estão subordinadas ou esquecidas em prol da satisfação e interesses individuais. Há uma diferença fundamental entre as sociedades ditas tradicionais, nas quais a hierarquia é um valor supremo, e as sociedades igualitárias, onde a isonomia é um dos princípios primordiais[19][19].

Nesse contexto, a cidadania fica afetada no Brasil: ao mesmo tempo em que o indivíduo, em tese, dispõe de meios para garantir a salvaguarda de seus direitos, dependendo de sua posição na sociedade, ele não consegue acessá-los nem exercê-los. Isso se consubstancia, sobretudo, na falta de garantia de segurança individual, de integridade física e de acesso à justiça[20][20].

A efetivação da cidadania requer a disponibilidade e a generalização de recursos necessários ao seu exercício e garantia[21][21], inclusive no tocante ao acesso à justiça. Trazendo essa perspectiva ao estudo em questão, o trabalho de promoção de acesso à justiça aos familiares de presos funciona como instrumento de concretização de cidadania. Entretanto, a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça aumenta quanto mais baixo for o estrato social a que pertencem[22][22], como é o caso da maioria dos familiares de presos. Além de ser determinada por fatores econômicos, essa distância também é produto de fatores sociais e culturais. As pessoas com menos recursos tendem a conhecer menos os seus direitos e, com isso, apresentam mais dificuldades para distinguir que determinados problemas que as afetam estão relacionados com questões jurídicas.

2.2 Rótulo e “prisionização secundária”

Busquei estudar questões referentes ao contexto brasileiro que afetam o exercício igualitário da cidadania pela população, incluindo os familiares de presos. Mas, como os familiares de presos poderiam ser analisados de acordo com suas práticas sociais em si?

A abordagem do rótulo analisa as maneiras pelas quais são criadas as definições sociais e as maneiras como são formadas as regras. Essa perspectiva levou em consideração os processos de interação entre os indivíduos e as organizações, incluindo agências de controle social que desenvolvem conceitos de desvio. O tema chave dessa análise do rótulo tem sido a concepção do desvio como status atribuído. Dessa maneira, determinados atos não se classificam sozinhos como desviantes, pois, para que certo comportamento seja socialmente apreendido como tal, torna-se necessária a ativação dos mecanismos de definição social.

Não existe alguém que seja criminoso ou desviante em princípio. São os próprios grupos sociais que criam o desvio ao fazer regras cuja infração se constitui como tal. Assim, o desvio não é um ato particular, mas uma consequência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um transgressor. Cumpre também ressaltar que, o desvio não é uma simples qualidade presente em alguns tipos de comportamentos e ausente em outros. Ele é resultado de um processo que implica em reações das outras pessoas frente a certa conduta. Desse modo, determinado comportamento pode ser analisado como uma infração às regras em um dado contexto e não em outro. A atitude de uma pessoa pode ser vista como uma transgressão, no entanto, se esse mesmo comportamento for realizado por outro indivíduo, ele poderá deixar de ser analisado como desviante. Em suma, Becker[23][23], um dos representantes da escola do rótulo, afirma que o fato de um comportamento ser desviante ou não depende em parte da natureza do ato em si e em parte da percepção das pessoas a seu respeito.

Há um embate entre os diferentes grupos sociais para tornar “normais” certas regras e “desviantes” determinados tipos de comportamentos. O desvio não é uma qualidade intrínseca a determinada conduta, já que este surge da interação entre a pessoa que o comete com aqueles que reagem perante ele. Assim como o desvio não é uma entidade estática, sendo, ao contrário, concebido como resultado de processos dinâmicos de interação social que o modelam e remodelam. Ele é uma transação desenvolvida por um grupo social que analisa determinado indivíduo como transgressor das regras.

Conforme Becker[24][24], as regras tendem a ser aplicadas mais a certas pessoas que a outras, porque a imposição das normas sociais está relacionada às características dos seus destinatários. Trazendo essa perspectiva ao presente trabalho, ainda que determinada pessoa não tenha cometido um crime, ela pode ser vista como desviante por certos grupos sociais. Os parentes de presos, por terem um membro da família condenado, são vistos como transgressores por determinados indivíduos. Nos dias em que as famílias, os advogados, ou qualquer outra pessoa externa à penitenciária podem visitar os presos se tornam uma ameaça ao controle institucional. Essas pessoas são analisadas como intermediárias entre o sistema penal e a vida além dos muros, podendo “contaminar” os preceitos institucionais com os valores trazidos do lado de fora dos presídios. Com isso, intensifica-se o controle institucional não só dos detentos, como também dos seus familiares.

Para além da escola do rótulo, Comfort afirma que os familiares presos assumem um status de quase-condenados, visto que essas pessoas experimentam, no contato com a instituição prisional, constrangimentos pessoais e impactos estigmatizantes. O simples ato de entrar como visitante em um estabelecimento prisional sujeita o familiar de preso a um processo de “prisionização secundária”[25][25]. Esse processo é resultado de uma versão mais fraca, mas ainda assim persuasiva, da vigilância centralizada e da limitação corporal que atinge os internos das unidades carcerárias sobre os familiares de presos. Passar muitas horas da semana dentro da prisão, sujeitos à fiscalização e ao controle das autoridades penais, gera impactos no familiar de preso. Com o tempo, essas pessoas mudam suas rotinas para adequá-las aos dias de visita, transformam suas formas de vestir para se conformar às regras das prisões, adotam o jargão penitenciário em suas vidas.

Com esta tendência de “cumprir pena juntos”, os familiares de presos e os internos criam sentimentos de proximidade e pertencimento dentro de um contexto segregado e controlado. Assim, essa “dualização voluntária do corpo condenado”, que sofre os castigos da prisão, reforça a “prisionização secundária” das pessoas que não estão encarceradas, submetendo-as ao intenso escrutínio e domínio penais[26][26]. “A mulher, a parceira, a amiga e a namorada fazem mais do que suportar a prisão: elas partilham-na. No seu pensamento, no seu coração, na sua carne, na sua vida como mulheres”[27][27].

  1. Revisão legal sobre revista íntima

            A Lei de Execução Penal institui como direito do preso a visitação do cônjuge, da companheira, dos parentes e amigos nas unidades prisionais, em dias determinados (Art. 41 X). Tendo em vista a normatização desse dispositivo, leis federais e estaduais foram criadas com vista a regulamentar a visita aos internos custodiados no Brasil.

            Nessa seção, serão analisadas leis federais e do estado do Rio de Janeiro que dispõem sobre os procedimentos de revistas realizados nas entradas das unidades prisionais. Porém, antes de descrever essas legislações, será explicitada a regulamentação do Rio de Janeiro que disciplina sobre o cadastramento de visitante nas unidades prisionais estaduais.

3.1 Cadastramento na SEAP

            A visitação nos estabelecimentos prisionais do Rio de Janeiro é feita mediante a apresentação da carteira de visitante, que é individual, intransferível e válida em todas as unidades prisionais regidas pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) (Art. 4° Resolução 142 de 2006), desde que usada para o mesmo interno. Ou seja, a pessoa faz a carteira da SEAP objetivando visitar um preso especificado durante o processo de credenciamento, não podendo utilizá-la para visitar outro detento.

            Inicialmente, o familiar de preso faz o pedido de elaboração de carteirinha à SEAP. Após esse procedimento, os assistentes sociais dessa secretaria encaminham a solicitação ao preso a ser visitado, para ele discordar ou concordar com o pedido de visita. Dessa maneira, nenhum detento receberá uma visita sem que antes tenha consentido sobre o credenciamento de um familiar no sistema prisional.

            A visita comum é permitida ao cônjuge, companheira, filhos, pais, irmãos, avós, netos, madrasta, padrasto, pais de criação, pais adotivos e enteados (Art. 1 Incisos V ao VII Resolução 142). Os amigos também podem visitar os presos, desde que o interno não tenha nenhum outro visitante (Art. 1 Incisos VI Resolução 142). Desse modo, prioriza-se a visitação da família do interno em detrimento da visita dos amigos. Os visitantes maiores de 65 anos de idade e os portadores de deficiência física, que tenham dificuldade de locomoção, têm prioridade para a visitação (Art. 3° Resolução 142). No máximo três pessoas podem visitar o preso a cada dia.

            A pessoa menor de idade pode visitar o seu parente preso, com a condição de estar acompanhada por um responsável devidamente credenciado na SEAP. O responsável pelo menor poderá autorizar um de seus parentes para acompanhá-lo na visitação, a não ser que essa pessoa também esteja credenciada como visitante na SEAP. Já as pessoas entre 14 a 18, que comprovem ter filhos com internos, podem se credenciar na condição de “amigo”. Para tanto, o responsável legal dessa pessoa ou, na ausência deste, um parecer judicial deve emitir autorização para o credenciamento (Art. 9° Resolução 142). A transformação do status de “pessoa amiga” para o de “companheira” em união estável apenas ocorre aos dezoito anos da visitante, ou através de autorização judicial (Art. 9° Parágrafo único Resolução 142).

3.2 Leis sobre revistas no sistema penitenciário

            São escassas as legislações federais e estaduais que regulam os procedimentos de revistas nas entradas das penitenciárias do país. As leis federais que abordam essa questão afirmam que a revista deve ser a inspeção realizada com fins de segurança, por meios mecânicos e/ou manuais em pessoas que ingressam nos estabelecimentos penais (Art. 1° Resolução CNPCP n° 1 e Art. 1° Resolução CNPCP n° 9). A revista mecânica poderá ser realizada através de detectores de metais, aparelhos de raios-X e outros meios semelhantes (Art. 1° § 2° Resolução n° 1; Art. 1° § 2° Resolução federal n° 9). São isentos desse tipo de revista: I – portadores de marca passo; II – gestantes; III – crianças de até 12 anos; IV – operadores de detectores de metais, aparelhos de raios-X e similares; V – outros, a critério da Administração Penitenciária (Art. 2° Resolução federal n° 1).

            A revista manual será efetuada por um servidor habilitado, sempre do mesmo sexo do revistando (Art. 3° Resolução n° 1; Art. 4° Resolução n° 9). São isentos de revista manual: I – advogado, no exercício profissional; II – magistrados, membros do Ministério Público, da Defensoria Púbica e das Procuradorias Municipais, Estaduais e Federais; III – Parlamentares; IV – Chefes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; V – Ministros e Secretários de Estado; VI – Membros do CNPCP e dos Conselhos Penitenciários estaduais; VII – Outras autoridades, a critério da Administração Penitenciária (Art. 4° Resolução n° 1).

            A revista íntima só se efetuará em caráter excepcional, ou seja, quando houver fundada a suspeita de que o revistando é portador de objeto ou substância proibidos em lei e/ou que venham a por em risco a segurança do estabelecimento (Art. 5° Resolução n° 1; Art. 2° Resolução n° 9)[28][28]. Esse tipo de revista deverá preservar a honra e a dignidade do revistando e efetuar-se em local reservado (Art. 6° Resolução n° 1; Art. 3° Resolução n° 9). A Administração Penitenciária poderá adotar o critério de a revista íntima ser feita, sempre que possível, no preso visitado, logo após a visita, e não no visitante (Art. 7° Resolução n° 1).

            No caso do Estado do Rio de Janeiro, há ausência de prescrição e padronização da revista íntima. Somente uma legislação regulamenta a revista a ser realizada nos visitantes dos estabelecimentos penais estaduais, no entanto, não trata sobre as revistas íntimas. De acordo com o Art. 1° da lei 3.509 de 2000, nenhuma pessoa está isenta de revista para ingresso e saída de qualquer estabelecimento prisional do estado. Haverá exceção da revista apenas para serventuários e funcionários das penitenciárias estaduais, os quais, porém, terão que estar registrados em livro próprio que ficará sob a responsabilidade e controle do Diretor do Presídio (Art. 3° Parágrafo único da lei 3.509).

            De fato, a revista íntima nos familiares de presos contraria o ordenamento jurídico brasileiro, visto que esse procedimento não encontra fundamento legal. O Código Processo Penal, em seu Art. 240 §2°, prescreve que o procedimento de busca pessoal ocorrerá em caráter excepcional, sendo que a revista é um procedimento extraordinário e exige a existência de meios concretos para ser realizada. Situações de caráter subjetivo, como a mera suspeição, não são suficientes para justificar a realização desse tipo de procedimento.

  1. Revistas nas unidades carcerárias do estado do Rio de Janeiro

Forma-se uma fila na entrada de cada unidade prisional para que os familiares sejam revistados. Nessa seção, serão descritos e analisados esses procedimentos de revistas executados nas entradas das unidades prisionais do Rio de Janeiro nos familiares de presos, sobretudo, nas mulheres.

4.1 “Só vai quem ama”: procedimentos de revistas

As legislações federais e estaduais fornecem margem à discricionariedade do diretor de cada unidade prisional sobre o modo como deverão ser realizados os procedimentos de revistas nos visitantes do sistema penitenciário. Apesar de existir um relativo padrão para a realização das revistas nas unidades prisionais do Rio de Janeiro, há pequenas variações no seu modo de execução, nas diferentes instituições carcerárias. Mas, de forma geral, em uma sala reservada, um agente penitenciário realiza a revista íntima em um visitante por vez. Enquanto agentes femininos realizam as revistas em mulheres, agentes masculinos fazem as revistas nos homens.

Essa revista é mais rigorosa nos visitantes de sexo feminino[29][29]. Os homens apenas tiram as roupas em frente aos agentes penitenciários e as vestem novamente. Em algumas unidades prisionais, os homens somente passam por revistas manuais, não precisando ficar nus. As mulheres devem se despir, ficando nuas diante das agentes penitenciárias. Via de regra, elas devem abaixar e levantar três vezes, primeiro de frente e depois de costas. De acordo com o relatório “Procedimento de revista dos familiares das pessoas presas no estado do Rio de Janeiro”, divulgado pela Associação pela Reforma Prisional (ARP) da Universidade Cândido Mendes, em algumas penitenciárias as mulheres precisam ficar despidas, virar de costas, abaixar o tronco e olhar a agente entre as pernas. Em outros presídios, as mulheres precisam ficar com o tronco para baixo, abrir suas partes íntimas com as mãos e soprar uma garrafa plástica.

As crianças também passam por processos de revista. As crianças de colo apenas passam por revista manual, em companhia dos pais ou dos responsáveis legais. As com mais idade também realizam revistas manuais, no entanto, em algumas situações, precisam ficar de calcinha ou cueca diante dos agentes penitenciários. Fui informada que uma mãe ficou muito constrangida em ver seu filho pequeno sofrer revista íntima. Por isso, ela decidiu processar a administração da unidade prisional que realizou esse tipo de procedimento na criança. Os familiares de presos que me passaram essa informação não souberam dizer qual foi o resultado desse processo judicial contra a SEAP.

            O relatório “O Brasil atrás das grades”[30][30] aponta que a permissão de visitas aos presos é um avanço do sistema penitenciário brasileiro. Entretanto, apesar desse progresso, são identificadas certas violações de direitos sistemáticas relacionadas às visitas dos familiares de presos. Os primeiros obstáculos às visitas dos presos são, segundo o relatório, os “tratamentos humilhantes” a que os parentes de presos estão submetidos. Por outro lado, a administração penitenciária justifica as revistas femininas em benefício da segurança. Ao carregarem objetos ilícitos ou não permitidos para o interior das penitenciárias, a mulheres, denominadas “mulas”, colocam em risco a integridade física dos presos e dos agentes. No entanto, torna-se claro que as revistas colocam as visitantes automaticamente na condição de suspeitas.

            Uma dona de casa se surpreendeu ao pedirem para que tirasse a roupa em uma carceragem da cidade de Resende, no Rio de Janeiro, sentindo-se agredida. Nessa mesma linha, a mãe de um detento afirma que as revistas íntimas desrespeitam a dignidade dos familiares de presos. Para essa entrevistada, o mais alarmante é o fato de as revistas serem realizadas tanto nos familiares quanto nos presos após o término dos dias de visita. “De que adianta o familiar por constrangimentos, se o preso vai ser revistado ao final da visita”?

Não basta a humilhação de tirar a roupa, ser revistada… abaixa e levanta. Não que eu discorde com a revista deles, mas têm horas que a revista é abusiva. Abusiva demais. Acho que tem limite pra tudo. E além da gente ser revistada, nossos filhos depois são revistados também. Então do que adiante nós passarmos por todos esses constrangimentos? Então é melhor não revistar. (Entrevista com mãe de preso)

            Para os entrevistados, os familiares de presos, principalmente as “mulheres de bandido”, são vistos com indiferença pela sociedade, são imperceptíveis. Apenas é levado em consideração o fato de essas pessoas terem um membro da família cumprindo pena restritiva de liberdade.

Mulher de bandido nunca é bem vista pela sociedade, sendo que por esse motivo sempre são tratadas com indiferença nos lugares que chegam. Não somos respeitadas e muitas mães ou esposas têm que ficar se explicando e dizendo que não têm a mesma conduta que o parente que está preso[31][31].

Certas pessoas são categorizadas, não sendo sopesadas, porém, as atitudes que desenvolvem socialmente. Grupos sociais classificam os familiares dos presos de modo a depreciá-los diante de outros atores sociais. Ou seja, essas pessoas passam a ser vistas de maneira negativa por apresentarem algum tipo de relação com o sistema penal. Para agravar o quadro, em geral, elas possuem status sócioeconômico baixo, são moradoras de espaços populares e têm parca escolaridade. Portanto, tais indivíduos ajustam ao estereótipo de criminoso, sendo alvos de controle do Estado e dos grupos sociais. O estereótipo de criminoso combina atributos de raça e classe, havendo maiores as probabilidades de que indivíduos de cor ou de status sócioeconômico baixo sejam enquadrados nesse estereótipo e sofram tratamento discriminatório[32][32]. Tais pessoas não apresentam as imunidades institucionais das de classe média e alta, tendo mais chances de serem detidas, processadas e condenadas.

            Diante desse quadro, não se torna exagero sugerir que as agências de controle social focam as suas atuações somente nos atores que elas identificam como tendo “atividades suspeitas” e “comportamentos ameaçadores”. De fato, as atividades de vigilância do Estado são pautadas pelas crenças e valores pertencentes à classe média, a qual define quem são as pessoas potencialmente perigosas e suspeitas. Nesse sentido, as atividades de controle estatal procuram incidir sobre diversas esferas de atuação dos indivíduos no meio social. À medida que essas atividades reprimem atitudes tidas como criminosas, elas acabam fomentando um sistema de vigilância cujo efeito é reproduzir os valores sociais dominantes. Os aparatos de repressão ainda são utilizados mais como instrumento de dominação entre grupos sociais, manutenção de privilégios, do que para garantir os direitos dos cidadãos e sua condição de igualdade perante a lei.

            Na prática, as apreensões de objetos nos presídios são resultados de um trabalho de investigação e de monitoramento, ao invés de serem essencialmente produtos das revistas íntimas femininas. Por exemplo, segundo o relatório da ARP, entre dezembro de 2006 até abril de 2007, ocorreram três apreensões de objetos ilícitos e proibidos nas visitantes do Presídio Ary Franco, no Rio de Janeiro. Esse presídio recebe em média 2.100 visitantes ao mês e, dentro do referido período, teriam comparecido a essa unidade cerca de 10.500 visitantes. Portanto, as três apreensões efetuadas demonstram que menos de 1% das visitantes foi surpreendida portando objetos ilícitos ou de uso proibido nos presídios. Devem existir outros meios de entrada de objetos ilícitos e proibidos nos presídios, que não estão necessariamente relacionados às visitas.

Então, se eu entrasse com o celular escondido, então eu taria burlando a corrupção que já existe. Como o familiar vai entrar se ele é revistado desse jeito? As coisas entra, mas é o familiar? Você colocaria em risco quem você ama? Tua mãe? Então, por quê? Então, por que colocaria ela em risco, se há outros caminhos? (Entrevista com irmão de preso)

De acordo com notícia de um veículo de comunicação:

No terceiro andar de um pavilhão, os presos estão numa posição mais alta do que a muralha. Eles amarram um sabonete numa linha de nylon e jogam para o lado de fora do presídio. Lá fora, alguém amarra celulares ou armas e tudo é puxado para dentro. Com a condição de não ser identificado, um agente penitenciário confirmou a corrupção. “Eu sabia que existia no meu grupo quem estava colocando esse tipo de coisas erradas no sistema”, conta. Outro agente entrou no esquema, aceitou propina e, flagrado, acabou condenado por corrupção. Começou aceitando favores e descobriu que também tinha seu preço. “Geralmente entre R$ 300 e R$ 500 por celular”, afirma. [33][33]

É um desafio reduzir os níveis de corrupção dentro do sistema penitenciário, que enfraquecem o combate ao crime, fortalecem as organizações criminosas e minam o aparato prisional. A permissividade em relação à entrada nas prisões de droga, arma de fogo, telefone celular é prática de corrupção que está distante de ser combatida. O corporativismo entre agentes e presos fortalece a impunidade e garante a impermeabilidade aos controles externos democráticos, quando existentes.

A prisão se constitui como um aparelho, suposto ou exigido, de transformação dos internos[34][34]. Essa tentativa de mudança do interno é realizada mediante a privação e a experimentação do sofrimento[35][35]. No processo de revistas, a prisão estende suas técnicas corretivas, que normalmente são aplicadas nos presos, aos visitantes, sobretudo nas mulheres, de forma a controlar os seus corpos, buscando neutralizar o “perigo” que ameaça o controle institucional. Pelo fato de essas mulheres possuírem uma pessoa da família cumprindo pena, elas são vistas pela direção das unidades prisionais como potencialmente criminosas, capazes de romper com relativo domínio estabelecido pelo sistema penal sobre os presos. Então, as familiares de presos precisam ser privadas, ainda que momentaneamente, de seu direito à intimidade.

E isso é louco pra mim. O Estado desrespeita… Como é que deve ser pra uma senhora de setenta anos que só tirou roupa na frente pra o marido? Toda uma vida e tem que ficar nua em frente a uma pessoa estranha? (…) Ter que abaixar e arreganhar a bunda. Ficar de cócoras. Abaixa uma, abaixa duas, abaixa três. É o Estado que faz isso. (Entrevista com irmão de preso)

Nas revistas íntimas, o domínio institucional prima sobre a intimidade do familiar de preso. Nota-se que os parentes de presos “pagam um preço” ao optarem por manter as relações domésticas e familiares dentro de um ambiente controlado, estigmatizado e altamente escrutinado. Isso porque, ao visitarem os internos, os parentes de presos têm suas liberdades individuais drasticamente reduzidas. Torna-se possível concluir que os procedimentos de revista íntima vão ao encontro da perspectiva de Comfort a respeito do processo de “prisionização secundária” dos familiares de presos. Essas pessoas acabam cumprindo a pena conjuntamente ao parente condenado à pena restritiva de liberdade.

 

Têm pessoas que tira de letra. Eu no final já estava acostumada, entre as aspas, né? Mas tem muita gente que toda vez que vai lá chora, chora, chora, chora, entendeu? Têm mães lá que ficam… não aceitam. É muito difícil. (…) A primeira vez que eu fui, que eu vi ali na POLINTER, eu fiquei arrasada. (Entrevista com mãe de preso)

            Algumas mulheres informaram que não contrariam os agentes penitenciários durante os procedimentos de revista íntima, porque receiam ter os seus familiares transferidos para unidades prisionais distantes. Ainda que se sintam constrangidas com essas revistas, as mulheres acabam realizando-as. Caso contrário, elas teriam de se adaptar a uma nova rotina de visitação, em penitenciárias mais afastadas de seus locais de moradia e, em alguns casos, de difícil acesso. Diante dessas questões, um familiar de preso apontou que o ambiente dos presídios é “horrível”. Apenas a pessoa que “ama” muito os seus parentes presos vai visitá-los. É necessária muita resistência emocional para frequentar o sistema penitenciário do Rio de Janeiro.

É um ambiente horrível. Não tem como. Ali é um lugar que só vai quem ama. Ali, eu te falo, ali é um lugar horrível. Às vezes a gente censura: Pô, mas fulano ta lá. Mãe não vai, pai não vai. Mas não é. Ali, você tem que tá muito preparada psicologicamente pra ir ali, entendeu? É um constrangimento, é pra tudo. Pras coisas que você leva. Pras coisas que você passa. Constrangimento… (Entrevista com irmã de preso)

  1. Considerações finais

            De forma geral, os procedimentos de revistas realizados nos familiares de presos nas entradas das unidades prisionais do Rio de Janeiro se caracterizam, entre outras razões, pelos seguintes traços:

1 – são parcas as legislações de âmbitos federal e estadual que tratam das revistas a serem realizadas nas entradas das unidades prisionais. Isso fornece margem à discricionariedade do diretor de cada estabelecimento penitenciário sobre a maneira como esses procedimentos devem ser executados;

2 – as revistas são efetuadas com vistas a garantir a segurança dos internos, dos funcionários do sistema prisional e dos próprios visitantes das unidades carcerárias. Em contrapartida, esses procedimentos violam certos direitos dos familiares de presos, sobretudo, afetam suas intimidades;

3 – as revistas femininas são mais rigorosas e, portanto, mais invasivas nas mulheres – que formam maioria das pessoas cadastradas na SEAP como visitantes – quando comparadas com as revistas realizadas nos homens;

            No Brasil, ao mesmo tempo em que o indivíduo apresenta meios para garantir a salvaguarda de seus direitos, dependendo de sua posição na sociedade, ele não consegue nem acessá-los, nem exercê-los. Essa carência de direitos é vidente, sobretudo, na falta de garantia de segurança individual, de integridade física e de acesso à justiça. Nos casos dos familiares de presos, embora se sintam constrangidos com determinadas regras do sistema penal, eles não possuem muitos recursos para interferirem no seu funcionamento, de forma a salvaguardar os seus direitos. De fato, muitas dessas regras estão mal regulamentadas ou, em diversos casos, não estão nem mesmo legisladas.

            Os familiares de presos, principalmente as mulheres, buscam cumprir a pena de prisão junto aos condenados, criando sentimentos de proximidade e conjunto dentro de um ambiente segregado e controlado. Dessa maneira, elas acabam acatando as restrições existentes para as entradas nas unidades prisionais e obedecem às regras do cárcere.          Essa tentativa de importação do mundo doméstico ao cárcere gera a extensão das técnicas corretivas do mundo prisional, que normalmente são aplicadas nos presos, aos visitantes. Os procedimentos de revistas íntimas são exemplos de procedimentos realizados pelas direções das unidades prisionais que buscam controlar os familiares de presos, de forma que o domínio institucional se desdobra sobre a intimidade do visitante do sistema penal. Ao optarem por manter as relações domésticas e familiares dentro de um ambiente controlado, estigmatizado e altamente escrutinado, os parentes de presos têm suas liberdades individuais drasticamente reduzidas.

 

BIBLIOGRAFIA

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[1][1] SALLA Fernando Afonso; BALLESTEROS, Paula Rodriguez. Democracia, Direitos Humanos e Condições das Prisões na América do Sul. Relatório de pesquisa. 2008.

[2][2] BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1999.

WACQUANT, Loïc. Les prisons de la misère. Paris: Raisons d’Agir, 1999.

[3][3] Idem.

[4][4] SALLA, Fernando Afonso. Os impasses da democracia brasileira. O balanço de uma década de políticas para prisões no Brasil. In: Lusotopie, 2003.

[5][5] Idem.

[6][6] DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Relatório de Gestão. Exercício 2000. Brasília: Ministério da Justiça: 2000.

[7][7] ANISTIA INTERNACIONAL. Relatório Brasil. Informe 2008. Disponível on line: http://brasil.indymedia.org/media/2008/05//420860.pdf. Acesso em 27 junho de 2010.

[8][8] Programa de Redução da Violência Letal, coordenado pelo Observatório de Favelas em parceria com o Laboratório de Análise de Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UNICEF e Secretaria Especial de Direitos Humanos.

[9][9] BECKER, Howard S. Los extraños: sociología de la desviación. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1971.

[10][10] COMFORT, Megan. In the Tube at San Quentin. The ‘Secondary Prisonization’ of women visiting inmates. Journal of Contemporary Ethnography, Vol 32 (1): 77-107. 2003.

[11][11] Para Marshall (1967), o conceito de cidadania pode ser dividido em três aspectos: o civil, o político e o social. O elemento civil refere-se à possibilidade de exercício dos direitos necessários ao gozo da liberdade individual – liberdade de imprensa, liberdade de locomoção, direito à propriedade etc. Por elemento político, entende-se o direito de participar do poder político, como um membro e uma organização investida de autoridade política ou como eleitor de tal organismo. O elemento social se consubstancia no direito de participação de todos na riqueza comum, informado pelo princípio da solidariedade social, materializando-se no direito ao acesso à educação, à saúde, entre outros.

[12][12] Idem.

[13][13] SANTOS, Wanderlei Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira. 2° edição. Rio de Janeiro: Campus, 1987.

[14][14] Idem.

[15][15] CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 3° edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

[16][16] Idem.

[17][17] DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

[18][18] FONSECA, Regina Lúcia Teixeira de Mendes. Igualdade à Brasileira: cidadania como instituto jurídico no Brasil. In: AMORIM, Maria Stella; KANT DE LIMA, Roberto; TEIXEIRA MENES, Regina (org.) Ensaios sobre a igualdade jurídica: acesso à justiça criminal e direitos de cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen JURIS, 2005.

[19][19] DUMONT, Louis. Homo aequalis. Rio de Janeiro: EDUSC, 2000.

[20][20] FONSECA, Regina Lúcia Teixeira de Mendes. Igualdade à Brasileira: cidadania como instituto jurídico no Brasil. In: AMORIM, Maria Stella (org.) Ensaios sobre a igualdade jurídica: acesso à justiça criminal e direitos de cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen JURIS, 2005.

[21][21] GRYNSZPAN, Mario. Acesso e recurso à justiça no Brasil: algumas questões. In: PANDOLFI, Dulce Chaves; et al. Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.

[22][22] SOUZA SANTOS, Boaventura de. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9° ed. São Paulo: Cortez, 2003.

[23][23] BECKER, Howard S. Los extraños: sociología de la desviación. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1971.

[24][24] Idem.

[25][25] COMFORT, Megan. In the Tube at San Quentin. The ‘Secondary Prisonization’ of women visiting inmates. Journal of Contemporary Ethnography, Vol 32 (1): 77-107. 2003.

[26][26] COMFORT, Megan. “Partilhamos tudo o que podemos”: A dualização do corpo recluso nos romances através das grades. Análise social. Vol. XLII (185), 2005: 1055.

[27][27] Idem.

[28][28] A resolução estadual n° 105 prescreve que fica proibido a qualquer pessoa (interno, visitante ou servidor) a posse ou o uso de parelhos de telefonia celular, rádio transmissor e qualquer tipo de componente ou acessório do mesmo gênero, no interior das unidades prisionais (Art. 1°).

[29][29] A maioria dos visitantes é do sexo feminino. São as mulheres que se comprometem a fornecer continuidade às relações familiares do interno, ainda que sob a vigilância e controle das instituições prisionais. Grande parte dessas mulheres possui um baixo nível econômico. Para se sustentar, muitas dependem de projetos de complementação da renda familiar e manutenção das crianças na rede fundamental de ensino, como Bolsa Família e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI.

[30][30] Disponível on line: http://199.173.149.120/portuguese/reports/presos/index.htm. Acesso em 01 maio 2009.

[31][31] Disponível on line: http://www.diarioon.com.br/arquivo/3385/cidade/cidade-8489.htm. Acesso em 01 nov. 2009.

[32][32] Idem.

[33][33] Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL582405-5598,00-CORRUPCAO+ALIMENTA+O+CRIME+NAS+CADEIAS+BRASILEIRAS.html. Acesso em 16 dez. 2009.

[34][34] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história de violência das prisões. 35° edição. Petrópolis: Vozes, 1997.

[35][35] PAIXÃO, Antonio Luiz. Recuperar ou punir? Como o Estado trata o criminoso. São Paulo: Cortez: Autores associados, 1987.