REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721
Número 14 – Janeiro/Junho 2012
A Subcidadania e a titulação de terras quilombolas
Leonardo Ostwald Vilardi – Gruduado em Deireito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito e Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF).
E-mail: leovilardi@hotmail.com
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo utilizar a categoria ‘subcidadania’ criada por Souza (2003) para realizar uma interpretação possível sobre o papel da titulação de terras quilombolas, como hoje entendida pelo Dec. 4887/03, na sociedade brasileira. Para tanto, iniciarei minha exposição demonstrando como Souza (2003) constrói o seu argumento em defesa da criação de uma classe de subcidadãos no Brasil moderno. Em seguida apresento a legislação pertinente quanto a titulação de terras quilombolas. Após, será feita uma análise do Decreto 4887/2003 tendo como parâmetro norteador para a discussão o conceito de subcidadania formulado por Souza (2003). Defendo por fim que tolhir determinados direitos como o realizado pelo decreto analisado, sob o argumento de inclusão social é, na realidade, uma forma de diferenciação fazendo com que os grupos ora denominados quilombolas permaneçam nos quilombolos.
Sumário: I) Introdução; II) O conceito de subcidadania II.a) Sociedade brasileira II.b) Subcidadania; III) Titulação de terras quilombolas no direito brasileiro; IV) Titulação de terras quilombolas e a subcidadania; V) Conclusões; VI) Bibliografia.
Palavras-chave: subcidadania – quilombola – titulação de terras.
Abstract: This papers aims to interpretate a legal dispositive in brazilian law using the category ‘sub-citizenship’ created by Souza (2003). To achieve this aim, I will begin my presentation demonstrating how Souza (2003) builds his argument for the creation of a class of ‘sub-citizenships’ in modern Brazil. After, I will introduce the legislation that regulates the ‘quilombolas’s land titling. Finally, there will be an analysis of Decree 4887/2003 having as a guiding parameter for discussing the concept of ‘sub-citizenship’ formulated by Souza (2003). Ultimately, I argue that the decree analyzed is indeed a form of social differentiation so that the groups called ‘quilombolas’ remain in ‘quilombos’.
Key-words: ‘sub-citizenship’ – quilombola – land titling.
- Introdução
O presente artigo surge a partir do contato com a questão quilombola, especificamente com a questão referente aos habitantes da ilha da Marambaia no Rio de Janeiro. Dito contato ocorreu, inicialmente, em pesquisas realizadas para delimitar os conflitos “ambientais” no estado fluminense, que já estariam institucionalizados, especificamente no âmbito do poder judiciário para que, posteriormente, fosse realizada a escolha daquele que seria inserido na pesquisa no âmbito da dissertação de mestrado.
Nesta esteira, houve a seleção do conflito da Marambaia para ser analisado de forma pormenorizada o que, até o presente momento, ocorreu através de revisão bibliográfica.
Surge neste âmbito uma inquietação por parte do pesquisador quanto ao papel operado pelo dispositivo legal que regulamenta o reconhecimento de comunidades quilombolas, bem como “assegura” a propriedade das terras que as mesmas habitam. Sendo, assim, esta inquietação foi o gatilho para a elaboração do presente trabalho.
No presente trabalho será, inicialmente, elaborado como Souza (2003) constrói o seu argumento em defesa da criação de uma classe de subcidadãos no Brasil moderno. Em seguida apresentado a legislação pertinente quanto a titulação de terras quilombolas. Por fim será feita uma análise do Decreto 4887/2003 tendo como parâmetro norteador para a discussão o conceito de subcidadania formulado por Souza (2003).
- O conceito de subcidadania
Na introdução de sua obra Jessé Souza (2003) delimita o objetivo da mesma como a construção de uma hipótese alternativa a tradição personalista e patrimonialista, que no âmbito da sociologia brasileira encadeia as noções complementares de personalismo, familismo e patrimonialismo, de modo a fundamentar a ideia de uma sociedade pré-moderna. A “cultura” neste caso é percebida como uma entidade homogênea, totalizante e auto-referida.
“Seria por conta dessa soberania do passado sobre o presente que nos confrontamos com solidariedades verticais baseadas no favor, subcidadania para a maior parte da população e abismo material e valorativo entre as classes e as raças que compõem nossa sociedade” [1].
Para atingir o seu objetivo de apresentar um panorama teórico alternativo, Souza (2003) utiliza as reflexões de Charles Taylor e Pierre Bourdieu para propor uma reformulação do tema clássico marxista da ‘ideologia espontânea do capitalismo’ e defender que a desigualdade dos países periféricos, bem como, sua naturalização na vida cotidiana, retira sua eficácia da ‘impessoalidade’ típica dos valores e instituições modernas e não como consequência de uma suposta herança pré-moderna e personalista.
Inicialmente o autor irá apontar quais os pressupostos são tomados da obra de Taylor e em que medida eles são importantes para a construção de sua própria teoria. Nesta esteira, afirma que para Taylor (SOUZA, 2003) naturalismo é “a tendência moderna operante tanto no senso comum da vida cotidiana quanto na forma de praticar filosofia ou ciência dominantes, de desvincular a ação e a experiência humana da moldura contextual que lhe confere realidade e compreensibilidade”[2]. Aponta uma relação interna entre atomismo (indivíduo como fonte de todo o sentido) e naturalismo, uma vez que a percepção do individuo enquanto ‘solto no mundo’ e descontextualizado é que torna possível uma ‘ideologia espontânea do capitalismo’ – naturalismo.
Taylor (SOUZA, 2003) defende que a neutralidade do direito e da economia, ou o indivíduo como razão da explicação sociológica, só pode ser considerada na medida em que o pano de fundo social e moral (Estado e mercado, já possuem implícita e inarticuladamente uma interpretação acerca do bom, do justo, etc.) permanece não tematizado. Este pano de fundo pode ser mapeado através da investigação da origem de certas instituições morais, as quais Taylor (SOUZA, 2003) irá nomear seguindo Harry Frankfurter de ‘avaliações fortes’. Avaliações que possibilitam a discriminação entre certo e errado, melhor ou pior, a partir de parâmetros que se impõem independentemente de nosso desejo ou vontade. Essas avaliações são vistas como instituições instintivas e naturais tal a sua força vinculante, em contraste ao que o autor irá chamar de reações morais, que sabemos sua origem na socialização e na educação formal.
Assim, pretende Taylor (SOUZA, 2003) articular a ontologia moral que está por trás de nossas intuições, uma vez que apenas formulamos sentido para nossas vidas na medida em que estabelecemos relações com as avaliações fortes, referência última da condução da vida do sujeito moderno.
O controle racional pela vontade conduz a uma nova e radical maneira de auto-objetificação. Podemos nos recriar, recriando nossos hábitos e normas. Esse desengajamento radical que propicia a ideia de criação que Taylor (SOUZA, 2003) chama de ‘self pontual’ ou ‘neutro’, que corresponde um ideal de auto-responsabilidade que juntamente com as noções de liberdade e razão, possibilitam um novo sentido de dignidade. Essa concepção histórica e contingente se naturaliza, na medida em que se ‘esquecem’ suas raízes.
As ideias embutidas no conceito de ‘self pontual’ não lograram dominar a vida prática dos homens até a reforma protestante, que realiza na prática, no espaço do senso comum, e da vida cotidiana a nova noção de virtude ocidental. Souza (2003) chama atenção para aproximação desse ponto da construção de Taylor com Weber.
O tema da vida cotidiana está em oposição à concepção da Antiguidade Clássica, há uma redefinição social, as esferas práticas do trabalho e da família passam a definir o lugar das atividades superiores, enquanto ocorre um desprestígio das atividades contemplativas e aristocráticas anteriores. A sacralização do trabalho, especialmente do trabalho manual, ilustra a redefinição da hierarquia social. Ao rejeitar a ideia de sagrado mediado, os protestantes rejeitaram também toda a hierarquia ligada a ela. Abre-se, assim, espaço para uma nova hierarquia social que passa a ter por base o ‘self pontual’.
O vínculo social adequado às relações interpessoais vai ser do tipo contratual, ou seja, essa nova visão de mundo vai ser consagrada sob a forma de direitos subjetivos, definidos universalmente. “Ao invés da ‘honra’ pré-moderna, que pressupõe distinção e privilégios, a dignidade pressupõe um reconhecimento universal entre iguais”[3].
Existe, contudo, na visão de Taylor (SOUZA, 2003) outra fonte da moralidade moderna, a qual ele chama de ‘expressivismo’. Este estaria baseado na noção de natureza como fonte interna de significado e moralidade, tem-se aqui a originalidade de cada pessoa. Representa a volta dos modelos orgânicos e biológico de crescimento por oposição aos modelos de associação mecânica. Montaigne, Rousseau e os moralistas escoceses podem ser citados como pioneiros dessa fonte moral concorrente a do ‘self pontual’. O certo ou errado passa a estar também ancorado em nossos sentimentos.
Ambas as fontes da moralidade representam uma radicalização do subjetivismo, contudo, elas se apresentam como rivais e excludentes enquanto tipos puros, apesar de a regra empírica ser o compromisso e a interpenetração. O sujeito que reconhece as duas fontes está em constante tensão.
“Taylor possibilita, a partir de sua genealogia da hierarquia valorativa da modernidade tardia, conferir sentido e relevância moral a aspectos ‘naturalizados’ da realidade social seja na dimensão da vida cotidiana, seja especialmente na dimensão institucional cuja eficácia depende precisamente da aparente neutralidade”[4]
Souza (2003) pretende, assim, identificar os ‘operadores simbólicos’ que permitem a cada um de nós na vida cotidiana hierarquizar e classificar as pessoas como mais ou menos, como dignas de nosso apreço ou de nosso desprezo.
Critica, na ótica defendida por Taylor, a aceitação ao menos tendencial da ideologia ‘da igualdade de oportunidades’, devendo neste ponto a análise ser complementada pela de Bourdieu, mais sensível à força mistificadora de princípios aparentemente universais.
Bourdieu (SOUZA, 2003) tem como ponto mais marcante de sua construção teórica o desmascaramento sistemático da ‘ideologia da igualdade de oportunidades’ enquanto processo de dominação simbólica típico das sociedades avançadas do capitalismo. O autor francês parte para a construção de sua teoria da crítica às opções teóricas que ele denomina de objetivismo e subjetivismo.
Bourdieu (SOUZA, 2003) constrói uma relação entre estrutura, habitus e práticas. A formulação do conceito de habitus permite abandonar o realismo da estrutura, uma vez que a necessidade é encarnada pelos agentes.
“… passado tornado presente, a história tornada corpo e portanto ‘naturalizada’ e ‘esquecida’ de sua própria gênese. Precisamente por ser uma espécie de história naturalizada numa espontaneidade sem consciência, o habitus é o elemento que confere às práticas sua relativa autonomia em relação às determinações externas do presente imediato”[5]
É o habitus que produz a ‘mágica social’ que faz com que pessoas se tornem instituições feitas de carne. Além de ser inscrito no corpo, o habitus caracteriza-se ainda por uma inércia conservadora, um esquema de auto-proteção. Seria com base nesses sinais visíveis que classificaríamos as pessoas e os grupos sociais lhes atribuindo prestígio ou desprezo.
Bourdieu (SOUZA, 2003) localiza, portanto, primariamente nesses valores ‘tornados corpos’, fruto da persuasão invisível de uma pedagogia implícita que pode inscrever e naturalizar toda uma percepção de mundo, precisamente por estarem além da percepção consciente e se mostrarem apenas em detalhes tidos como insignificantes.
O corpo é, enfim, campo de forças de uma hierarquia não expressa – entre sexo, classes ou grupos de idade – contribuindo decisivamente para a naturalização da desigualdade em todas as suas dimensões. Devido a este aparato, na opinião de Souza (2003), é que Bourdieu consegue perceber dominação e desigualdade onde outros percebem harmonia e pacificação social.
Todas as sociedades tendem a naturalizar relações sociais que são contingentes e constituídas socialmente. A forma que essa illusio assume é histórica e mutável sendo nomeado por Bourdieu como ‘capital simbólico’ – forma específica assumida em cada sociedade pelo mascaramento do efeito econômico.
O que caracteriza o exercício do capital simbólico nos contextos pessoal e impessoal é a forma mascarada que as precondições econômicas assumem para o exercício da dominação. Assim, práticas aparentemente desinteressadas podem ser vistas como práticas econômicas de maximização de ganhos materiais e simbólicos.
Bourdieu (SOUZA, 2003) ao tratar da especificidade da dominação no capitalismo, segue a tese marxiana da ideologia espontânea. A dominação capitalista exime os dominadores do trabalho de reprodução da dominação. A ideologia neste sistema se mantem a partir do silêncio cumplice de sistemas autorregulados que produzem, sob o discurso da igualdade e da meritocracia, a ‘sociodicéia’ dos próprios privilégios das classes dominantes. Nestas sociedades (capitalistas) os capitais econômico e cultural assumem o papel estruturante no lugar do capital social.
Souza (2003) aponta dois aspectos como originais na análise de Bourdieu, além da categoria do habitus já elucidada: nova relação percebida entre os diversos capitais no capitalismo maduro e o lugar central da categoria do ‘gosto’. Apenas Bourdieu (SOUZA, 2003) percebeu o novo lugar estrutural do conhecimento, no qual saber e conhecimento passam a ser a base de uma ‘ideologia espontânea’, criando e legitimando desigualdades ao esconder de forma sistemática as pré-condições sociais e econômicas de seu funcionamento.
Bourdieu (SOUZA, 2003) a partir do que foi dito procura constituir o que irá chamar de ‘economia dos bens culturais’, para tanto desloca a ênfase de cultura para sua utilização pragmática, prática da vida cotidiana. Outro ponto importante da argumentação é a temática do gosto, ‘competência estética’ como elemento gerador de distinção social no capitalismo avançado.
A competência estética como defendida por Bourdieu (SOUZA, 2003) vai na contramão da definição de estética defendida por Kant (SOUZA, 2003) , para quem essa faculdade é uma dádiva que alguns possuem e outros não. Para o autor francês gosto é socialmente construído, através da combinação entre tempo escolar e origem familiar. Em outras palavras, o critério hierarquizador básico é o capital cultural definido como a soma do capital educacional e a origem familiar.
O ponto considerado como principal por Souza (2003) é a primazia da forma sobre o conteúdo, arte enquanto pura forma. A disposição estética se mostra como uma afirmação de poder da situação econômica sobre a necessidade, implicando de forma implícita uma “reinvindicação de superioridade legítima em relação àqueles que se encontram sob o aguilhão dessas necessidades e urgências”[6]. A cultura transforma-se em natureza.
O habitus compartilhado confere sentido à noção de habitus de classe. Assim, classe passa a ser percebida como fundamento de práticas sociais similares, que permitem estratégias comuns e consequências compartilhadas mesmo na ausência de acordos conscientes refletidos.
O gosto funciona, portanto, para Bourdieu como o senso de distinção por excelência precisamente por separar e unir, constituindo, assiim, solidariedades e preconceitos de forma universal a partir de fios invisíveis e opacos. Constituindo-se, como a ideologia espontânea da burguesia na alta modernidade.
A luta social é definida por Bourdieu (SOUZA, 2003) como a luta pelo poder de definir nos seus próprios termos os esquemas classificatórios que irão servir como orientação de comportamento a todas as classes sociais sob seu jugo. A ‘distinção’ aparece como uma diferença merecida, correta e justa já que supostamente se basearia nos talentos inatos de seus possuidores.
O senso de distinção é uma faculdade das classes dominantes. Assim, as relações implícitas e opacas entre consumo cultural e estilo de vida surgem como forma de garantir privilégios, reconhecimento social e autoestima.
Na visão de Souza (2003) a análise de Bourdieu peca pela ausência de uma concepção objetiva de moralidade, assim, se ele pode falar dos efeitos pouco ou nada pode dizer de suas causas e da gênese dessa concepção hierarquizada, ponto no qual aponta a complementariedade da análise de Taylor.
Uma aproximação possível entre Taylor e Bourdieu é a tentativa de ambos os autores romper e superar a concepção mentalista da experiência social, representada pelo dualismo mente/corpo. Em Taylor (SOUZA, 2003) essa empreitada assume a forma de uma tentativa de resignificar e articular o contexto não tematizado. E em Bourdieu (SOUZA, 2003) será representado pela categoria do habitus.
Afirma Souza (2003) que a grande novidade trazida por Taylor é uma reconstrução da hierarquia de valores que divide os seres humanos em mais e menos, cuja opacidade é apenas reduplicada, mas não constituída pelo corte entre produção e circulação de mercadorias. Expõe que a reconstrução da lógica valorativa é fundamental para análise das sociedades modernas, uma vez que permite desconstruir a naturalização da desigualdade periférica, como também a ilusão da igualdade de oportunidades.
Souza (2003) irá criticar Taylor por esse adotar uma postura política de assunção de uma igualdade efetiva, ao menos tendencial, nas sociedade avançadas do Estado do bem-estar social, cujo conflito passaria a ser marcadamente por demandas de reconhecimento.
A reconstrução de Taylor (SOUZA, 2003) é fundamental por permitir um acesso simbólico e cultural a estruturas reificadas, como instituições de peso estruturante como o mercado e o Estado (o mercado competitivo e o Estado racional centralizado são tomados como as instituições fundamentais do capitalismo moderno) que se apresentam como valorativas e normativamente neutras incorporando princípios gerais e abstratos de eficiência. Assim, instituições passam a ser vistas como grandezas perpassadas por valores e escolhas avaliativas e não podem ser pensadas sem elas.
Souza (2003) pretende reduzir a distância entre o princípio da dignidade e da autenticidade para tentar perceber como ambos servem como fundamento da distinção social, de classe, gênero e etnia. Elucidar, como a desigualdade pode ser legitimada e tornada invisível pela ideologia espontânea do capitalismo tardio.
Para cumprir tal pretensão, Souza (2003) considerada como a chave para este fim a teoria de Bourdieu, uma vez que a perspectiva adotada por este autor permite irmos além de um conceito de reconhecimento que assume, pelo menos tendencialmente, como realidade efetiva a ideologia da igualdade prevalecente nas sociedades centrais do Ocidente.
A teoria do reconhecimento de Taylor (SOUZA, 2003) dá conta do consenso normativo mínimo compartilhado intersubjetivamente, ou seja, um patamar compartilhado de regras comuns, mecanismo que acredita ter sido secundarizado por Bourdieu (SOUZA, 2003), uma vez que este reduz o espaço social a um espaço de interações conjunturais. Dentro da teoria do autor francês aponta Souza (2003) não é tematizado a questão essencial dos critérios que definem o gosto refinado.
Para ambos os autores, Taylor e Bourdieu, existe um processo de sublimação dos sentidos marcada pela distância em relação à natureza animal do homem e às necessidades primárias, o que é fundamental para toda a noção de superioridade moral ou estética. Essa hierarquia é percebida por Taylor como a base da configuração moral do Ocidente, e por Bourdieu como a forma de distinção entre classe trabalhadora e burguesa, através do habitus.
2.a) Sociedade brasileira
Feita a abordagem dos dois teóricos que serão utilizados para a construção de sua teoria, Souza (2003) passa a analisar a situação específica da sociedade brasileira, através de dois autores principalmente, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes.
Segundo Souza (2003) desvelar a lógica da dominação social interpostas pelo Estado e pelo mercado não é suficiente para a compreensão e reconstrução dos mecanismos que naturalizam as relações de desigualdade no capitalismo moderno. É importante para a compreensão das diferenças existente entre os países modernos a noção de imaginário social trabalhada por Taylor, ou seja, o que as pessoas comuns percebem como sendo seu ambiente social, percepção esta que quase nunca assume a forma explicita de teorias, mas que se manifestam ao contrário sob a forma de imagens, estórias, lendas, ditos populares, etc. É este imaginário que permite um senso compartilhado de legitimidade da ordem moral, assim ele (imaginário) é tanto factual quanto normativo.
Um ponto importante para entender a especificidade da modernidade periférica é o fato de que as práticas modernas são anteriores as idéias modernas. Quando mercado e Estado, são importados de fora para dentro com a europeização, inexiste o consenso valorativo que acompanha o mesmo processo na Europa e América do Norte, possível pela homogeneização de um tipo humano transclassista (pressuposto da eficácia social da noção de cidadania), perseguido de forma consciente e decidida. Enquanto na modernidade periférica este desiderato foi deixado a uma suposta ação automática do progresso econômico.
Inexistiu assim em países como o Brasil, o potencial generalizador, abrangente e inclusivo existente nas sociedades centrais do Ocidente. Assim, a esquematização periférica não possui a mesma eficácia conseguida na modernidade central, contudo não significa que o contexto prévio não possua eficácia alguma, apesar de ser menor (a eficácia) do que supõem os teóricos do personalismo.
Souza (2003) afirma que apesar de Freyre ser considerado por ele o pensador social brasileiro mais talentoso, defende este a tese da continuidade essencial entre Brasil e Portugal, da qual Souza (2003) discorda. Mas afirma que a dimensão descritiva do argumento de Freyre pode ser utilizada como ponto de partida para a construção da tese da singularidade da formação social brasileira. Será feita então uma tentativa de “usar Freyre contra Freyre”[7].
Souza (2003) realiza incialmente uma crítica ao esquecimento brasileiro em relação à escravidão, instituição que durou quase 400 anos e abrangeu todo o território nacional, tendo apenas dois autores tratado esta instituição como fio condutor da análise, Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre.
Em Casa Grande e senzala ressalta-se que a família patriarcal reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, formado pelo senhor e sua família nuclear, mas também os elementos ‘intermediários’ constituídos pelo enorme número de bastardos e dependentes, além da base de escravos domésticos e, na última escala da hierarquia, os escravos da lavoura.
A análise de Freyre tem no português o elemento principal do processo sincrético de colonização brasileira. Mas o português é a figura do contemporizador, sendo este o traço que o diferencia do colonizador espanhol e anglo-saxão, carregando a característica mais importante da vida colonial brasileira, a plasticidade do homem sem ideais absolutos nem preconceitos inflexíveis. O que propicia uma forma de sociabilidade entre desiguais que mistura cordialidade, sedução, afeto, inveja e todas as nuances da emoção humana. E é no ponto de encontro em negro e português que Freyre traz a tona o drama social do Brasil colônia.
O objetivo em Casa grande e senzala é captar a especificidade da formação social brasileira a partir do tipo particular de colonização portuguesa que se implementou. O argumento irá alternar entre uma ênfase no tema do sadomasoquismo e no tema da mestiçagem. O sadomasoquismo está ligado ao tema da escravidão muçulmana, na qual a expansão e durabilidade da conquista são mantidas na medida em que se associa o acesso a bens materiais e ideais muito concretos à identificação do dominado com os valores do opressor, pode-se abdicar do emprego sistemático da violência, uma vez que se passa a contar com o elemento volitivo internalizado e desejado pelo próprio oprimido. A consequência negativa é a subordinação e sistemática reprodução social da baixa autoestima nos dominados e a positiva é a abertura real de uma efetiva possibilidade de diferenciação social e mobilidade social. Com base nessa ideia é que se compreende a distinção feita por ele entre a democracia racial brasileira e democracia apenas política dos norte-americanos.
Souza (2003) irá utilizar o argumento da herança moura em Freyre como ponto fundamental para reconstruir Freyre. A família nesta interpretação não estava ligada apenas a necessidade funcional e instrumental de aumentar o número de escravos, a poligamia maometana tinha uma característica muito peculiar, bastava o filho do patriarca com a escrava adotar a fé, rituais e costumes do seu pai, para se tornar igual ao pai. Assim é que o filho da escrava africana com o senhor europeu poderia ser aceito como europeizado no caso de aceitação dos costumes do pai.
Dada à distância do Estado português e de suas instituições a família é a unidade básica da formação brasileira. O caráter autárquico do domínio senhoril condicionado pela ausência de instituições acima do senhor territorial, não propicia a constituição de freios sociais ou individuais aos mandos e desmandos do senhor.
Constitui-se, assim, uma sociedade estruturalmente sadomasoquista, no sentido de uma patologia social específica, em que a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transforma-se em objeto das relações interpessoais.
“A consequência política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem da esfera da família e da atividade sexual para a esfera pública das relações políticas e sociais, se tornam evidentes na dialética de mandonismo e autoritarismo de uma lado, no lado das elites mais precisamente, e no populismo e messianismo das massas, por outro”[8]
Passa, então, a analisar o local ocupado na sociedade brasileira pelo dependente ou agregado formalmente livre, sujeitos despossuídos, cuja única chance de sobrevivência era ocupar funções nas franjas do sistema como um todo – homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais a sociedade – que será denominado por Maria Sylvia de Carvalho Franco como presença ausente da escravidão.
No horizonte pratico-moral que condiciona a vida e as relações sociais dos dependentes temos um quadro no qual: a violência é o núcleo da vida comunitária, o comportamento prático é regulado pelo código da virilidade, nada mais importa que o momento da defesa incondicional e sem nenhuma gradação de uma noção primitiva e autocentrada de honra. A violência se erige em conduta aceita e legítima, sendo percebida como o único modo de restabelecer a integridade do agravado.
Outro ponto é o vínculo hierárquico tornado naturalizado e intransparente, entre dependente e senhor de terra. O que se tinha era uma dependência objetiva do senhor de terra apesar da ilusão subjetiva de liberdade. Nesta ilusão o dependente se relaciona com o proprietário como se fosse seu igual, conduto o que se tem é uma forma de sujeição absoluta, ou uma servidão voluntária.
Segundo Souza (2003) o escravo na ‘escravidão muçulmana’ e o dependente formalmente livre, irão formar a ‘ralé’ dos imprestáveis e inadaptados ao novo sistema impessoal que chega de fora para dentro ‘como prática institucional’ pura, sem o arcabouço ideal, que nas sociedades centrais, foi o estímulo último para o gigantesco processo de homogeneização do tipo humano contingente e improvável que serve de base à economia emocional burguesa, e que permite a sua generalização também para as classes subalternas.
Florestan Fernandes (SOUZA, 2003) é o autor que mais se aproximou da construção de um paradigma, o qual permite vislumbrar uma concepção alternativa que permita dar conta dos problemas modernos de sociedades modernamente periféricas.
Florestan (SOUZA, 2003) defende que o burguês aparece no Brasil já como uma ‘realidade especializada’, não surge como uma criação espiritual cuja prática inintencional o transforma em agente econômico como na Europa. Surge como um produto econômico que, desde o começo, se constitui como resposta a estímulos econômicos concretos, sem que ocorra, pelo menos a curto e médio prazo, uma abstração dessa circunstância para o contexto social maior. Souza (2003) aponta que a forma como Florestan percebe o aparecimento do burguês brasileiro coaduna com a discussão acerca da anterioridade de práticas institucionais e sociais em relação às ideias.
O fato estrutural fundamental para a implementação do capitalismo no Brasil é a estruturação de um Estado nacional, a partir da aquisição da independência política. As novas forças e práticas sociais advindas da implementação de um Estado e mercado, que já trazem consigo uma visão de mundo e do ser humano contingente historicamente produzida, que hierarquizam indivíduos e classes sociais de acordo com seus imperativos funcionais, mostram-se ainda sob a lente de distinções e avaliações estamentais da ordem anterior, o que produz um déficit de articulação, ou seja, ausência de perspectiva de longo prazo e ausência de adequada compreensão da profundidade e da abrangência dos novos comportamentos e papéis sociais que se desenvolvem. Esse déficit de articulação que dá conteúdo ao que Florestan denomina de revolução burguesa encapuzada.
O liberalismo na ótica de Florestan (SOUZA, 2003) através da pregação antiescravista, disfarçava e exprimia a vontade de expandir a ordem social competitiva, abrindo caminho para uma reorganização nacional segundo os interesses da economia de mercado. Neste sentido a abolição foi uma revolução social de brancos para brancos, ou seja, um compromisso intra-elites.
O liberalismo será a doutrina que possibilitará uma espécie de gramática mínima, que permite explicitar os interesses envolvidos na reelaboração de uma agenda sociocultural de um elite recém saída da dependência e da menoridade, para o desempenho dos papéis exigidos para a inserção no mercado internacional e para a gestão de uma aparelho estatal nacional autônomo. O liberalismo passa a vigorar como uma ideologia ou visão de mundo galvanizadora e integradora dos novos requisitos estruturais e funcionais, tanto da nova ordem legal, quanto também da concepção de mundo que articulava uma nascente esfera pública.
Ao contrário de Florestan que localiza o ponto de mudança em 1822, com a independência e a constituição de um Estado, Freyre antecipa para 1808 esta data, principalmente com a vinda da família Real para o Brasil.
A chegada da família Real implica uma nova orientação da vida política e social na direção de uma maior proteção dos interesses urbanos, assim a cidade tende a se firmar contra o engenho e o potentado rural, e o Estado contra a família patriarcal.
A mercantilização crescente da vida econômica passa a ameaçar os fundamentos estamentais da base socioeconômica do patriarcalismo e a entrada do Estado e de seus agentes completa o quadro de substituição gradual do poder pessoal pelas instituições impessoais recém importadas. A lenta superação do personalismo e do familismo deu-se tanto no espaço privado quanto no público.
No espaço público as mudanças a época de transição do poder político e econômica para a cidade, foi também a “época do campo na cidade”[9]. O sobrado a casa do senhor rural na cidade é um prolongamento material da personalidade do senhor, neste aspecto a rua é o lixo da casa, representa o perigo, o escuro, era simplesmente a não-casa, uma ausência. Mudada a habitação o reconhecimento da não alteridade, contudo, permanece.
O que foi iniciado em 1808 foi a reeuropeização, representada por um novo mundo material e simbólico, implicando na repentina valorização de elementos ocidentais e individualistas em nossa cultura mediante a influência de uma Europa, agora já francamente burguesa, tal processo realizou-se como uma grande revolução de cima para baixo, envolvendo todos os estratos sociais, mudando a posição e o prestígio de cada um desses grupos e acrescentando novos elementos de diferenciação. Contudo o elemento mais impactante foi a entrada do conhecimento e com ele a valorização do talento individual, passando a contar de forma crescente na nova hierarquia social.
Uma democratização que tinha para Freyre o suporte do mulato habilidoso e do mulato bacharel. Freyre defendia assim que a ascensão do mulato seria uma espécie de comprovação de sua tese do Brasil como paradigma da mestiçagem e da cultura democraticamente híbrida.
Em Freyre temos uma recuperação dos aspectos da alteração progressiva e capilar dos princípios e estilos de vida que guiam a vida cotidiana dos mais diferentes grupos, aspectos secundarizados por Florestan devido ao nível de abstração de sua análise.
Souza (2003) afirma que a partir de 1808 observa-se no Brasil um processo modernizador da nova periferia, sociedade que são formadas pelo influxo do crescimento do capitalismo industrial europeu a partir da transferência de suas práticas institucionais impessoais enquanto artefatos prontos. Essas práticas possuem uma concepção de mundo contingente e historicamente constituída, corporificada de forma opaca e intransparente. É esta nova visão de mundo que passa a guiar a percepção e a construção de novos estilos e condutas de vida numa sociedade, que antes era perpassada por uma cultura material e simbólica, rasteira e primitiva.
Dessa forma, o processo de modernização da nova periferia, tem a ver, antes com a ausência do que a presença de uma tradição moral ou religiosa que pudesse esquematizar o impacto modernizante das práticas institucionais transplantadas como artefatos prontos.
Como mencionado, o liberalismo para Florestan, se constituiu em uma espécie de língua comum que permitia, no contexto intra-elites em que se deu a expansão negociada da ordem burguesa, uma legitimação, ainda que de curto prazo e reduzido às parcelas privilegiadas da população, das demandas por respeito a contratos, instituição de uma ordem legal autônoma, uma estrutura representativa, ainda que extremamente restritiva.
No limiar do século seguinte (final do sec. XIX e início do sec. XX) esse arranjo elitista começou a ser amplamente questionado. As pressões democratizantes vinham tanto de baixo, operários urbanos, quanto do meio, setores médios (novas camadas urbanas e militares).
Com a crise aberta pela eleição de 30, constitui-se a primeira revolução brasileira que partiu da periferia para o centro do sistema. Apesar da não participação efetiva da burguesia industrial, houve um projeto de diversificação econômica que visava reestruturar o efeito multiplicador da economia fundada no esforço agroexportador, no sentido de fortalecer o mercado interno e ampliar as bases da atuação estatal.
A partir disso Werneck Vianna (SOUZA, 2003) em Liberalismo e sindicato no Brasil constrói sua tese do ‘caminho prussiano’ da modernização brasileira.
“Os nossos junkers caboclos viriam de representações políticas de regiões dominadas pelo latifúndio, o que iria implicar na preservação do monopólio da terra, na inviabilização da reforma agrária e na exclusão dos trabalhadores rurais dos benefícios sociais e trabalhistas”[10]
Assim, tem-se a permanência de relações primitivas nas regiões atrasadas (Norte/Nordeste). E inaugura-se o que Werneck Vianna chama de ‘unitarismo organicista’, uma ideologia política que tem aversão a qualquer forma de interesse particular, o corporativismo irá se apresentar como o sistema ideal.
Assim, o corporativismo para assumir a representação das classes subalternas tem que acabar primeiro com suas organizações e lideranças independentes. A estrutura corporativa, incialmente destinada a abranger trabalhadores e empresários acaba por converter-se em um Estado autoritário modernizante.
2.b) A subcidadania
Florestan (SOUZA, 2003) percebe nas dificuldades de adaptação a nova ordem competitiva, a semente da marginalização continuada de negros e mulatos. Localizando essas dificuldades nas condições psicossociais da personalidade, ou seja, na inadaptação do negro para o trabalho livre e a incapacidade de agir segundo modelos de comportamento e personalidade da sociedade competitiva.
A tese de Florestan (SOUZA, 2003) é que a família negra não chega a se constituir como uma unidade capaz de exercer as suas virtualidades principais da modelação da personalidade básica, marcando uma continuidade com a política escravocrata brasileira que procurou impedir qualquer forma organizada familiar ou comunitária da parte dos escravos.
A família não só não era uma base segura, mas ainda se transformava na causa dos mais variados obstáculos. A vida familiar desorganizada somada a pobreza era responsável por um tipo de individuação ultra egoísta e predatória.
O que Florestan (SOUZA, 2003) está buscando é atribuir à constituição e reprodução de um habitus específico no sentido de Bourdieu. Se considerar-se que é a reprodução de um habitus que Souza (2003) denomina de precário a causa da inadaptação e marginalização, não é a cor da pele, como tendencialmente se argumenta a causa da desigualdade. Contudo, Florestan (2003) irá realizar uma certa confusão entre estes dois aspectos (habitus e cor da pele) o que o leva a imprecisões e paradoxos.
Souza (2003) defende que não é o apego à hierarquia anterior que produz o racismo e o transfere como resíduo à ordem social competitiva. A ordem competitiva, também, tem a sua hierarquia, ainda que, implícita, opaca e intrasparente, e é com base nela que tanto negros quanto brancos, sem qualificação adequada, são desclassificados e marginalizados.
Com base na junção das teorias de Taylor e Bourdieu, Souza (2003) propõe uma subdivisão interna à categoria de habitus, falando-se assim em uma pluralidade de habitus. Para Souza (2003) Bourdieu tematiza adequadamente somente o que será chamado de “habitus primário”, ou seja, esquemas avaliativos e disposições de comportamento objetivamente internalizados e incorporados que permitem o compartilhamento de uma noção de dignidade efetivamente compartilhada, no sentido de Taylor (SOUZA, 2003).
É essa dimensão de dignidade compartilhada que tem que estar disseminada de forma efetiva em uma sociedade para que se possa afirmar que a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade está garantida pela lei.
Souza (2003) propõem então a diferenciação analítica de outras duas realidades, o “habitus precário” e o “habitus secundário”.
O “habitus precário” seria o limite do “habitus primário” para baixo, seria o tipo de personalidade e de disposições de comportamento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indivíduo, possa gozar de reconhecimento social.
Já o “habitus secundário” é o limite do “habitus primário” para cima, ou seja, a fonte de reconhecimento e respeito social que pressupõe a generalização do “habitus primário” para amplas camadas da população de uma dada sociedade. Já se parte aqui da homogeneização dos princípios operantes na determinação do “habitus primário”, instituindo critérios classificatórios de distinção social a partir do que Bourdieu (SOUZA, 2003) denomina de gosto.
Souza (2003) incorpora ao argumento da distinção do “habitus primário” o argumento de Reinhard Kreckel da ideologia do desempenho. Kreckel (SOUZA, 2003) tenta elaborar um princípio único, para além da mera propriedade econômica, a partir do qual se constitui a mais importante forma de legitimação da desigualdade no mundo contemporâneo. Teria que haver um pano de fundo consensual acerca do valor diferencial dos seres humanos de tal modo que possa existir uma efetiva legitimação da desigualdade.
Assim, será o poder legitimador da ideologia do desempenho que irá determinar, aos sujeitos e grupos excluídos, pela ausência dos pressupostos mínimos para uma competição bem sucedida, seu não-reconhecimento social e sua ausência de autoestima.
No caso brasileiro o abismo entre “habitus primário” e precário se cria coma a reeuropeização do país, aqui tratada, e se intensifica a partir de 1930 com o processo de modernização. Neste caso, a divisão passa a ser traçada entre os setores ‘europeizados’ e os setores ‘não europeizados’ que tenderam por seu abandono. Como o princípio básico do consenso transclassista é o princípio do desempenho e da disciplina a inadaptação e a marginalização passam a ser vistas como um fracasso pessoal.
“É que, na dimensão infra e ultrajurídica do respeito social objetivo compartilhado socialmente, o valor do brasileiro pobre não-europeizado – ou seja, que não compartilha da economia emocional do self pontual que é criação cultural contingente da Europa e da América do norte – é comparável a que se confere a um animal doméstico, o que caracteriza objetivamente o seu status sub-humano”[11]
Assim no Brasil tem-se toda uma classe de pessoas excluídas e desclassificadas, dado que elas não participam do contexto valorativo de fundo.
“Em sociedades periféricas como a brasileira, o ‘habitus precário’ que implica a existência de redes invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos, e isso sob a forma de uma evidência social insofismável, tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da precariedade, é um fenômeno de massa e justifica minha tese de que o que diferencia substancialmente esses dois tipos de sociedades é a produção social de uma ‘ralé estrutural’ nas sociedades periféricas.”[12]
Souza (2003) explicita que o esforço da construção múltipla de habitus serve para ultrapassar concepções subjetivas da realidade que reduzem as mesmas às interações face a face, como a brasileira, como se o papel estruturante coubesse a princípios pré-modernos.
Gente e cidadão pleno vão ser apenas aqueles indivíduos e grupos que se identificam com a concepção de ser humano contingente e determinado que habita a consciência cotidiana, a hierarquia valorativa de instituições fundamentais como Estado e mercado e que constitui o cerne da dominação simbólica subpolítica que perpassa todas as nossa ações e comportamentos cotidianos.
Voltando a atenção à dinâmica já mencionada entre práticas e idéias, Souza (2003) afirma que além da ‘ideologia espontânea do capitalismo’ existe também outra ideologia explicita e articulada que funciona como uma dimensão alternativa e autônoma de formação de identidades. Nomeia Freyre como o formulador de uma versão definitiva da ideologia explícita que se torna doutrina de Estado, passando a ser ensinada nas escolas e disseminada nas mais diversas formas de propaganda, a ideia de democracia racial.
Como ideólogo, Freyre (2003) com sua tese inverte especularmente a baixa autoestima em orgulho nacional. Hoje temos essa ideologia, da nossa singularidade como propensão para o encontro cultural, para a síntese das diferenças, para a unidade na multiplicidade, como parte de nossa identidade. “A influência dessa idéia como o país se vê e se percebe é impressionante”[13]
Assim, a ideologia explícita articulada com o componente implícito da ideologia espontânea, forma um extraordinário contexto de obscurecimento das causas da desigualdade.
- Titulação de terras quilombolas no direito brasileiro
O art. 69 do ADCT preconiza que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Temos, dessa forma, um dispositivo constitucional estabelecendo que o reconhecimento de determinada comunidade como quilombola e a permanência desses grupos em “suas terras” garantiria a propriedade formal desse imóvel a essas pessoas. O texto legal não impõe nenhuma outra condição para que tenham direito a serem reconhecidos como proprietários. Observa-se, ainda, que não é mencionado em momento algum que a propriedade será coletiva.
Ao analisarmos, contudo, o Dec. 4887/03, particularmente seu art. 17, podemos notar que são impostas limitações ao direito de propriedade não previstas no ADCT. Diz o art.:
“a titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2o, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.
Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas”[14]
Temos aqui a imposição de várias condições não previstas no texto constitucional para que seja concedida a propriedade da terra aos quilombolas. O título outorgado não será emitido em nome dos integrantes da comunidade, mas deverá ser registrado em nome de uma associação que irá representar a comunidade, sendo, ainda, a propriedade coletiva, inalienável, imprescritível e impenhorável.
Reconhece-se a propriedade, mas não com todas as faculdades inerentes ao próprio conceito. Conforme o Código Civil em seu art. 1228 “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Depreende-se, pois, da leitura do dispositivo do Código Civil que é negado aos remanescentes de quilombo características essências ao próprio conceito de propriedade.
Não pretende-se aqui discutir a (in)constitucionalidade de tal dispositivo, seja em seu âmbito formal ou material, apesar da controvérsia que o tema pode gerar. Deseja-se analisar criticamente o conteúdo do decreto, para, assim, serem tecidas algumas críticas.
- Titulação de terras quilombolas e a subcidadania
Mallmann (2011) irá festejar o Dec. 4.887/2003 como uma forma de inclusão dessas comunidades afirmando que a Constituição de 1988 ao emitir a titulação propiciou o reconhecimento e a interação cultural e social deste grupo. Discorrendo que o reconhecimento do direito de propriedade como estabelecido em nosso ordenamento é uma forma de sanar com as históricas injustiças cometidas para com os descendentes de escravos.
Inicialmente gostaria de elucidar os seguintes dados trazidos por pesquisa quali-quanti realizada em 2006 junto a 65 comunidades quilombolas e em 2008 junto a 79 comunidades quilombolas, por Brandão et ali (2010). No ano de 2006, Brandão et ali (2010) constataram que 79% dos entrevistados entendem que a terra ocupada é própria adquirida através de herança ou doação e somente 6% apontam a terra como coletiva, “na contramão do formato obrigatório para a titulação das área quilombolas como definido pelo INCRA”[15]
No ano de 2008 os resultados obtidos vêm confirmar a percepção acima descrita. A maioria das famílias 54,9% entende que ocupa terras próprias e 6,5% entendem que a terra é comunitária. O resultado da pesquisa é demonstrativo da aplicação de uma política de cima para baixo, uma vez que os próprios destinatários das propriedades ‘comunais’ como previsto no Dec. 4.887/2003, percebem as suas propriedades enquanto privadas. Dessa forma, reconhecer as terras como comunitárias, não seria retirar um direito basilar da sociedade moderna que é o direito a propriedade.
Mota (2009) irá defender que o modelo de titulação da terra adotada é uma forma do Estado tutelar tais grupos, terra passa a ser somente bem de uso e não de troca. A tutela serviria em sua visão para restringir o pleno direito de acesso a suas próprias terras, uma vez que retira a plena autonomia de gestão das mesmas.
O meu argumento passa em certa medida pelo afirmado por Mota (2009), pois defendo aqui que a regulamentação do dispositivo legal da forma como foi realizada demonstra uma visão dentro do campo jurídico, do congelamento das populações tradicionais. Congelamento aqui pode ser entendido como o não reconhecimento de um tempo coentâneo ao Outro (LOBÃO, 2010) como forma de fazer com que estes grupos continuem a ocupar os mesmos locais físico e social.
O não reconhecimento dos quilombolas como proprietários retira desses sujeitos a autonomia de decisão sobre suas vidas. Limitando a propriedade, tal como demonstrado e transferindo o título para uma associação, faz-se com que esses indivíduos permanecem nos locais onde habitam.
O que temos aqui não chega nem a ser a inadaptação destes sujeitos a uma sociedade competitiva, mas em certa medida, a exclusão, ou melhor, a tentativa de inibir a participação nesta mesma sociedade.
A meu ver o disposto no Dec. 4.887/2003 é demonstrativo do não compartilhamento da dimensão de dignidade que tem que estar disseminada de forma efetiva em uma sociedade para que se possa afirmar que a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade está garantida pela lei. E mais do que isso, é a diferenciação entre sujeitos de direito pleno (cidadão) e sujeitos de direitos tolhidos sob a justificativa de inclusão (subcidadão) pela própria lei.
Perpetua-se uma sociedade de desiguais que deve continuar desigual, e isto é conseguido através do congelamento das sociedades tradicionais, bem como, de seus indivíduos.
- Conclusões
Diante de todo o exposto, acredito que a teoria de Souza (2003) pode ser utilizada como importante arcabouço para pensarmos criticamente a sociedade brasileira permitindo, um outro olhar para formas institucionais excludentes já naturalizadas.
O que se pretendeu desenvolver neste trabalho foi a tentativa de perceber um dispositivo do próprio ordenamento jurídico como uma forma de propagar um tratamento de determinados indivíduos como subcidadãos, ou, como não detentores de todos os direitos que são atribuídos a própria construção de indivíduos na modernidade, operando aí a propriedade um atributo básico.
Assim, o que defendi é que tolhir determinados direitos como o realizado pelo decreto analisado, sob o argumento de inclusão social é, na realidade, uma forma de diferenciação fazendo com que os grupos ora denominados quilombolas permaneçam nos quilombolos.
- Bibliografia
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SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
[1] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 12.
[2] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 23.
[3] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 32.
[4] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 39.
[5] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 44.
[6] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 56.
[7] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 102.
[8] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 119.
[9] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 140.
[10] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 148.
[11] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 174.
[12] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 177
[13] SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. Página 188.
[14] BRASIL. Decreto 4487, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o art. 68 do ADCT. Artigo 17.
[15] Brandão, André et ali. Comunidade quilombolas no Brasil: características socioeconômicas, processo de etnogênese e políticas sociais. Niterói: EdUFF, 2010. Página 22.