A prisão como castigo, o trabalho como remição – contradições do sistema penitenciário paranaense

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 03 – Julho/Dezembro 2006

A prisão como castigo, o trabalho como remição – contradições do sistema penitenciário paranaense

Silmara A. Quintino – é Socióloga formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Especialista em Sociologia Política (Violência e Cidadania) pela Universidade Federal do Paraná, Mestre em Sociologia (linha de pesquisa Cultura e Sociabilidades – área de concentração em Cultura e Poder) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Professora de Sociologia da Rede Pública Estadual Paranaense – Ensino Médio.

E-mail: silmarxgev@hotmail.com

Resumo: Este artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica que tem como eixo principal a pena de prisão, sua eficácia e o trabalho como fator de ressocialização no Paraná. O objetivo da pesquisa foi promover uma análise a cerca do Sistema Penitenciário do Paraná demonstrando o que há de genérico e de específico no caso paranaense. Nos itens que se seguem procuramos apresentar ainda que de maneira superficial: o surgimento da prisão como pena no Paraná, uma rápida história da Penitenciária Central do Estado, uma análise de seu estatuto e programa de ressocialização e um breve estudo sobre o trabalho como fator de ressocialização.

Sumário: 1. Introdução; 2. Dos objetivos da prisão e de seus resultados efetivos no Paraná; 3. Do trabalho como fator de ressocialização; 4. Conclusões; 5. Referências bibliográficas.

Palavras-chave: Prisão como pena; trabalho; ressocialização; penas alternativas.

  1. Introdução

Para promover um estudo do Sistema Penitenciário paranaense procurando demonstrar o quanto essa análise pode ser generalizada e comparada com outros Sistemas Penitenciários de outros estados, julgamos ser útil contar um pouco do que se faz no Paraná e de como se faz. De nossos erros, nossos acertos e nossas tentativas de resolver algo que infelizmente nos parece insolúvel. Não só no Paraná ou no Brasil, mas de maneira global, pois o problema da prisão tem sido desde sua origem a própria prisão.

Somente depois da proclamação da República é que o poder público paranaense começou a pensar na criação de uma penitenciária no estado. Contudo, até 1913 os presos da capital, apenas denunciados ou condenados cumpriam sua pena na cadeia pública, que funcionava desde aquela época em condições precárias dentro do quartel da força policial, e os presos do interior do estado nas prisões municipais.

Em 1908 uma lei estadual autorizou a mudança dos sentenciados para o Hospital de Alienados, que fora adaptado para a instalação da penitenciária que inicialmente teria capacidade para abrigar 52 reclusos, mas só em 1909, sob o governo de Francisco Xavier se deu o início ao que atualmente chamamos regime penitenciário no Paraná, cujo regulamento foi baixado pelo decreto 564/1908.

O regulamento de 1908 estabelecia as bases do sistema a ser observado, prescrevendo que a Penitenciária do estado seria instituída para aplicação das penas prescritas pelo Código Penal da República e também que haveria durante a noite encarceramento celular e durante o dia trabalho em comum, porém sob rigoroso regime de silêncio. Esta era uma tentativa de seguir o modelo Auburniano.

Neste artigo gostaríamos de analisar alguns pontos que estavam presentes no estatuto da Penitenciária em 1909 e que ainda hoje se encontram no programa de ressocialização do Sistema Penitenciário paranaense. Entre eles destacamos o aspecto do trabalho que já em 1909 era visto como a principal forma de ressocialização do indivíduo infrator. O segundo ponto seria a educação como maneira de “reformar o homem que precisa de reforma” e em seguida a assistência religiosa, com o objetivo de proporcionar o conforto espiritual e auxiliar a diretoria no “reerguimento moral do apenado”.

  1. Dos objetivos da prisão e de seus resultados efetivos no Paraná

Sabemos que a prisão já existia muito antes de sua utilização sistemática nas leis penais. Porém como penalidade em si mesma ela passará a existir efetivamente a partir do fim do século XVIII e início do século XIX.

A prisão se fundamenta em dois elementos principais: na forma simples da privação da liberdade e no seu papel de aparelho capaz de transformar os indivíduos e também no encontro das duas coisas. Quanto à privação simples da liberdade, concluímos que um pré-requisito para que a prisão em si fosse tida como pena e sobrevivesse apesar de todos os inconvenientes, chegando até os nossos dias e com o status de pena mais eficaz não apenas entre o senso comum, mas também entre alguns expoentes da academia, foi a consolidação do modelo liberal de sociedade. Ou seja, primeiro foi preciso difundir a idéia de liberdade e do quanto ela é cara e indispensável a qualquer ser humano para depois se estabelecer como maior penalidade a restrição da mesma.

Quanto ao aspecto de ser a prisão capaz de transformar os indivíduos, esse nos parece um dos mais caros argumentos para aqueles que defendem a pena de prisão como um mal capaz de evitar outros males. Detivemos-nos neste aspecto tentando entender de que forma a prisão poderia recuperar os indivíduos criminosos, quais seriam seus objetivos, quais seus métodos para chegar a esse fim e de que forma se legitimam dentro e fora dos muros da penitenciária esses métodos.

Desde o início a prisão foi vista como uma forma legal e encarregada de modificar o comportamento dos indivíduos, transformar criminosos em não criminosos e devolvê-los arrependidos, dóceis e adaptados à sociedade da qual não faziam parte. Como diria Foucault essa prática equivaleria a “tirar dos indivíduos apenados, o máximo de tempo e de forças, treinando seus corpos, condicionando seu comportamento, vigiando-os constantemente para torná-los dóceis e adaptados à sociedade” .

No Paraná o objetivo da prisão era o mesmo: recuperar o indivíduo e devolvê-lo útil para a sociedade. Mas como fazê-lo? “O próprio julgamento criminal já é em si mesmo uma unidade arbitrária, uma vez que prejulgar alguém é arbitrariedade, além disso, é arbitrário também pré estabelecer a duração da pena, posto que não se pode prescrever de antemão em quanto tempo um indivíduo se regeneraria e estaria apto a voltar para a sociedade”.

Ao analisarmos o regulamento da PCE (Penitenciária Central do Estado), podemos ver o esforço que se faz não só para enquadrar-se num modelo mais humanitário de prisão, como também uma busca constante de aperfeiçoamento, eficiência e defesa constante da manutenção da pena de prisão.

Segundo esta visão, há prisões e prisões. Há aquelas que são violentas, meros instrumentos de aperfeiçoamento de criminosos, mas há também aquelas que podem recuperar, ressocializar, reeducar o indivíduo e devolvê-lo para a sociedade como se espera que uma “boa prisão” o faça.

A legitimação da prisão como instrumento privilegiado de ressocialização se dá em parte pela idéia que a sociedade tem do detento e que por vezes o detento tem de si mesmo: “de que ele atingiu o mais baixo ponto possível de degradação, identificando-o como algo que não merece mais que indiferença, descaso e desprezo”.

Outro aspecto legitimador da prisão é a idéia que surge com o Estado Moderno de que todo estado se fundamenta no uso da força e apesar desta não ser o único meio de que dispõe o estado para assegurar a ordem, ela é com certeza um meio específico do estado.

Segundo Weber o Estado se fundamenta numa relação de homens dominando homens. Esta relação é mantida por meio da violência legítima. A prisão nos parece um excelente exemplo dessa violência institucional legítima e legitimada a cada dia.

Como ressocializar um indivíduo através de um regime proibitivo imposto a ele na prisão, ao qual ele deva mostrar cega obediência? Segundo Coelho, o confinamento e o regime de vigilância ao qual está submetido o interno estimulam-o a arquitetar uma infinidade de fórmulas para burlar os regulamentos da prisão e infernizar a vida do guarda .

Há ainda um segundo problema: ressocializar entende-se como tornar o indivíduo apto para conviver novamente em sociedade, agora mais dócil e controlado. Mas como fazê-lo retirando o indivíduo do convívio social, haja vista que as prisões devem ser bastante distantes das áreas residenciais, numa clara demonstração de que os rejeitadores querem o mínimo contato possível com os rejeitados, aliás, esse é um aspecto muito peculiar da prisão que por questões éticas ou por pura hipocrisia a sociedade não ousa confessar.

Embora as prisões tenham se transformado muito e teoricamente se humanizado, revisto seus métodos desde aquele deplorável Sistema Pensilvânico de penitenciária na Philadelphia onde o preso ficava isolado numa cela sem cama, banco ou qualquer assento dia e noite sozinho e em silêncio, comendo uma única vez por dia, sem nenhuma atividade e nenhum contato humano; as prisões hoje não nos parecem o melhor lugar para ensinar alguém a viver em sociedade.

Se o quadro do isolamento individual saiu de nossas prisões, não foi tanto por uma mudança ideológica do sistema penitenciário, mas por necessidade imposta pelo sistema, ou seja, pela superlotação das penitenciárias. Tanto isso é verdade que toda penitenciária conserva como alternativa de disciplina o confinamento em celas solitárias. No caso da PCE, por exemplo, lá existem 68 celas com essa finalidade.

O máximo que se pode fazer numa penitenciária é a socialização do indivíduo infrator no mundo do crime ou na “sociedade dos cativos” . O indivíduo quando entre para o sistema é forçado a uma convivência diária, íntima e ameaçadora com indivíduos pelos quais sente temor ou repulsa. Todo o tempo em que estiver preso estará preocupado em aprender coisas que lhe facilitem a sobrevivência intramuros, além de ter que lutar diariamente pelos pequenos benefícios que poderá obter da cadeia e para se esquivar dos castigos extras.

Essa será a única socialização que o sistema lhe permitirá e por vezes ele acabará encontrando dentro da prisão o que não encontrou fora: respeito por ser violento e criminoso.

O problema de quem dirige e pensa o sistema penitenciário é que o pensa como uma sociedade normal miniaturizada que pode ser facilmente controlada através de câmeras internas, celas com grades, guardas armados ou rígida disciplina. Thompson faz uma observação relevante sobre isso: “a cadeia não é uma miniatura da sociedade livre, mas um sistema peculiar, cuja característica principal – o poder – autoriza a qualificá-lo como sistema de poder (…) uma sociedade interna, não prevista e não estipulada, com fins próprios e cultura particular, emerge pelos interstícios da ordem social, que conflita o tempo todo com as hierarquias formais do sistema”. Thompson escreveu isso em 1976, no entanto parece que ele estava falando dos esquadrões e facções criminosas que no exato momento em que acabamos de escrever este artigo, dirigem internamente as penitenciárias em qualquer um de nossos Estados.

É óbvio que um estabelecimento no qual convivem forçosamente dezenas e não raras vezes milhares de pessoas, dará origem a um sistema social, desenvolvendo um regime próprio, informal, resultante da interação concreta de homens concretos que partilham os mesmos problemas próprios do confinamento. Isso não é incrível? Não! Afinal essa é a base de organização de qualquer grupo social.

Poderíamos nos estender por páginas e mais páginas apontando as contradições da prisão, a inconsistência dos argumentos de quem a defende e seus resultados nefastos, mas julgamos não ser mais necessário. Um estudo feito sobre prisões em Pernambuco em 1985 encerra sua análise com a seguinte conclusão: “além de produzir a delinqüência (a prisão) também consegue produzir um homem medroso, aflito e angustiado, avesso à idéia de liberdade, incapaz de gerir sua própria vida, desesperado pelo medo da hostilidade social e do despreparo profissional, abatido psicologicamente e sem perspectiva”.

O surpreendente não é que a prisão no Paraná ou em qualquer outra parte do mundo não funcione. O surpreendente é que mesmo com seus percalços, alguns indivíduos conseguem se recuperar e se reintegrar à sociedade que os rejeitou não através da prisão, mas, apesar da prisão.

  1. Do trabalho como fator de ressocialização

“Quanto mais o trabalhador se gasta trabalhando, tão mais poderoso se torna o mundo objetivo alheio que ele cria frente a si, tão mais pobre se torna ele mesmo, o seu mundo interior, tanto menos coisas lhe pertencem como suas próprias (…)” . Tomamos emprestada essa idéia de Marx para iniciarmos uma breve discussão a cerca do trabalho como fator de ressocialização no Paraná. Embora Marx não estivesse se referindo ao trabalho nas prisões quando escreveu essa afirmação nos Manuscritos econômico-filosóficos, ela nos pareceu absolutamente capaz de traduzir o que entendemos que seja o trabalho nas prisões contemporâneas.

A sociedade de maneira geral considera que todo detento deve trabalhar, e pelos mais variados motivos. Alguns defendendo a máxima capitalista de que o trabalho dignifica o homem; outros por considerar que mente desocupada é oficina do diabo; há aqueles que a partir de uma visão católica do trabalho como suplício, defendem o trabalho por vingança (se a vítima e sua família trabalhavam, por que o criminoso não trabalhará?); muitos ainda são favoráveis ao trabalho nas prisões por uma questão de ordem econômica para desonerar os cofres públicos dos custos com a manutenção dos detentos, enfim as razões são quase inumeráveis – existem inclusive aqueles mais exaltados que defendem os trabalhos forçados.

Desde o código penitenciário francês de 1808o trabalho do detento é definido como um dos principais agentes de transformação carcerária. Porém, há que se discutir quais os reais objetivos do trabalho penitenciário, para além dos discursos humanitários oficiais, e quais os pontos negativos desse trabalho.

Antes, porém de iniciarmos a análise do trabalho como fator de ressocialização do detento, gostaríamos de fazer uma rápida análise sobre o significado histórico do termo trabalho e apresentar dois conceitos sociológicos a cerca do mesmo, para prosseguirmos analisando se pelo menos um deles equivaleria ao modelo de trabalho adotado pelo sistema penitenciário paranaense como fator primordial de ressocialização do indivíduo infrator.

Assim como a prisão existia muito antes de ser utilizada como pena em si mesma, também o trabalho como processo de transformação da natureza e resposta às necessidades, é algo encontrado em todas as sociedades das mais elementares às modernas sociedades industriais, assim o que muda no caso da prisão, é a utilização que as diversas sociedades fazem dele.

Desde a sociedade grega que considerava o trabalho como algo inferior a ser executado por escravos, passando pela tradição católica de que o trabalho é um castigo resultante do pecado original, até o início da Idade Moderna, o trabalho foi tido como uma forma de tortura, nem sempre dignificando o homem.

A Reforma Protestante alteraria o pensamento cristão sobre o trabalho apresentando-o como o próprio fundamento da vida, como a principal virtude do cristão e um dos caminhos para a salvação. Ter uma profissão passa a ser não apenas motivo de orgulho como também uma vocação. O pecado então passa a ser o inverso, ou seja, a preguiça e a vadiagem, posto que se contrapõem à ordem “natural” do mundo. Afinal, o próprio Deus criou o mundo em seis dias de trabalho e por isso mesmo descansou no sétimo dia.

Este pensamento foi muito estudado por um dos clássicos fundadores da Sociologia, Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do capitalismo. A concepção protestante, aliada ao desenvolvimento do capitalismo comercial e depois industrial vão gerar uma transformação radical na concepção do conceito de trabalho. O cristão tem o dever de trabalhar, pois a falta de vontade para o trabalho representa a ausência da graça divina.

Aliada a essa nova ética está presente também a idéia iluminista de transformação da natureza pela ação dos homens que se utilizando da ciência, da técnica e das artes mecânicas, por meio do trabalho dominam a natureza.

Uma vez internalizado esse novo ethos do trabalho pelo indivíduo que agora passa a se denominar orgulhosamente trabalhador e mais que isso, passa a forjar do próprio trabalho sua identidade, podemos passar para a análise de dois conceitos sociológicos, ou melhor dizendo podemos examinar o trabalho pela ótica de Dürkheim – que desenvolve o conceito de solidariedade, e pela ótica de Marx – que desenvolve o conceito de alienação do trabalho. Ambos, ainda que pretendessem criar um modelo analítico trans-histórico, analisam a sociedade burguesa industrial do século XIX.

Comecemos por Dürkheim; em sua obra Da Divisão do trabalho social ele procura demonstrar de que forma a crescente segmentação do trabalho, resultante da produção industrial moderna, gerava uma forma superior de solidariedade – a solidariedade orgânica- baseada na interdependência das funções sociais em função da divisão do trabalho existente naquelas sociedades industriais.

Essa forma de solidariedade se contrapunha a uma outra forma de solidariedade chamada por Dürkheim de solidariedade mecânica, encontrada em sociedades pré-capitalista, na qual a consciência coletiva exercia todo seu poder de coerção sobre os indivíduos, posto que esse tipo de solidariedade existia em função do fato dos indivíduos se identificarem por meio da família, da tradição e dos costumes permanecendo em geral independentes e autônomos em relação à divisão do trabalho social.

Segundo Dürkheim o trabalho na sociedade moderna é gerador de solidariedade em função de sua característica de tornar as pessoas dependentes umas das outras, devido às funções que exercem. Dessa forma o trabalho garante a coesão do tecido social e se havia conflitos nessas sociedades eles eram resultantes da falta de instituições e normas integradoras capazes de restituir a normalidade e pôr fim aos conflitos causados por questões morais.

Em Marx a análise da sociedade industrial parte de outro pressuposto, o trabalho na sociedade industrial gera alienação, exploração e luta de classes, produto da tomada de consciência do trabalhador que é ao mesmo tempo a forma de solução do problema. Primeiro a sociedade industrial se divide entre trabalho e capital. Segundo, essa divisão provoca outra divisão da sociedade opondo de um lado capitalistas e de outro os trabalhadores. Os primeiros detêm o capital e os meios de produção, os segundos não dispondo dos meios de produção colocam a si próprios na condição de mercadorias ao vender o único bem que possuem – sua força de trabalho. Na sociedade industrial moderna tudo se torna mercadoria inclusive o tempo, o ócio e a capacidade de produzir dos trabalhadores. Esse fator gera a exploração do trabalhador pelo capitalista e como reação à exploração explodem os conflitos próprios à luta de classes que se  desencadeia nessa sociedade.

Depois de uma apresentação de dois conceitos distintos, podemos tentar uma exercício de imaginação sociológica e pensar o trabalho numa instituição total, dentro de uma sociedade capitalista informatizada, com alto nível de desemprego como a nossa; que tenha como função principal ressocializar indivíduos que romperam com o contrato social e ali se encontram para ser (re) educados e devolvidos ao convívio social.

Qual o melhor conceito que deveríamos utilizar em nossa análise? O conceito capitalista/protestante de que o trabalho dignifica o homem, aliado à idéia de que tempo é dinheiro e de que cabeça vazia é oficina do diabo, de saída parece aplicável, sobretudo se levarmos em conta que se trata de aplicá-lo numa instituição total. Porém, segundo Weber essa idéia ganha importância com o advento do capitalismo comercial e logo em seguida o industrial onde essa concepção de trabalho vai servir à burguesia que tinha necessidade de trabalhadores dedicados, sóbrios e dóceis em relação às condições de trabalho e aos baixos salários. Ou seja, a burguesia opta pelo ethos protestante, pois segundo Weber o protestantismo é o próprio espírito do capitalismo, em benefício próprio e em detrimento dos trabalhadores.

Se a função primeira do trabalho na prisão é reeducar o detento não caberia aqui essa idéia de utilizar o trabalho em benefício de um grupo que não fosse o dos detentos. O conceito capitalista/protestante não serviria teoricamente como modelo de ressocialização porque o trabalho na prisão não poderia ser utilizado como forma de explorar o preso e enriquecer o empresário.

Por uma série de motivos já conhecidos nas discussões sociológicas sobre as prisões como instituições totais, não seríamos otimistas o suficiente para acreditar que numa prisão de segurança máxima haja espaço para pensarmos o trabalho como agregador e gerador de solidariedade orgânica como queria Dürkheim, uma vez que isso não acontece nem mesmo no mundo livre.

Optamos então pelo conceito marxista presente na Ideologia Alemã. Marx via o trabalho como fator de exploração e alienação do trabalhador e afirmava que os homens faziam a sua história, mas segundo condições que não foram dadas por eles.

O trabalho numa prisão pode até teoricamente pretender ser criador de um novo ser humano, mas dependendo das condições materiais dadas para a realização desse trabalho pode cair no outro extremo da teoria marxista e passar a empobrecer o trabalhador preso na mesma proporção que enriquece o empresário que mantém o canteiro de obras dentro do presídio.

Uma importante discussão sobre o trabalho nas prisões da França no século XIX conduzida por Foucault nos levou a outras questões que poderiam ser postas a cerca do caráter ressocializador do trabalho prisional. Primeira questão: o trabalho deverá ser visto como parte da pena, como adição à pena ou como atenuante da mesma? No século XIX ele era visto como parte da pena. Supondo que seja visto nos dias atuais como parte da pena, este trabalho deve ser remunerado ou não? Se for remunerado, deve ter valor de mercado ou apenas valor simbólico? Se tiver valor de mercado pode causar um problema de concorrência com os trabalhadores livres, que com índices tão altos de desemprego podem sentir-se tentados ao crime, que lhes possibilitaria ao menos um emprego. Se tiver valor simbólico, além de caracterizar exploração da mão-de-obra encarcerada, ainda poderia encorajar os empresários a não investir em empresas convencionais e investir em prisões industriais, haja vista que as despesas com infra-estrutura e salários seriam menores, não haveria encargos sociais e o detento é um operário que não falta, não se atrasa e teoricamente é mais disciplinado. Por outro lado, se o detento recebe um salário compatível com a sua função, então a prisão seria um prêmio e não uma forma de reparação do dano causado.

Trazendo a discussão de Foucault para os dias atuais, teríamos basicamente os mesmos problemas do século XIX. Naquele tempo o trabalho era tido como parte inseparável da pena, não podendo dele esquivar-se o detento de forma alguma. No sistema penitenciário paranaense também o trabalho do detento é obrigatório, mas acaba funcionando como atenuante desta, uma vez que, possibilita a sua redução, a cada três dias trabalhados há a redução de um dia na pena.

Na França a remuneração do trabalho prisional provocou violentas críticas, pois a prisão além da função de aparelho transformador de indivíduos, também não podia esgueirar-se de seu papel não menos importante de órgão punitivo e ao remunerar o trabalhador encarcerado este estaria sendo recompensado e não castigado. Entre os anos 1840 e 1845 houve uma violenta reação por parte dos operários livres contra as indústrias que se instalavam nas prisões; greves, protestos, campanhas de imprensa nos jornais, inclusive a destruição de manufaturas, denunciavam a desvalorização da mão-de-obra livre.

Os trabalhadores tinham medo de ser substituídos pelos prisioneiros e tornavam-se rancorosos contra estes por debitar a eles a razão da crise econômica e conseqüentemente seu desemprego ou as condições desumanas de trabalho que lhes restavam como últimas alternativas de sobrevivência.

A esses protestos os legisladores e governantes respondiam argumentando que o trabalho penal não poderia ser culpado pelo desemprego haja vista que se apresentava em escala tão pequena e não tinha propriamente fins econômicos, mas fins educativos, disciplinadores e como solução para os desvios da imaginação dos criminosos. Segundo Faucher, o trabalho realizaria uma mecanização disciplinar dos detentos, sem nenhum efeito produtivo. Cabe aqui lembrar que naquela época assim como nos dias atuais, os presos eram recrutados principalmente nas classes mais baixas: os operários e os desocupados.

Não sabemos se os operários livres daquela época se convenceram com estes argumentos ou não, o que sabemos é que no Paraná em 2003 ainda discutíamos quase os mesmos pontos, talvez sob uma outra ótica. O cenário também era de crise econômica e de altas taxas de desemprego, os trabalhadores subempregados e os desempregados também se mostravam rancorosos quanto à remuneração do preso.

Nos dias atuais parece que também não se resolveu esse impasse, segundo o Estatuto Penitenciário do Paraná em vigor em 2006, o preso condenado deve trabalhar durante o dia, na medida de suas aptidões e capacidade, o trabalho deverá ser educativo e produtivo, a jornada diária será regulamentada por lei. Nas duas únicas unidades industriais (Cascavel e Guarapuava) a jornada é de seis horas e o valor da remuneração é de 75% de um salário mínimo. Esse valor deve possibilitar ao preso indenizar a vítima ou a família desta pelos danos causados pelo crime; a aquisição de objetos de uso pessoal; ajuda à família do detento; constituição de pecúlio que lhe será entregue quando colocado em liberdade e os outros 25% serão repassados ao Fundo Penitenciário do Paraná, como taxa de administração, que deverá ser revertida para a melhoria das condições de vida na instituição prisional. Teoricamente parece justo, se esquecermos é claro, qual o valor de um salário mínimo, quanto é 75% deste valor e ainda mais uma questão: não há canteiros de trabalhos suficientes para proporcionar trabalho a todos os detentos que querem trabalhar. Mesmo prisões industriais criadas com o slogan de ressocializar através do trabalho, há trabalho para 70% da população internada.

Ainda que de maneira mais discreta do que era em 2003, há ainda uma defesa das prisões industriais como modelo de regeneração do preso, embora haja apenas duas unidades industriais e a população de maneira geral considere que a prisão deva existir como pena e não acredite nela como regeneradora.

Enfim, no Paraná como em qualquer outro estado da federação, o trabalho nas prisões nem produz elevação moral, espiritual ou da auto-estima do detento, nem lhe garante os meios materiais para que possa economizar para levar uma vida digna quando sair do sistema. O trabalho sequer lhe assegura uma formação profissional que lhe garanta ingressar no mercado de trabalho apesar do estigma com o qual sairá da prisão. Na grande maioria das vezes a mão-de-obra do interno é utilizada para suprir as necessidades do estabelecimento e não ao tratamento do interno.

Na verdade não seria o trabalho o principal fator de ressocialização, mas sim a educação para o desenvolvimento das capacidades criativas do ser humano. Mas eis aí outro problema: esse tipo de educação não seria possível dentro de uma instituição total.

  1. Conclusões

Do que pesquisamos concluímos que nossa hipótese inicial fazia sentido, há realmente e a muito tempo uma crise no sistema penitenciário. Isso é um fato universal, não é “privilégio” das prisões brasileiras e nem exceção no caso do Paraná, os problemas são os mesmos em todos os lugares, e as soluções tentadas também não são muito originais de um lugar para o outro. Porém segundo Foucault “o atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deveria ser talvez substituído pela hipótese de que a prisão conseguiu muito bem produzir a delinqüência”.

Durante o trabalho da pesquisa fomos sendo modificados em nossas posições iniciais, quando justificávamos a criminalidade através da miséria, e vimos que isso não era procedente. Também no início da pesquisa julgávamos que um pessoal bem treinado, bem aparelhado, bem remunerado, submetidos à autoridade de um diretor de presídio com uma visão humanitária ou ainda um governo interessado, pudessem realmente melhorar a prisão, reconhecemos é claro que ajuda, mas infelizmente não resolve o problema. Descobrimos até com certo desapontamento que não há como melhorar a prisão, porque ela traz desde sua raiz o peso de uma enorme contradição: tentar punir e tratar ao mesmo tempo.

Segundo Edmundo Coelho a prisão só sobrevive até os dias de hoje exatamente por ser ineficaz. Torna-se indispensável porque fracassa em sua missão específica e quanto menos cumpre seu papel de ressocializadora, mais prolifera e mais recursos consome e a cada dia surgem novas e caras alternativas para melhorar algo que já nasceu condenado a desaparecer. A prisão foi um equívoco histórico com resultados sinistros que ninguém ainda teve coragem de assumir como tal e todos tentam melhorar mesmo sabendo que isso é utopia.

Julgávamos a prisão uma instituição falida que precisava ser melhorada, agora julgamos a prisão como uma instituição falida que não tem como ser melhorada, necessitando ser substituída por outras formas de penas alternativas. As penas alternativas podem sim representar a possibilidade de uma ressocialização de fato pois são mais eficientes, humanas e educativas que tomam o ser humano como meta, sem contar o fato de que não oneram o Estado, desafogam as prisões e possibilitam realmente aquilo que a prisão se propôs a fazer desde a sua origem e nunca conseguiu cumprir: ressocializar o indivíduo infrator e devolvê-lo como um cidadão à sociedade.

Pode parecer estranho para alguns, mas apesar da luta pelo fim da pena de prisão ter iniciado junto com o surgimento das prisões, ainda vemos o Estado investir cada vez mais para tornar a prisão um lugar capaz de vigiar, punir e corrigir os que infringem as normas do grupo. Quanto menos eficazes, mais proliferam e mais recursos consomem a título de serem melhoradas. Assim, novas e modernas prisões nascem da falência das velhas instituições, como é o caso das prisões industrias que consumiram muitos recursos, mas logo se tornam obsoletas também, para dar lugar a “idéias revolucionárias”, que, no entanto já foram tentadas em outros lugares, em épocas remotas e pouco ou nenhum resultado mostraram.

Afinal, a quem beneficiaria a prisão? A quem tem a certeza de que por mais que venha a transgredir a lei, dificilmente irá para a prisão? A quem tem a garantia de que os indivíduos desviantes não serão mais uma ameaça a sua vida e principalmente a seu patrimônio, pois estarão depositados na prisão, amontoados como o lixo humano que precisa ser recolhido aos “aterros sanitários” que são os presídios? A quem pode utilizar a mão de obra servil dos detentos sem pagar direitos trabalhistas? A quem sonha com o “mercado da punição” que volta e meia surge nas propostas de privatização das prisões para desonerar os cofres públicos? A quem se esconde atrás da bandeira da “boa segurança pública” para se eleger a cargos públicos? Quanto por cento da sociedade representa o grupo que pode se beneficiar com a pena de prisão? Será um número tão significativo de cidadãos que justifique a manutenção da prisão a custa dos impostos de todos e da criminalização de determinadas classes sociais? Não temos as respostas, mas não podemos deixar calar as perguntas.

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A violência legítima do Estado se assenta sobre esta última justificação.

Coelho, Edmundo C. A oficina do diabo. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1987, p.11.

Sykes, G.The society of captives – a study of a maximum security prison. New Jersey/EUA: Princenton University Press. 1999)

Thompson, Augusto. A questão penitenciária. Op.cit. 1976, p. 49

Karl Marx. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, Apud. K. Marx, F.Engels. História. Organizador Florestan Fernandes 2ª edição. São Paulo: Ática, 1984 (Coleção Grandes Cientistas Sociais nº. 36). P. 150.

Foucault, M. Vigiar e Punir. 5ª ed.Petrópolis: Vozes, 1987. P. 214.

Foucault, M. Vigiar e punir. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987. P. 207.

Decca, Edgar. O nascimento das fábricas. 9ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. “(…) a transformação positiva do significado verbal da própria palavra trabalho, que até a época Moderna sempre foi sinônimo de penalização e de cansaços insuportáveis, de dor e de esforço extremo, de tal modo que a sua origem só poderia estar ligada a um estado extremo de miséria e pobreza”.

Dürkheim, E. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Ed. Abril, 1973. Págs.337-359.

O termo Imaginação Sociológica foi cunhado por Wright Mills e o tomamos emprestado de sua obra de mesmo nome editada pela Zahar em 1982.

“Um primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, a saber que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de fazer a história. Mas, para viver é necessário antes de mais nada comer, beber, ter um teto onde se abrigar, vestir-se etc. O primeiro fato histórico é pois a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades”. K.Marx; Engels F. A Ideologia Alemã. 3ª ed.Lisboa: Ed. Presença e Martins Fontes, s/d.

“O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz desnudez para o trabalhador… produz palácios, mas cavernas pra o trabalhador… quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir…” Karl Marx. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, Apud. K. Marx, F.Engels. História. Organizador Florestan Fernandes 2ª edição. São Paulo: Ática, 1984 (Coleção Grandes Cientistas Sociais nº. 36). P. 152.

Léon Faucher foi primeiro ministro da França no ano de 1851 e segundo ele “o trabalho é a providência dos povos modernos; serve lhes como moral, preenche o vazio das crenças e passa a ser o princípio de todo o bem. O trabalho deveria ser a religião das prisões. A uma sociedade máquina, seriam necessários meios de reforma puramente mecânicos.” in Foucault, M. Vigiar e Punir. op.cit.p. 216.

Disponível para consulta no site http://www.pr.gov.br/depen.

Sobre isso Goffman afirma que no que se chama de laborterapia os internos recebem tarefas geralmente inferiores como lavar pratos, banheiros, trabalhar na lavanderia, servir mesas. Essas tarefas, no entanto são apresentadas ao interno e à sociedade como parte integrante do processo de reinserção social. Goffman. E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.

Foucault, M. Vigiar e Punir. Op.cit. P. 244.