A percepção da cidadania no Brasil: entre a igualdade e a liberdade

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 02 – Janeiro/Junho 2006

A percepção da cidadania no Brasil: entre a igualdade e a liberdade

Érica Maia C. Arruda – Bacharel em Direito pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), Mestranda em Bens Culturais e Projetos Sociais pelo CPDOC/FGV (Centro de Produção e Documentação da Fundação Getúlio Vargas), Professora Auxiliar da Univercidade (Centro Universitário da Cidade), Professora Contratada da UFF (Universidade Federal Fluminense) e Coordenadora da Comissão a OAB/RJ vai à Escola.

Resumo: O texto procura analisar a mais recente pesquisa nacional em torno das atitudes, percepções e opiniões sobre a desigualdade e a cidadania no Brasil. Será feito um contraponto entre os resultados obtidos na pesquisa e as teorias sociais sobre a igualdade e a liberdade, desenvolvidas por filósofos e cientistas sociais em diferentes momentos da evolução da humanidade.

Sumário: 1. Introdução; 2. Survey ISSP/IUPERJ; 3. Libertários e igualitários; 4. Conclusão; 5. Bibliografia.

Palavras-chave: Percepção da cidadania – teorias sociológicas – igualdade e liberdade – desigualdade.

  1. Introdução

O texto tem como objetivo analisar a percepção da cidadania no Brasil, relacionando os resultados de pesquisa realizada e descrita por Scalon[1], com os teóricos clássicos do liberalismo e do igualitarismo.

A pesquisa foi fruto do survey realizado pelo ISSP/IUPERJ[2] no território nacional entre 28 de abril e 4 de maio de 2001. Foram feitas duas mil entrevistas em 195 municípios, incluindo áreas urbanas e rurais. A amostra é representativa da população brasileira com idade igual ou superior a 18 anos. O critério de seleção foi probabilístico até o nível domiciliar, e para a seleção dos entrevistados foram adotadas cotas de sexo, idade, escolaridade e renda. O resultado da pesquisa deu origem ao livro Imagens da Desigualdade, organizado por Celi Scalon[3].

  1. Survey ISSP/IUPERJ

Os resultados da pesquisa serão analisados sob uma ótica sociológica e por isso impressionam em alguns pontos, mas são absolutamente previsíveis em outros.

Observou-se que a desigualdade é a principal característica do brasileiro, apresentando altos índices em qualquer setor que se vá analisar, seja na renda, educação, emprego, classes sociais ou cidadania. Em razão disso, o survey apontou as causas subjetivas das desigualdades entre os brasileiros, ou seja, na visão dos brasileiros quais fatores contribuem para a manutenção ou superação das desigualdades sociais. Também teve a pesquisa o objetivo de mostrar em que medida os brasileiros se identificam com a solução do problema da desigualdade e qual sua atitude diante dela, buscando avaliar o grau de participação da sociedade civil nesse processo.

Scalon constatou no survey que a desigualdade social está presente no discurso geral dos entrevistados (96% dos brasileiros a reconhecem), assim como a necessidade de combater a pobreza e a fome. Também constatou que a sociedade real está muito distante da sociedade idealizada e almejada pelos entrevistados, quando analisa os dados referentes à mobilidade social futura, isto é, em que posição social os entrevistados têm a esperança de estar em 10 (dez) anos. Não se podendo olvidar que os brasileiros têm esperança de um futuro melhor para si e para o país.

Outra questão relacionada à mobilidade social estava relacionada aos principais fatores que influem na ascensão social: origem social, educação, qualificação/treinamento profissional, redes sociais ou sorte. Os resultados surpreendem pela elevada proporção de respostas que afirmaram ser a sorte um fator preponderante nas oportunidades de ascender socialmente, ficando bem abaixo a qualificação e inteligência e após os esforços pessoais. Também se constatou a importância das redes sociais para a ascensão social no Brasil, a relevância do compadrio e do afilhadismo constitui traço marcante da sociedade brasileira. Conhecer “gente importante” é um grande passo não só para ascensão, mas também para a inserção social em nosso país, mesmo que o indivíduo não seja originário de uma família rica. Na linguagem popular se diria que para subir na vida é melhor conhecer pessoas bem colocadas do que nascer em “berço de ouro”.

A participação e a cultura cívica também foram colocadas à prova na pesquisa, já que a pergunta sobre quem poderia acabar com as desigualdades sociais no Brasil teve como resposta majoritária, o Estado. Pode-se concluir que apesar dos brasileiros acreditarem que a ação coletiva tem um papel importante para acabar com as desigualdades, eles próprios não se sentem capazes de acabar com elas.

Já Cardoso tratou na pesquisa do ponto fundamental acerca da desigualdade social, que foi a avaliação sobre a preferência dos entrevistados em razão da igualdade ou da liberdade. Também trata da legitimidade ou não da desigualdade e dos critérios de justiça distributiva considerados mais importantes para os brasileiros.

As desigualdades no Brasil são aquelas estruturantes da ordem capitalista, mas o que distingue a realidade nacional da de outros países é a intensidade das nossas desigualdades. Na ordem capitalista a desigualdade é condição mesma de existência e funcionamento das estruturas sociais de produção, distribuição e consumo, e isso tanto para os apologistas quanto para os críticos do capitalismo. E, de fato, se a escassez é a mãe da teoria econômica na tradição neoclássica, a desigualdade é a fonte do progresso e do crescimento, ao gerar pressões por aumento de produtividade decorrentes da demanda geral por bem-estar. “Para o marxismo, a desigualdade na distribuição dos recursos é uma necessidade intrínseca ao sistema”[4], como também observou Bobbio[5].

A persistência das desigualdades no Brasil, resistentes a políticas públicas de diversos governos se justifica pelo seu grau de legitimação entre os brasileiros. O survey demonstra que ricos e pobres se sentem esperançosos perante o futuro do país, e que isso por si só seria uma base sólida para a legitimação de uma ordem reconhecidamente desigual e injusta por ambos. Cardoso pretende demonstrar que a legitimação da ordem social desigual depende de elementos de justificação presentes na cultura, na tradição, na razão e nos parâmetros de justiça adotados por aquela sociedade. Tocqueville[6] aponta como uma das causas de legitimação de uma ordem desigual, a “ordem natural do mundo”, trazendo o exemplo da França pré-revolucionária, na qual uma ordem desigual era aceita como justa, desde que cada parte cumprisse suas obrigações sociais (camponeses deveriam pagar impostos e nobres garantir que inimigos, fome e doenças ficassem longe), e a partir do momento em que os nobres não mais cumpriram com suas obrigações, a ordem tornou-se injusta e ilegítima culminando na Revolução de 1789. Ocorreu aqui o que Tocqueville chamou de rompimento do padrão de justificação da ordem anterior.

A modernidade traz como característica a justificação racional dos ordenamentos sociais, sendo mais difícil a partir daí a justificação das desigualdades por forças divinas ou pela natureza do mundo. Na modernidade, a justificação das desigualdades e a legitimação da ordem só serão possíveis com a adoção de algum critério de justiça. Sociedades desiguais, como as apresentadas por Cardoso podem se legitimar e serem taxadas de justas em razão do critério de justiça escolhido, e para Rawls[7] a escolha deve se dar sob o “véu de ignorância”. Os critérios de justiça podem ser a igualdade de oportunidades, a igualdade no acesso a “bens de civilização” (atendimento às necessidades básicas) e a abertura da mobilidade social a todos; especialmente aos mais pobres. Cardoso considera o atendimento das necessidades básicas ou acesso aos bens de civilização pelos mais pobres como uma das maiores causas de legitimação de uma ordem social desigual e injusta, e quanto mais essas expectativas forem frustradas no futuro, maiores as possibilidades de deslegitimação da ordem vigente. Essa é tipicamente uma ordem capitalista.

A reiteração das desigualdades em sociedades de baixa mobilidade social não levam à deslegitimação da ordem, mas a outros efeitos como apatia, fatalismo ou a fuga mística, afirma ainda Cardoso. Nos casos de desigualdade e pobreza extrema, os indivíduos se adaptam à situação de desigualdade e não desenvolvem atitudes reflexivas e combativas contra as causas ou efeitos de legitimação da ordem injusta.

O autor ainda afirma que a desigualdade na distribuição de renda não é um fator de deslegitimação da ordem social, não é visto como injusto, já que as barreiras da necessidade são transpostas. O critério da necessidade, que será analisado em Rawls e Bobbio, permitirá que o maior número de pessoas satisfaça plenamente os mínimos que elas mesmas estabeleceram, ou foram levadas a estabelecer como necessidades de uma vida digna, mesmo que distribuídos de forma não-igualitária entre os membros da sociedade. Dessa forma, legitima-se uma ordem desigual, pela sensação cada vez maior de que embora desigual, essa ordem não é injusta. Cardoso chama a atenção, como Bobbio, de que a necessidade como critério de justiça de uma sociedade, não traz o padrão de necessidade de todos, mas dos mais ricos.

Para Cardoso a percepção da desigualdade não gerará um sentimento de injustiça a ponto de se transformar em elemento de deslegitimação da ordem, desde que haja uma condição relativamente eqüitativa em outra dimensão relevante da ordem social, como por exemplo, a desigualdade de renda vista como tolerável na medida em que ocorra a igual distribuição de oportunidades de acesso aos “bens de civilização”. A esperança é um elemento essencial de justificação das desigualdades da ordem social brasileira, uma vez que pobres e ricos aspiram o acesso aos “bens civilizatórios” daqueles mais ricos ou menos pobres.

A deslegitimação de uma ordem social pode ocorrer ao longo do tempo, quando os pobres percebem que a sociedade não cumpre com sua promessa de acesso mínimo e distribuição eqüitativa do bem-estar civilizatório. A partir daí, a ordem social passa a ser vista não apenas como ilegítima, mas também como injusta. Em situações como essa, a desigualdade e pobreza se aprofundam, fazendo surgir indivíduos em situação de miserabilidade. A partir do momento em que a exclusão e a iniqüidade se tornam persistentes, o acesso aos bens de civilização pelos ricos são vistos como privilégios e haverá uma explosão do sentido de injustiça. Tal explosão traz como consequência a contestação da ordem pelos excluídos, materializada através de uma revolução, de protestos mais ou menos organizados, ou da violência difusa no cotidiano. E qualquer que seja a forma de materialização, seu objetivo é despertar nos ricos um sentimento de injustiça semelhante aos dos pobres. Tal não ocorre no Brasil, pois o resultado do survey demonstrou que pobres e ricos têm a mesma percepção das desigualdades, não sendo necessário o acesso às formas de materialização.

  1. Libertários e igualitários

Os pensadores liberais ao construírem suas teorias sobre a sociedade, se utilizaram dos conceitos de igualdade e liberdade, sendo a igualdade concebida como uma condição de realização da liberdade. Jean Jacques Rousseau[8], pai do Igualitarismo, constrói um estado natural ficcional, com desigualdades naturais e positivas entre os homens. O homem estará tocado pela razão a partir do momento em que assina um pacto ou contrato social virtual, para acabar com as desigualdades naturais, construindo a sociedade civil. O contrato social contém os elementos para solucionar a desigualdade dos homens e do mundo humano: as leis e a democracia representativa. Para o autor, a propriedade foi a causa originária da desigualdade entre os homens, e da passagem da liberdade para a servidão humana. Rousseau dá a mesma solução de Mill[9] para a diversidade humana: a participação política. O pai do Igualitarismo defende que um povo só será livre quando tiver condições de elaborar suas leis num clima de igualdade política, e nesse caso representaria a submissão à sua própria vontade. Para Rousseau o pressuposto da liberdade é a igualdade, pelo menos política.

Já o liberal Stuart Mill traz o tema do liberalismo democrático, fazendo surgir um novo ideal liberal, que tem na desigualdade entre a massa operária e a elite a sua motivação. A sociedade de Mill é a sociedade da diferença e do trabalho. O autor explica que os homens têm diferenças originárias, e que elas são o pressuposto para a busca da igualdade social, e acrescenta que a sociedade ganha mais respeitando e tolerando a diferença do que tentando eliminá-la. Os liberais querem garantir a diversidade para justificar a concorrência, especialmente a econômica, abrindo as portas para o capitalismo. Entende ainda que a igualdade social também será alcançada por meio da igualdade de condições, como a educação, que deverá ser dada para todos de forma igual, mas não sob o monopólio do Estado.

O tema da igualdade de condições é o cerne da teoria da justiça de John Rawls, considerado um neocontratualista que retoma o tema da igualdade e da vontade geral de Rousseau. Rawls constrói o conceito de “justiça com equidade”, que conjuga o ideal de igualdade e liberdade presentes no senso comum. O pressuposto da teoria da justiça concebida por Rawls é a idéia de “posição original”, considerada “a situação hipotética” na qual as partes contratantes (representando pessoas racionais e morais, isto é, livres e iguais) escolhem, sob um véu de ignorância, os princípios de justiça que devem governar a estrutura básica da sociedade. Esta, por sua vez, traduz o modo pelo qual as instituições sociais, econômicas e políticas se estruturam sistemicamente para atribuir direitos e deveres aos cidadãos, determinando suas possíveis formas de vida (projetos e metas individuais, idéias do bem, senso de justiça). A sociedade bem-ordenada é aquela que é efetivamente regulada por uma concepção política e pública de justiça, na qual cada indivíduo aceita – e sabe que todos os seus concidadãos também aceitam – os mesmos princípios de justiça e, portanto, os termos eqüitativos da cooperação social, assim como as instituições políticas, sociais e econômicas, que são por todos publicamente reconhecidas como justas. “Rawls admite ser este um conceito extremamente idealizado, por isso recorre à idéia de equilíbrio reflexivo a fim de calibrar a cultura política, o ethos social e o modus vivendi de uma sociedade concreta com esse ideal normativo, que inclusive, modela também a concepção de pessoa moral”.

A “posição original” será alcançada através da conjugação de 2 (dois) princípios de justiça, tornando possível, assim, a “distribuição eqüitativa de bens primários”, isto é, de bens básicos para todas as pessoas, independentemente de seus projetos pessoais de vida ou de suas concepções do bem. Percebe-se aqui a opção de Rawls pelo critério de justiça de iguais oportunidades para todos. Para Rawls os mais fundamentais de todos os bens primários são o auto-respeito e a auto-estima, além das liberdades básicas, rendas e direitos a recursos sociais como a educação e a saúde. Cardoso traz a mesma idéia ao cunhar o conceito de “bens de civilização”, que seriam aqueles que transcenderiam o consumo de mercadorias, como a auto-realização pessoal, a autonomia para escolher o próprio destino, a liberdade, a fruição estética e o lazer. Assim como em Rawls, o autor analisa a sociedade de tipo 1 intitulada “o céu do liberalismo”, na qual a ordem social será legitimada pelo fato de que tais bens sejam efetivamente distribuídos entre ricos e pobres, sendo irrelevante que essa sociedade seja não-igualitária pela desigualdade na distribuição de renda, ainda assim ela será justa. Nos interessa aqui o segundo princípio de justiça cunhado por Rawls, já que se refere à justiça distributiva. O segundo princípio é descrito como: “As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: (a) devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e (b) devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade”. O segundo princípio regula vantagens sociais e econômicas para os membros de uma sociedade, já que ordem social deve assegurar para todos os seus membros riquezas e oportunidades de educação e de emprego iguais; e deve fazê-lo, pois todos possuem os mesmos direitos e deveres. E se a desigualdade de renda, por exemplo, ocorrer, ela será justa e eqüitativa na medida em que promove benefícios para todos, até mesmo para os menos privilegiados. Daí a conclusão de Rawls de que a distribuição dos bens sociais não precisa ser igual, já que o igualitarismo social não é o fim da sociedade capitalista, mas sim o melhor resultado possível para todos os membros da sociedade, de acordo com os mais tradicionais ideais utilitaristas.

A democracia como consequência da modernidade é pela primeira vez discutida por Alexis Tocqueville. O dilema tocqueviliano se traduz na harmonia entre os 2 (dois) ideais do mundo moderno, que parecem tão contraditórios à primeira vista, a igualdade e a liberdade. A base das reflexões de Tocqueville tem início com a descoberta de que os EUA conciliam os ideais de liberdade e igualdade (lá não se puseram valorativamente como contraditórios) pela sua peculiaridade de existir um fato gerador de igualdade: a igualdade de condições. Aqui também se utilizou o critério de justiça “igualdade de condições”. Na América não há inicialmente hierarquia e privilégios, é a colônia dos iguais na qual o elemento propulsor é a religião puritana. A democracia para Tocqueville não é um privilégio dos EUA, já que o aumento da igualdade de condições conduziria ao processo democrático em qualquer sociedade, mas para que o processo democrático se realize, é necessária a ação política do povo. O drama tocqueviliano de preservar a liberdade na igualdade será solucionado, em última instância, através da prática política dos indivíduos e na participação na coisa pública. Tal será incentivada com a criação de associações, que servirão como uma ponte entre o Estado e os cidadãos. Entende que a criação de instituições autônomas servirá para que os cidadãos se unam para defender seus direitos, servindo tais instituições para a maior participação por parte dos indivíduos nos destinos da coletividade. Tocqueville entende que o associativismo é o recurso mais vital para relacionar indivíduo e Estado.

Norberto Bobbio como cientista político do nosso século, ainda tenta solucionar a “aparente dicotomia” entre igualdade e liberdade, deixando claro que são termos muito diferentes, tanto conceitual, quanto axiologicamente. A igualdade é considerada como um bem ou um fim para os componentes singulares de uma totalidade, na medida em que esses entes se encontrem num determinado tipo de relação entre si. Enquanto a liberdade é em geral um valor para o homem como indivíduo (razão pela qual as teorias políticas defensoras da liberdade, ou seja, liberais ou libertárias, são doutrinas individualistas, tendentes a ver na sociedade mais um agregado de indivíduos do que uma totalidade), a igualdade é um valor para o homem como ser genérico, ou seja, como um ente pertencente a uma determinada classe, que é precisamente a humanidade (razão pela qual as teorias políticas que propugnam a igualdade, ou igualitárias, tendem a ver na sociedade uma totalidade, sendo necessário considerar o tipo de relações que existe ou deve ser instituído entre as diversas partes do todo). “A igualdade pressupõe, para sua aplicação, a presença de uma pluralidade de entes,cabendo estabelecer que tipo de relação existe entre eles”. Para o autor a igualdade é um conceito indeterminado, já que somos iguais em relação a alguma coisa; e a liberdade seria um valor ou qualidade, já que somos ou não somos livres. Enquanto a liberdade é essencialmente diversa da igualdade, a justiça é tida como sinônimo da igualdade. Justiça e igualdade são consideradas equivalentes pelo senso comum por significarem equidade, equilíbrio e harmonia das partes com o todo.

Bobbio entende que a instauração de uma certa igualdade entre os indivíduos e o respeito à legalidade, são as duas condições para a instituição e conservação da ordem ou da harmonia do todo. Essas duas condições são ambas necessárias para realizar a justiça. “Uma relação de igualdade é uma meta desejável na medida em que é considerada justa, onde, por justa, se entende que tal relação tem a ver, de algum modo, com um ideal de harmonia das partes de um todo”. O autor aponta alguns critérios de justiça para distinguir uma igualdade justa de uma injusta, como o critério da necessidade, do mérito, do talento, da capacidade, do esforço, do trabalho, do resultado e do posto. E acrescenta que a escolha do critério ou critérios será determinada pelas diversas concepções gerais da ordem social, sendo impossível a igualdade de todos em razão do critério ou critérios escolhidos. Por isso, a relevância das diferenças é uma opção valorativa daquela sociedade, e que varia de um período histórico para outro.

Bobbio considera o critério ou princípio da igualdade de oportunidades, ou de chances, ou de pontos de partida, um dos pilares do Estado Democrático Liberal, juntamente com o princípio da igualdade perante a lei. Para o autor, o princípio de igualdade de oportunidades se concretiza através da própria vida em sociedade, considerada uma grande competição para a obtenção de bens escassos. E colocar todos os membros de uma sociedade em condições de participar da competição, é colocá-los na mesma posição original, acabando com as desigualdades de nascimento, como a falta ou excesso de inteligência, por exemplo. Afirma que cada sociedade constrói suas posições originárias, que são as condições sociais e materiais que permitem considerar os concorrentes como iguais, como a educação e a saúde para todos os membros da sociedade, independentemente das condições individuais de nascimento. Não podemos olvidar que a mais significativa diferença de nascimento é a de renda, e que nesse sentido o autor defende o favorecimento dos mais pobres em detrimento dos mais ricos, o que significa “introduzir artificialmente, ou imperativamente, descriminações que de outro modo não existiriam, como ocorre, de resto, em certas competições esportivas, nas quais se assegura aos concorrentes menos experientes uma certa vantagem em relação aos mais experientes. Desse modo, uma desigualdade torna-se um instrumento de igualdade pelo simples motivo de que corrige uma desigualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da equiparação de duas desigualdades”[10].

Outra questão que se coloca na competição social é: em busca do que os indivíduos concorrem? Há por isso a exigência de igualdade em relação aos bens materiais almejados, também conhecida como igualdade econômica ou igualdade de fato, real ou substancial para que uma sociedade seja considerada justa. Busca-se aquilo que é virtualmente mais significativo para toda a coletividade, ou para a maioria dos membros da sociedade. Os bens materiais estão relacionados às necessidades que eles tendem a satisfazer. Mas como determinar quais necessidades serão dignas de satisfação? Qual o critério correto para distinguir as necessidades dignas ou não de satisfação? Os critérios para medir o grau de necessidade dos indivíduos podem ser a utilidade social, natureza ou artificialidade, espontaneidade ou provocação; mas para Bobbio tais critérios são vagos e indeterminados, não esclarecendo se as necessidades são coletivas, da maioria, de uma minoria, ou individuais. A máxima a cada um segundo suas necessidades foi cunhada por Marx como o lema da sociedade comunista, já que a igualdade de necessidades foi considerada o mais igualitário critério para caracterizar as desigualdades como justas ou injustas. Bobbio entende que em relação à necessidade, os homens são mais iguais entre si e menos diversos do que em relação a qualquer outro critério como talento, capacidade, esforço, trabalho, resultado ou posto. E conclui que a igualdade será medida de acordo com o critério com base no qual os bens materiais são distribuídos, e que esse deve ser o mais igualitário possível.

O fundamento da teoria do igualitarismo de Bobbio, assim como todas as doutrinas igualitárias, partem da desigualdade humana em algum aspecto essencial, como em Marx, que construiu sua teoria comunista/socialista com o fundamento da desigualdade entre classes. Nas doutrinas igualitárias há a valorização das desigualdades para alcançar a igualdade dos homens no todo ou em parte.

É importante tratar do liberalismo como doutrina social, uma vez que o Brasil é um país capitalista, e que adotou a partir de 1990 o projeto neoliberal de desenvolvimento econômico. O liberalismo é amplamente considerado como o oposto do igualitarismo, mas Bobbio defende a complementaridade, mesmo que parcial entre as teorias, afirmando que a liberdade e a igualdade são bens indivisíveis e solidários entre si, já que os objetivos liberais e do Estado liberal complementam os igualitaristas e do Estado igualitário, e vice-versa. O liberalismo admite a igualdade dos homens em relação a alguns direitos, chamados fundamentais, e entre eles estão o direito de possuir e acumular bens econômicos, e o direito de empreender operações econômicas. Esses últimos direitos ou liberdades são a origem das desigualdades sociais nas sociedades capitalistas, por isso serem as doutrinas liberais acusadas de não-igualitárias e contrárias ao igualitarismo. Bobbio aponta o nascimento dos direitos sociais como uma crítica das doutrinas igualitárias contra a concepção e a prática liberal do Estado. Os liberais sempre acusaram os igualitários de sacrificar a liberdade individual, que se alimenta da diversidade das capacidades e das aptidões, à uniformidade e ao nivelamento impostos pela necessidade de fazer com que os indivíduos associados sejam tão semelhantes quanto possível: na tradição do pensamento liberal, o igualitarismo torna-se sinônimo de achatamento das aspirações, de compressão forçada dos talentos, de nivelamento improdutivo das forças motrizes da sociedade. “Liberalismo e igualitarismo deitam suas raízes em concepções da sociedade profundamente diversas: individualista, conflitualista e pluralista, no caso do liberalismo; totalizante, harmônica e monista, no caso do igualitarismo. Para o liberal, a finalidade principal é a expansão da personalidade individual, abstratamente considerada como um valor em si; para o igualitário essa finalidade é o desenvolvimento harmonioso da comunidade. E diversos são também os modos de conceber a natureza e as tarefas do Estado: limitado e garantista, o Estado liberal; intervencionista e dirigista, o Estado dos igualitários”[11].

O resultado do survey ISSP/IUPERJ demonstra que os brasileiros têm ambas as concepções igualitarista e liberal da sociedade, mas prevalece o modelo igualitarista, no qual o Estado é interventor e atua na proteção e promoção dos direitos fundamentais e sociais dos indivíduos.

  1. Conclusão

Cardoso conclui que para os brasileiros o problema da percepção da desigualdade está diretamente associado ao da justiça. Mas apesar do Brasil ser uma sociedade na qual a desigualdade é amplamente reconhecida por ricos e pobres, não há a deslegitimação do processo distributivo desigual, pois a percepção de que a sociedade é injusta e desigual gera apatia ou resignação dos mais pobres.

Os resultados do survey também permitiram a constatação de que os brasileiros pobres e ricos reconhecem os mesmos critérios de justiça distributiva para ascensão social e acesso aos “bens de civilização”. Dentre os critérios de justiça levantados pela pesquisa está a capacidade e os méritos pessoais; a qual o entrevistado poderia optar entre os subcritérios: a pessoa fazer bem o trabalho, a pessoa ser dedicada ao emprego, as responsabilidades que o trabalho exige, investimentos pessoais em educação e treinamentos e se ocupa cargos de chefia. O primeiro e o segundo critérios são nitidamente igualitários, já que compatíveis com qualquer função, e os dois últimos são desiguais pela impossibilidade de fruição por pessoas mais pobres As respostas foram equilibradas entre ricos e pobres, não havendo preferência em razão de um ou outro critério. Outro critério analisado foi a necessidade, isto é, quais são as necessidades básicas de sobrevivência dos brasileiros. Aqui o resultado foi o mesmo para pobres e ricos, com um cunho nitidamente igualitário. “As pessoas devem ser recompensadas tanto por suas habilidades e investimentos, quanto por sua dedicação ao trabalho e a necessidade de suas famílias. Estado e mercado, nessa concepção, não são agentes distributivos antagônicos, mas sim complementares”[12]. Uma importante discrepância constatada por Cardoso foi entre os critérios de justiça e os julgamentos de justiça, que deveriam ser idênticos, mas são opostos. Os julgamentos de justiça prevalentes consideram que a ascensão social não ocorrerá em face da igualdade de oportunidades, mas sim conhecendo as pessoas certas, e que não são acessíveis a todos. Também surpreendem os julgamentos práticos de justiça como equidade, já que os ricos são os que mais julgam injusta a sociedade brasileira no que diz respeito à distribuição de recompensas. Tal constatação faz perceber a origem de um certo fatalismo nos mais pobres quanto à possibilidade de melhora de sua renda e condição de vida, mas esse fatalismo não seria gerado pela inércia de sua condição como pobre, mas da natureza do mundo. “O julgamento sobre o próprio rendimento é tudo menos resignado. Pobres e ricos não se julgam adequadamente recompensados, seja por merecimento, seja por justiça. Essa combinação de resultados é bastante interessante, já que pode dar sustentação a projetos de melhoria de vida e a conclusões sobre oportunidades pessoais de mobilidade futura que podem retirar o peso deslegitimador da desigualdade atual da condição material. Esta pode estar, por exemplo, sendo vista como passageira, fruto de circunstâncias conjunturais que não contaminam os julgamentos duradouros sobre as chances futuras”[13].

Sobre a percepção das desigualdades pelos brasileiros, Cardoso sustenta que está estreitamente ligada ao sentido de injustiça, e que quanto maior a sensação de injustiça, maior a percepção da desigualdade e vice-versa. Mas o resultado da pesquisa mostrou que no Brasil ocorre algo diferente, pois, é o país de maior desigualdade percebida, quando comparado a outros, mas os ricos percebem mais intensamente as desigualdades do que os pobres, o que não ocorre em nenhum outro país. Os julgamentos de justiça têm estreita relação com a percepção da desigualdade, mas não com a avaliação da mobilidade pessoal recente. Parece absurdo, mas os de melhor trajetória julgam pior a sociedade. “Os pobres são muito menos propensos ao julgamento de injustiça feito pelos ricos. Para eles, a sociedade é relativamente mais eqüitativa. Esse achado é desconcertante, ademais, porque são os pobres os que mais consideram sua renda muito inferior ao justo e ao merecido. Tudo, na situação percebida dos pobres, conspira para que eles vejam como injusta a sociedade brasileira, e em proporção superior aos ricos. Mas isso não ocorre”[14].

As expectativas de melhoria no futuro têm um efeito decisivo sobre o julgamento de justiça referente às desigualdades sociais, já que o modelo de sociedade à qual o Brasil se aproxima, teria a deslegitimação da ordem injusta como a consequência mais certa à medida que a pobreza persiste no tempo. Apesar da sociedade brasileira ser vista como extremamente injusta e desigual, está aberta à mobilidade no futuro. Cardoso entende que a esperança quanto ao futuro é a causa legitimadora das desigualdades no Brasil, fazendo com que sejam percebidas como justas. “A esperança está posta no futuro do país, algo que, está para além da capacidade individual de intervir decisivamente no próprio destino. A esperança repousa na crença, na possibilidade de uma ação efetiva por parte daqueles que podem interferir no curso das coisas”[15].

A constatação leva à outra conclusão da pesquisa: que os brasileiros transferem para um outro agente, que não eles mesmos, a responsabilidade em fazer alguma coisa. O brasileiro crê na força política reparadora, e esse é para Cardoso o aspecto essencial da matriz de legitimação da ordem social iníqua. E tal conclusão leva à outra ainda mais grave, o reconhecimento da impotência da cidadania diante dos problemas nacionais, impedindo que os brasileiros, especialmente os mais pobres, contestem e deslegitimem a ordem social desigual brasileira.

A postura dos brasileiros perante a cidadania é reflexo de sua formação histórica, já que a construção da cidadania no Brasil ocorreu com a concessão pelos governantes de direitos à população, e que eram vistos não como uma conquista, mas como um favor em troca de gratidão e lealdade partidária. “A cidadania brasileira foi imposta, e suas consequências repercutem até os dias de hoje. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicativa”[16].

A cidadania realmente ativa e participativa só será alcançada quando os brasileiros tomarem conhecimento de seus direitos. A educação para a cidadania e direitos humanos é um dos meios de assegurar aos cidadãos o conhecimento dos direitos fundamentais previstos na Constituição, permitindo a todos os brasileiros organizarem-se para lutar por eles ativamente.

  1. Bibliografia

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CARDOSO, Adalberto Moreira. Desigualdade, injustiça e legitimidade: uma investigação empírica sobre aspectos da sociabilidade brasileira. In: Imagens da Desigualdade.Scalon, Celi (org.). Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/UCAM. 2004.

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SCALON, Celi. O que os brasileiros pensam das desigualdades sociais? In: Imagens da Desigualdade.Scalon, Celi (org.). Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/UCAM. 2004.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América: sentimentos e opiniões. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[1] SCALON, Celi. O que os brasileiros pensam das desigualdades sociais? In: Imagens da Desigualdade. Scalon, Celi (org.). Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/UCAM. 2004.

[2] O Iuperj faz parte do ISSP – International Social Survey Programme – programa de colaboração internacional que tem como objetivo realizar surveys anuais sobre diferentes temas das Ciências Sociais. O survey visa promover análises comparativas integrando os estudos nacionais a uma perspectiva internacional e intercultural.

[3] A análise se limitará aos artigos primeiro e quarto do livro Imagens da Desigualdade, intitulados e escritos respectivamente em: “O que os brasileiros pensam das desigualdades sociais?”, de Celi Scalon e “Desigualdade, injustiça e legitimidade: uma investigação empírica sobre aspectos da sociabilidade brasileira”, de Adalberto Moreira Cardoso.

[4] CARDOSO, Adalberto Moreira. Desigualdade, injustiça e legitimidade: uma investigação empírica sobre aspectos da sociabilidade brasileira. In: Imagens da Desigualdade. Scalon, Celi (org.). Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/UCAM. 2004, p.116.

[5] BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

[6] TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América: sentimentos e opiniões. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000

[7] OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

[8] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural: Victor Civita, 1973.

[9] MILL, John Stuart. A Liberdade; Utilitarismo. [Introdução: 5-26; Aplicações: 143-174]. Trad. Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[10] BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Op. cit., p. 32.

[11] Idem, Ibidem, p. 42.

[12] CARDOSO, Adalberto Moreira. Desigualdade, injustiça e legitimidade: uma investigação empírica sobre aspectos da sociabilidade brasileira. Op. cit., p. 153.

[13] Idem, Ibidem, p. 159-160.

[14] Idem, Ibidem, p. 168.

[15] Idem, Ibidem, p. 170.

[16] Idem, Ibidem, p. 126.