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A escola dos Glosadores (o início da Ciência do Direito)
Guilherme Camargo Massaú – Mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra; Especialista em Ciência Penal pela PUCRS e Bacharel em Direito.
E-mail: uassam@bol.com.br
Este artigo foi originalmente publicado com o título “A Fé e o Direito: a Escola dos Glosadores (o início da ciência do Direito)”, na Razão e Fé: Revista Inter e Transdisciplinar de Teologia, Filosofia e Bioética. v. 8, n. 2 – Julho – Dezembro/2006. Pelotas: Educat.
Resumo: O texto refere-se ao momento em que foi lançada a base da ciência do Direito, resplandecente até a contemporaneidade. A recepção ou o renascimento do Direito Romano, através dos textos do Corpus Iuris Civilis pela Escola dos Glosadores, proporcionou o ambiente teórico para o desenvolvimento de técnicas e conhecimentos para lidarem com esse texto que, no primeiro momento, foi considerado providência divina, igualando-se aos textos sagrados como a Bíblia. Nesse momento histórico-cultural, a Religião, a Igreja Católica ocupa um papel importante no acolhimento e na utilização dos textos romanos e, ainda, calcada nauniversalidade e unidade apresentada no Império Romano, arroga-se para si a figura imperial na intenção de consolidar o Império Cristão no período medieval. Assim, a relação entre a Religião e Direito forma o ponto inicial da ciência jurídica, juntamente com a formação das Universidades.
Sumário: Introdução; 1. Período precedente à escola dos Glosadores; 1.1. Principais épocas romana; 1.2. O direito na condição vulgar; 2. Escola dos Glosadores; 2.1. O método introduzido; 3. O início da ciência do Direito e a Religião; 4. Conclusão; 5. Bibliografia.
Palavras-chave: Religião – Direito – Escola dos Glosadores – Recepção do Direito Romano
Introdução
Pode-se, no fenômeno jurídico, demarcar o surgimento da especificidade do estudo do Direito com a escola dos Glosadores na Itália. É justamente através dessa escola que surge a primeira Universidade, a de Bolonha. Embora a fé religiosa e a ciência, hoje em dia, estejam dissociadas no momento de oferecerem suas “verdades”, na época da criação da Universidade Bolonha a religião não se encontrava longe da racionalidade dos estudantes e nem mesmo do conhecimento do Direito, ela tinha presença marcante nos quadros mentais de entendimento das circunstâncias sociais, principalmente no condizente à esfera jurídica. A ratio era guiada por revelações consideradas divinas, o que ocasionava uma posição de passividade frente à dinâmica da vida, pois essa era posta pela vontade divina e ao Homem cabia reconhecer e aceitar sua posição frente ao mundo-da-vida. Isso começou a se alterar com o Renascimento e logo estabeleceu-se, definitivamente, com o movimento Iluminista, que tem seu mote na separação do conhecimento tecno-científico de outras esferas, principalmente da religiosa, oHomem assume sua independência perante qualquer idéia de vontade divina, e acaba por ganhar em responsabilidade diante de sua própria vida. Não existe “mais” nenhuma entidade divino-metafísica que influencie a vontade e a ação humana.
O período romano legou inúmeros subsídios; também nos momentos subsequentes da queda de Justiniano, no Oriente, foram de suma importância pois a escola bolonhesa captou para seu método o conhecimento dos estudos das artes liberais. Embora com a inserção da fé religiosa não foi, na realidade, a providência divina que moldou os quadros mentais, mas, sim, a experiência então adquirida pelos estudiosos da época apoiados na ratioreligiosa. Na divisão entre providência divina e a liberdade-vontade do Homem se encontrava a primeira sobreposta à segunda. O percursor dos glosadores foi educado no período de pré-recepção do corpus iuris civilis, de fraca especificidade do estudo do Direito Romano. Outra característica, que justifica o forte vínculo do Direito com a Religião, era a exclusividade do estudo do Direito e o exercício de determinadas profissões pelos clérigos; criou-se uma classe de eruditos que detiveram o monopólio e o acesso ao conhecimento durante séculos. As escolas conventuais assumem uma posição de vanguarda na educação e instrução dessas pessoas, a partir daí surgiu toda a mundividência do ensino universitário.
A escola dos Glosadores fundamenta-se na crença de um texto sagrado que não a Bíblia. A littera impôs, pelo aporte da fé, o seu sentido à contingência da vida. O desenvolvimento da escola foi acoplado à significação dos textos analisados, baseado numa crença ontológica determinada pela divindade; a fé no conteúdo do texto provoca a orientação da ratio no contemplar a vida, principalmente o Direito. O método de estudo empregado ganhou vulto e chamou a atenção de diversos estudantes de todo o continente europeu. A Itália, com isso, se constituiu no centro do estudo jurídico. O modelo bolonhês marca o início do estudo específico do Direito; o objeto, portanto, concentra-se no fenômeno jurídico, inferindo a emergência de uma ciência própria dessa esfera. A ligação à fé religiosa é muito forte, então a concepção de ciência conhecida na modernidade não pode ser totalmente empregada nessa época – apenas estabelece um marco no desenvolvimento do conhecimento do Direito, muito influenciado pelas correntes teológico-filosóficas.
- Período precedente à escola dos Glosadores
1.1. Principais épocas romana
O período romano foi o que destacou o direito de maneira a colocá-lo em evidência. A classificação jurídica destaca a época clássica como o apogeu desenvolvimentista do Direito. Época em que os iurisprudentes elaboraram, com sua erudição, grande parte de conceitos e preceitos jurídicos com a finalidade de conhecer o Direito, de desvelar o significado do Direito; elaborou-se, sob essa conditio, um esboço de ciência jurídica, que apresenta coerência nos conceitos com o emprego de terminologias com precisão. As opiniões buscavam soluções às questões práticas – responsas –, desses prudentes, aristocratas não magistrados ou sequer juízes; eram levadas em consideração pelo reconhecimento da autoridade concentrada neles, inclusive respondia às questões propostas pelo povo e no auxílio dos juízes. Período fértil, caracterizado pela praxis baseada prudencialmente em valores como: a bona fides, aaequitas, a utilitas e a humanitas[1]. Em certos aspectos, o direito clássico se contrapôs ao direito vulgar que surgia com novos costumes; pois o labor dos iurisconsultos agregava um esforço de compreensão que a mera observação do cotidiano não continha; a consistência do trabalho dos clássicos encontrava-se na recolha de considerações do caso em particular, ou melhor, partiam da especificidade do caso concreto até chegar num fundamento normativo. Isso diferencia-se da imposição da leges que parte da abstração e é imposta, de cima para baixo, de maneira genérica ao caso concreto; a figura da leges, no Império Romano, condiz àsleis impostas pelos imperadores; a lex e o ius eram distingüidos.
Após o período clássico, começa o declínio do Império Romano em seus aspectos econômicos, políticos e jurídicos; já se sentia no âmbito religioso a influência da doutrina cristã. Isso ocasiona a aderência, de maneira forte, às demais esferas da cultura humana, num sentido de construir, séculos mais tarde, um Império Cristão. Com o intuito de resgatar o antigo Império Romano[2], o imperador do Oriente Justiniano[3] implementou uma política que agregava a ortodoxia religiosa, a unidade política e a concentração jurídica. Anteriormente ao período de Justiniano, imperadores confeccionaram diversos documentos legais como: Codex Gregorianus, Codex Hermogenianus, Codex Theodosianus e, também, tentativas de reunir toda a experiência do Direito em um documento completo, abarcador da totalidade, num escrito universal de compilação dos iura. No entanto, não conseguiram constituir uma grande obra como o Corpus Iuris Civilis por falta de juristas capacitados[4]. Justiniano, no afã de retomar o antigo ambiente imperial romano, vislumbrou, no ordenamento jurídico, um dos meios possíveis de conseguir seu intento. Logo convocou juristas, participantes de escolas jurídicas de grande cabedal[5] (como Teófilo e Doroteo), sob os auspícios de Triboniano, para confeccionarem um Corpus Iuris atualizado à época e abarcador de regras resgatadoras do antigo império; com várias constituições anteriormente editadas e também com o aporte do direito romano da antiguidade, Triboniano chefiou um trabalho monumental de recolha, atualização e sistematização dos textos constantes nas várias partes do denominado Corpus Iuris Civilis[6]. Por meio de um trabalho árduo, esses juristas montaram um dos documentos mais relevantes da história do Direito, que estendeu a sua influência até a contemporaneidade. O estudo da história do direito romano em suas etapas, principalmente a clássica, encontra alicerce no Corpus Iuris Civilis, muitos dos conceitos elaborados pelos juristas clássicos foram conhecidos através do Digesto. Então, devido à recolha de inúmeros textos de diversas fontes espalhadas foi necessário sistematizar em alguns documentos, quais sejam: asInstitutas, o Digesto ou Pandecta, o Codex e as Novellae. A publicação desses quatro documentos deu-se em momentos distintos e constituições diversas. Em relação ao primeiro documento, encontra-se destinado aos estudantes que iniciam o estudo do Direito; sua configuração segue o seguinte percurso, inspirado nas Institutiones de GAIO, em quatro partes divididos em livros e esses em parágrafos que se constituem nos seguintes grupos: pessoas, coisas e ações[7]. O Digesto é a compilação de vários fragmentos dos principaisjurisconsultos clássicos contemplados com o ius respondendi recomendados pelo Justiniano, mas os compiladores se socorreram de outros juristas; os jurisconsultos destacados são: ULPIANUS, PAULUS, PAPINIANUS e IULIANUS. Triboniano (quaestor sacri palatii) foi autorizado a suprimir palavras ou frases consideradas supérfluas e retocar ou alterar o que entendesse digno de modificação. O Digesto abrange 50 livros, que estão divididos em títulos, fragmentados e paragrafados; constitui-se na principal parte do Corpus Iuris justamente por conter a doutrina do apogeu do Império e do direito Romano[8]. No Codex constam as legesdesde Adriano até Justiniano e é composto por 12 livros, que se dividem em títulos e esses em leis cronologicamente ordenadas[9]. As Novellae são constituições promulgadas depois doCodex, devido à impossibilidade do cumprimento da promessa de Justiniano de promulgar outra compilação; no Codex constam: a) Epitome Iuliani Novellarum; b) Authenticum; e c)Colectanea grega[10].
Outro fato marcante, que recaiu sobre o Corpus Iuris Civilis, foi a proibição textual do imperador, com enérgica imposição de punições, contra os comentários do Corpus Iuris Civilis, pois pretendia ter em seu domínio o poder de determinar o direito e evitar a degeneração, perversões que ocasionariam confusões. A permissão do imperador consistiu em traduções palavra por palavra, índices dos textos e remissões relacionados às compilações. No obstante as pesadas punições, surgiram diversos comentários famosos da compilação justinianea[11]. Esse corpo de direito serviu, também, para a prática dos juízes e para o ensino do direito que era cultivado por escolas atuantes na região. A partir da cisão do Império Romano em duas partes, a metade ocidental em pouco tempo começou a decair, e conjuntamente, o ius romano caiu em desprezo e as regras costumeiras do cotidiano de cada região sobrepuseram-se, e acabaram por prevalecer durante séculos.
1.2. O direito na condição vulgar
O período medieval ainda encontra-se marcado por diversos enfoques críticos, e um dos principais consiste na visão depreciativa dessa época. Além do mais, suscitam-se determinadas discussões em torno do termo ad quo, e o mais aceito localiza-se na queda do Império do Romano do Ocidente. Outro fator que caracteriza o medievo circunscreve a forte influência do cristianismo organizado e imposto pela Igreja Católica; o processo da ordália se constitui num meio de julgamento dos socii, logo, se infere a intervenção divina na constituição do Direito e na realização da justiça[12].
Durante a Alta Idade Média, na Europa ocidental, o estudo do direito romano era escasso, conjuntamente com a influência desse direito, que quase desaparece inteiramente nos séculos X e XI (é um período de difícil divisão histórica), isso se faz evidente quando se vislumbra a Península Itálica dividida em três zonas muito características: a) lombardo-toscana; b) romano-ravennate; c) meridionale)[13]. Embora muitas instituições dogmaticamente consideradas germânicas, não foram nada além do que o desenvolvimento sucessivo das antigas instituições romanas. A evidência disso se encontra, logo após, com a denominação de renascimento e/ou recepção dos espectros romanos por estudiosos. A partir daí, o estudo do direito passa a ser pautado pelos textos romanos. No entanto, existiram duas situações diferentes: a do Oriente e a do Ocidente. No primeiro caso, na Europa Oriental, o direito romano não deixou de ser aplicado, com modificações devido ao tempo, durante todo omedievo, até a queda de Constantinopla[14], sendo que algumas partes da Itália mantinham contatos com Bizâncio durante a Alta Idade Média, designadamente Veneza, Roma e Ravena.
No Ocidente não existem muitos vestígios de aplicação e conhecimento do direito romano em regiões como a França, a Inglaterra e a Alemanha. Na Itália, a situação apresenta outras peculiaridades em relação aos reis lombardos e os carolíngios; também o estudojurídico foi prolongado nas escolas de Roma e, após, em Ravena[15], embora o ensino do direito fosse específico; a conservação das escolas, muito graças à Igreja Católica, e ao sistema romano, propiciou, mais adiante, a significativa recepção exercida pela escola dosGlosadores[16]. A cidade de Pavia[17], no século X e XI, também foi um centro de estudos de direito lombardo, portanto o direito romano não era desconhecido, como pode ser confirmado por alguns comentários do próprio direito lombardo, que referem o direito romano como lex omnium generalis[18]. É questão assente do conhecimento da romanística em momentos pré-glosadores expressos em documentos como: Exceptiones legum romanorum Petri,Brachylogus iuris civilis[19] e outras coleções canônicas[20]. Outras questões históricas também invocam estudos precedentes aos glosadores; nos últimos dois séculos, diversosjuristas historiadores, como Kantorowicz, Fitting e Luca Lo Schiavo, acharam e analisaram algumas glossae expressadas de modo Mosaik-Kompositionen, tendo como bom exemplo um fragmento encontrado chamado Summa Codicis Berlinensis. A Mosaik-Kompositionen, propriamente a glossae ou glossulae ou tractatuli ou summulae, apresenta distintos esquemas com frases, indicações, simples palavras, que informavam do Corpus Iuris, e, ao lado daglossa, acha-se, freqüentemente, a paratitla e a allegationes, que conduzem os leitores a determinadas partes do texto romano. A estrutura erguida por essas formas possibilitava um melhor entendimento do texto em sua globalidade, assim a notabilia constituía-se de um breve resumo esclarecedor, à margem do texto, da lex que abrange o problema principal ao redor dosensus legis, por vezes era apenas um tópico. Ao passo que a paratitla e allegationestambém auxiliaram os interpretes a atingirem uma melhor exegese e superar cada problema apresentado nas leges. Assim, um texto ou parte de uma lei, por meio do conhecimento global, possibilitam o entendimento de uma outra parte do texto[21].
Os mosteiros e catedrais abrigaram o ensino de determinadas disciplinas, como a dialética e a retórica, que continham, em seu conteúdo, informações sobre os preceitos romanos em aspectos práticos. O ensino contribuiu para a manutenção do direito romano nos quadros do conhecimento ocidental, e as sete artes liberais compreendiam-se em duas perspectivas: o Trivium e o Quatrivium[22]. Em suma, as septem artes liberales se constituíram no instrumento da filosofia viabilizador da compreensão de todas as coisas, formando um saber enciclopédico[23]. Fora das escolas conventuais – que cederam lugar e importância para as escolas citadinas – quando do desenvolvimento das cidades[24] – não existia a influência romana do direito, o que prevalecia eram os costumes. Justamente nessas escolas originavam-se os notarii, ou tabelliones, que cuidavam dos documentos judiciais, de contratos, de negócios jurídicos […][25], e, por conseqüência, conheciam e aplicavam o direito romano. Essa figura advém da época romana e com o tempo caiu em decadência, ostabularii, a não ser em regiões mais romanizadas – Ravena, Roma, Napoli –. No entanto, os documentos começaram, novamente, a ganhar importância, fato que exigiu o trabalho de espertos na redação, os notarii, que nessas regiões, estavam reunidos em scholae presidido por um magister. De tal modo, o labor notarial se transforma em uma arte culminante noformulari, que pressupõe numa atividade de pensamento modesta quando confrontada com os frutos colhidos mais tarde através do pensamento jurídico. Isso indica o embrião da ciência do Direito, já que se parte dessa atividade manifestativa da compilação da formula. A classe que estudava as sete artes liberais deteve o monopólio do conhecimento do Direito, pois somente os letrados tinham o acesso e a capacidade de manipular os documentos jurídicos da Alta Idade Média. Os formulari que estavam em circulação, em grande parte, têm sua origem romana e eram manipulados pelos eclesiásticos, pois era necessário saber ler, escrever e possuir um pouco de erudição, daí o espírito romano com a mão eclesiástica – claramente começa a se configurar o utrumque ius – dominava, nesse momento, o poder de utilizar esse mecanismo[26]; portanto, os notários reformularam e atualizaram a ars do formulari.
Durante esse período circulavam alguns documentos respeitantes ao Direito Romano, compilações, glosas […]; a Institutiones de Justiniano teve referência numa obra exegética sob o nome de Glossa Torinese, do mesmo modo a Glossa di Casamari e a Glossa Coloniense. Outro documento romano, trabalhado com mais vigor, foi o Codex, junto com àsNovellae, devido a serem de melhor compreensão e de menor dificuldade em relação aos demais documentos. Ainda são objeto (Novellae) de estudos a Epitome Juliani e oAuthenticum; no que diz respeito ao Digesto, anterior ao ensino glosador, era uma parte de complexo acesso devido à intrínseca dificuldade de interpretação condizente à disposição do documento, que carregava casos práticos configurados pela razão científica. Por isso, na época, o documento não se fazia utilmente interessante para a prática[27]. O movimento que dá acesso ao conhecimento dos documentos romanos foi crescendo à medida que as exigências sociais requisitaram novas respostas e atitudes da esfera jurídica, além disso, o espírito que esses documentos carregavam favorecia a nova realidade que emergia, logo o estudo e a sua compreensão começaram a preponderar num período pré-glosador; isso estimulou a recepção definitiva do Corpus Iuris Civilis por Irnério.
Alguns imperadores tentaram compilar algumas leis, mas não passaram de ínfima parte do considerado direito, destarte não existiam documentos explicitadores de como eram aplicados os direitos no continente europeu. O direito erudito, considerado ius scriptum[28], acabou por ser suplantado pelo vulgar, que se refere ao costume, aplicado espontaneamente pela população das regiões; muitos desses costumes revelam um ordenamento carregado de determinações de líderes ou da vigência da vontade do mais forte. A ordem era mantida por mecanismos carismáticos ligados à fé religiosa, necessariamente ao cristianismo. Nesse período, a ascensão da Igreja Católica começa a ser evidenciada e culminará séculos mais tarde com a figura do Império Cristão, já calcado numa diferenciação da religião e do direito, o que não significa a total independência; outro fator auxiliador foi a língua, o latim, em que está gravado o direito romano e era cultivado pela Igreja. Além do mais, Santo Tomás de Aquino conseguiu coadunar a doutrina cristã com o direito, que tinha suas bases num ambiente considerado pagão assente na razão – como o helênico e romano[29]. Há de se notar a ligação entre o poder temporal do Imperador e o espiritual della Chiesa cujo capo é il Cristo[30]. Pois em relação ao direito, a Igreja Católica providenciou a confecção do Corpus Iuris Canonici, espelhado no Corpus Iuris Civilis[31].
- Escola dos Glosadores
A Escola dos Glosadores, iniciada por Irnério, constitui um marco de suma importância na história do Direito, tanto na parte condizente ao conhecimento do pensamento jurídico como teoria e prática. O Direito assume, definitivamente, uma posição autônoma no conhecimento, pois volta-se ao estudo específico. Devido à influência pioneira dos glosadoressurgem as primeiras Universidades[32] Ocidentais, a primeira nascida em Bolonha, a alma mater, com os referidos glosadores, que serviu como modelo de ensino para as demais instituições. O que estimulou o desenvolvimento de outros métodos, como ocorreu na Universidade de Orleães, os Ultramontani[33], que se serviam da dialética escolástica e fizeram críticas às glosas de Acúrsio. Através disso e da convergência de estudiosos para Bolonha, pôs em evidência o método glosador. Como se pode observar, Bolonha não vive em isolamento, em diversas partes da Europa o estudo civilístico se desenvolveu com outros métodos, não tão destacáveis, e que se contrapõem dialeticamente com Bolonha. O surgimento do plano de estudo dos glosadores ainda está envolto em questões controversas, principalmente, quando se refere a recepção dos textos romanos e dos juristas percursores da análise desse direito.
Disposição do Corpus Iuris medieval
As disposições sistemáticas organizadas pelos glosadores não constituem a organização original. O período de renovação do estudo do Direito Romano trouxe algumas modificações nos textos de Justiniano; o trabalho de descoberta e de encaixe das peças recepcionadas pela escola dos glosadores ocasionou alterações determinantes na composição do Corpus Iuris Civilis que influenciaram os estudos subsequentes. Reunido os fragmentos do Corpus Iurisna cátedra de Irnério, este foi dividido em 5 volumes. O Digesto perde sua unidade ao ser dividido em três partes: Digestum vetus (livro 1º. ao título II do livro 24º.); Digestum infortiatum (título III do livro 24.º ao livro 38.º – ainda está repartido em duas seções); e Digestum novum (os demais 12 livros). Em relação à razão dessa divisão do Digesto existem inúmeras conjecturas, mas as mais verossímeis explicações foram forjadas por um glosador anônimo, no final do século XII, na introdução ao Digesto vetus; devido à maneira que se realizou a recepção, em partes, ou melhor, de acordo com a sequência do recebimento das partes do Digesto por Irnério se denominou essas três partes dessa forma. ODigesto vetus é denominado em conformidade ao primeiro contato com aqueles livros; ao passo que o Digesto novum é composto pela parte que era conhecida após os primeiros livros. No entanto, essas duas partes ao serem unidas, não formavam uma unidade, existia uma quebra na sequência de livros, foi então queIrnério, ao recuperar 14 livros centrais, observou que a lacuna acabou por ser preenchida e exclamou: ius nostrum infortiatum est, por isso a parte central se chama Digesto infortiatum[34].
O Codex, que manteve sua compilação original, apenas faltando os últimos três livros; os livros X, XI e XII encontravam-se em separado sob o nome de Tre Libri. As matérias neles disciplinadas faziam-se sem interesse, ultrapassadas pelas circunstâncias da tradição, ou melhor, caíram em desuso; são matérias fiscais e administrativas que não condiziam à época glosadora, assim, embora recuperado pelos glosadores, o Codex não se manteve completo. Com efeito, osTre Libri foram acoplados ao quinto volume, denominado Volumen parvum, que compreende cinco seções: 1) as Institutiones de Justiniano; 2) os Tre Libri doCodex; 3) as novellae de acordo com o Authenticum reduzido às 97 mais relevantes para o foro e para a escola, agrupadas em nove collationes; 4) a partir do século XIII foram agregados os mais importantes costumes feudais, os Libri Feudorum; 5) e, por último, um conjunto de constituições do Sacro Império Romano-Germânico, as extravagantes. Logo, serão esses livros legais que nortearam, em mais de um século, o estudo dos glosadores[35].
- 1. O método introduzido
O método empregado da glosa não era uma autêntica novidade. No estudo da gramática, a breve explicação ou a modificação de uma palavra por seu sinônimo dava-se por meio daglosa. O fenômeno da utilização da glosa, na recepção desses textos romanos, advém da experiência de Irnério como professor das disciplinas do Trivium. A partir de então aconteceu o aperfeiçoamento da análise dos textos por meio da glosa, numa atividade exegética[36], pois ela tem objetivo de esclarecer o significado, a substituição de uma palavra ou do texto em breves palavras (a littera) – observando uma lógica de conceito, princípio ou instituto[37]. De logo evidencia-se, no nome da escola que expressa o método científico empregado na análise dos textos, principalmente o Digesto e as Institutiones, que circulavam com aparato de glosasdo Magister. As glosas consistiam, materialmente, em interlineares e marginalis de acordo com a localização nos textos; as primeiras encontram-se escritas entre as linhas e asmarginalis estão situadas à margem[38].
O ponto emanador da interpretação é a glosa, indissociável da docência, que serviu de apoio teórico à criação, durante o decorrer do tempo, de outros gêneros literários. O trabalho dos glosadores não se restringiu à simples exegese da littera, emergiram, através da oralidade da exposição do Corpus Iuris Civilis, significativos esquemas interpretativos como: oapparatus, as distinctiones, as quaestiones, a regulae iuris, as dissensiones dominorum, oscasus e a summae[39].
O apparatus consiste no esclarecimento coerente das diversas partes do texto; Azo destacou esse gênero. As distinctiones subsidiam uma visão sistemática das divisões de conceitos ou de matérias complicadas; assim aquele que se debruça na leitura desse gênero acaba por ser conduzido, de maneira consciente de seu progresso, de uma proposição a outra afastando as antinomias, e tende a alcançar a verdade pelo viés da aproximação. As quaestiones consistem em disputas entre casos controversos condizente ao um fato (quaestio facti), e a interpretação de uma regra jurídica (quaestio iuris) era utilizada como um exercício acadêmico, no qual o Docente elabora um casus e convoca dois estudantes, sendo um o reus e o outro auctor; após o confronto de argumentos, o Lente anuncia ou pronuncia a decisão (determinatio). As regulae iuris, presentes na época romana, envolvem e isolam determinados conceitos do seu contexto, favorecendo a aplicação. As dissensiones dominorum estão calcadas nas divergências dos mestres sobre relevantes questões. Os casus se distinguem das quaestiones por não apresentarem disputa, são exemplificações de casos práticos com a aplicação da norma. A summae, como o significado da palavra demonstra, calcavam-se em exposições voltadas para resumirem o conteúdo de um título ou livro do Corpus Iuris; a dificuldade em empregar a técnica da summae dificultou a maioria dos glosadores de utilizá-la, no entanto, os juristas mais notáveis escreveram sua summae. Diversos estudantes encontraram nelas uma forma resumida, de maneira essencial, do Direito Civil[40].
A atividade dos glosadores concentra-se na interpretação, cuja mentalidade se mantém dogmaticamente idêntica, a seqüência das leges conduz ao direito erudito, nada escapa à sistematicidade do Corpus Iuris e à ordenação realizadas pelos glosadores. Inclusive as aulas, ou melhor, as lecturae[41] acadêmicas seguem essa ordem, até mesmo porque noDigesto e no codex existem preceitos disciplinadores da interpretação[42]. Isso tudo devido à subtração do Corpus Iuris Civilis do seu contexto histórico, pois nele se encontra legalis sapientia justamente pela atribuição de estatuto equivalente ao texto bíblico, a compilação – com seu vasto repertório de direito positivo – de Justiniano passa a ser considerado, então, divino; nisso soma-se a relação de autoridade com o logos que determina a interpretação, logo a auctoritas do interpretador também se faz evidente no contexto da atribuição da verdade. Na compreensão doutrinal do texto, no sentido de atingir a revelação da verdade, se condenava a desfuncionalização que prejudicava o sentido verdadeiro da lex da corruptio librorum; assim a interpretação, ou melhor, a tradução ipsis litteris e de adnotare buscam, justamente, a preservação da autenticidade do Corpus Iuris. Os glosadores entendiam a interpretatio no sentido de aclaramento, da correção, da ampliação e da delimitação da littera; apegada ao texto a atividade dessa escola, nos primeiros momentos, não existiam critérios precisos de hermenêutica. A vinculação nas afirmações de Justiniano em sua consonantia, a concordia, os priores e os posteriores das leges levam em conta a unidade e a sistematicidade doCorpus, esquemas disponíveis cuidam da harmonia das normas de uma interpretação sistemática, que parte das ligações interiores do arcabouço sistemático. Dessa forma, a utilização de esquemas de deduções lógicas e de categorias aristotélicas evidenciam-se nas seguintes formas: causae materialis, finalis, efficiens e formalis; além do mais constata-se figuras escolásticas como: causa proximas e remota, propria e impropria, as determinações de gêneros (genera) e de espécies (species, specialiter) e ainda de determinados processos, quais sejam: distinctio, divisio e subdivisio. Com a escolástica tardia algumas dessas figuras serão esquecidas[43].
A littera representa o início do método dos glosadores, no entanto, não indica o ápice da escola. Durante o percurso escolar, a letra não foi deixada de lado, pelo contrário sempre teve as atenções voltadas para si, a partir daí o trabalho de retirar todas as potencialidades das palavras. Foi então estabelecido, no primeiro momento, o esclarecimento das palavras e trechos dos textos, a contemplação da mens legis ou da ratio legis, fulcro do jurista, só poderia ser feita por meio da significatio verborum. Portanto, os glosadores, com o emprego do seu método, ao utilizar a verba, pretendiam desvelar e contemplar a verdade contida na mística do Corpus Iuris Civilis, guiada no ambiente de descoberta dos fragmentos do texto; daratio contemplativa do medievo a verba passa a ser olhada com a ratio criadora da modernidade. A fama granjeada se espalhou por grande parte da Europa e arrecadou adeptos ao método e à figura do Corpus Iuris[44], ainda foram os percursores da jurisprudência européia, devido à legião de juristas, com suas seqüentes gerações, formados pelas Universidades – que influenciaram fortemente a economia, a cultura e a política das cidades – os quais saíam e acabavam por ocupar cargos na administração e no judiciário, em decorrência disso os legistas ocupam importantes lugares juntamente com os clérigosnaquela sociedade[45].
- O início da ciência do Direito e a Religião
A Religião se encaixa, juntamente com o Direito, nas esferas culturais normativas; tanto a Religião como o Direito contêm mecanismos de ordenação das relações inter-individuais, o que até determinado ponto tornam equivalentes as duas esferas; temporalmente considerando, a Religião se sobrepôs ao Direito e séculos depois houve uma inversão, o Direito predomina sobre a religião no condizente à organização global das relações sociais. Por outro lado, em breves palavras, o fundamento motivacional dessas duas realidades sociais se encontra em distintas bases interrelacionadas, e que por vezes se confundem. A Religião vai buscar na fé e nos dogmas professados, o fiel seguirá os conselhos “espirituais”, os ensinamentos do profeta, devido à crença na redenção e, também, na intenção de estar agindo da melhor maneira possível diante da sua religião (crença) e de seu próximo. O Direito, na modernidade, deixa aspectos materiais e se concentra nos formais; o respeito às normasjurídicas advém do receio da coação, da imposição de penalidades por parte do Estado e de estar atuando com retidão com as demais pessoas e com Estado. Nota-se a diferença de fundamento desses dois âmbitos culturais no que se refere à prática das ações. O Direito e a Religião, no medievo, se apoiavam um no outro para se legitimarem, no entanto, esse apoio ocorria intercalando a sobreposição de influências.
Sob determinado ângulo de visão, a religião estimulou o início e o desenvolvimento da ciência do Direito, principalmente quando se refere ao plano da crença em determinados textos, seja o bíblico ou os Corpus Iuris Civilis e Canonici. Sem essa crença inicial, de desvelar a verdade da littera por meio da análise interpretativa exegética efetuada pelasglosas, o desenvolvimento do estudo do Direito, provavelmente, teria iniciado séculos depois. O leitmotiv do medievo encontra guarida no romano, isso devido ao Grund dos desígnios da Igreja Católica; tal como o jurista romano, o jurista medieval buscava conhecer o Direito equivalente e juntamente ao eclesiástico interpretando os textos sagrados, pois visava descortinar a doutrina de Cristo e chegar a Deus[46]. Cabe destacar a incorporação da concepção do iusnaturalismo clássico. Em relação aos desígnios romanos, pode ser captado, através da imagem da deusa da justiça; para eles a sua imagem não contém espada, apenas ela segura firme a balança com as duas mãos, ao contrário da imagem grega, na qual a simbologia da espada está latente. Para os romanos, o fundamental estava em saber quando existia o Direito, e, para isso, o trabalho do jurista, com seus sentidos, era fundamental, logo a época clássica romana remete ao apogeu do direito, o ius-dicere tem mais relevância do que o iu-dicare grego, o qual não necessitava de um jurista[47]. Em torno desse ambiente, predominava a religiosidade característica da época Medieval, a fé, com sua crença, impeliu inúmeras causas e uma delas foi o desenvolvimento do Direito, na escola dos Glosadores e dos Comentadores.
O saber produzido advém dos primeiros passos de secularização do conhecimento sob o influxo da Escolástica do século XIII, num campo autônomo dos saberes temporais iluminados, ainda, por uma verdade transcendente; séculos mais tarde os saberes culminaram na razão emancipadora[48] de caráterKantiano da mündigkeit do sapere aude(!)[49] instalador da modernidade. O estudo dos glosadores assumiu a posição de investigar temporalmente uma verdade considerada transcendente, nota-se o deslocamento da luminosidade da providência divina para a ratio da Aufklärung (iluminismo ou esclarecimento, dependendo do emprego dessa palavra), daí advém a ciência do Direito. A religião Católica contribuiu, determinantemente, no desenvolvimento da ciência do Direito, principalmente quando das escolas conventuais surgem o conhecimento e a técnica da filologia, da retórica, da matemática, […] e de estudiosos capacitados a desenvolver outros meios de conhecimento. A ordem da Cristandade predomina, somente com o avanço da ciência no século XV que aparecerá a filosofia racionalista.
O domínio da cristandade no centro da Europa, região em que se concentraram os grandes delineamentos da sociedade ocidental, tinha por primazia a unidade espiritual e, por conseqüência, a política e cultural estruturadora do Império Cristão; a universalidade se instalou na cosmovisão do medievo latino construindo, de certa forma, um todo cultural[50]. A sobreposição do poder espiritual em relação ao temporal chegou a legitimar os Reis[51], que séculos após revertem ao seu favor a situação. A cultura católica evangelizadora fazia distinção de territórios em três: os habitados pelos pagãos; os legados pelo Papa a um soberano Cristão com a finalidade de evangelização; e os preenchidos pelo Islã, local de envio de cruzadas. A ascensão da Religião Católica tem acento na protuberância da emergente fé religiosa com as virtudes cristãs aceitas pelas pessoas comuns como, também, pelos intelectuais, tendo em vista que os últimos estudavam nas escolas conventuais e nas Universidades daí surgidas, além disso, os próprios intelectuais conferiam a auctoritas por meio de sua (estudo-)opinião[52]. A busca na doutrina ética do bom e do justo influenciaram ométodo jurídico hermenêutico vigente na Idade Média[53]. A praxis humana na comunitasestava vinculada ao forte laço hierárquico dogmaticamente remetida a Deus, e ordenada, filosófica e sociologicamente, pelo princípio da auctoritas constituído no momento dainterpretatio, pelas pessoas consideradas como autoridades. Por isso, os textos acabaram por possuir relevância Bíblica, o Corpus Iuris Civilis e o seu seguidor Corpus Iuris Canonici, textos de autoridade, que através do método empregado eram objetos de desvelamento da palavra impressa na aquisição do conhecimento; a ratio scripta continha as regras da razão prática, logo se encontrava a realização da justiça[54]. Além do mais, a subordinação da vida terrena à vida celeste, influenciada pela mesma ratio que governa o ordenamento jurídico e o ético, o que contribuía para evitar dissídios entre essas esferas[55].
Diante de tudo isso, o impulso principal na constituição da ciência do Direito foi a mútua troca de influência entre os legistas e os canonistas no emprego do mesmo métodoglosador, na valorização dos respectivos textos, na divisão entre justiça terrena e justiça divina, na disputa de poder entre a Igreja e o Imperador, ou seja, entre o divino e o profano. Dessa dialética, escolástica, surge o movimento das escolas jurídicas, constituídas em centro de estudos que desenvolveram toda a cultura do estudo do Direito. O papel dos glosadores foi de suma importância, pois justamente nessa escola a ciência jurídica ganha um estatuto evidente, se diferencia do pensamento religioso em uma autonomia, mas ainda se mantém vinculada ao um modelo racional religioso.
- Conclusão
A ciência jurídica conhecida atualmente teve início no importante fato da recepção ou renascimento do Direito Romano na Europa Ocidental durante a Alta Idade Média. A partir de então, foi se desenvolvendo o conhecimento jurídico conjuntamente com seu estudo. Negar ou ignorar esse período, em qualquer altura da análise desenvolvimentista do Direito, é desconhecer a história do pensamento jurídico em seu fundamento científico. Embora a palavra “científico” não possa ser empregada em sua plenitude para a época, pode-se, sim, anunciar que naquele período se caracteriza seu início e modernamente se radicalizou.
O Direito e a religião, no medievo, subsistiram fundamentados sob a mesma ratio, mas não implica a ausência de conflitos entre essas duas esferas; tanto que o utrumque iusevidencia a subsistência independente, de cada esfera, em seu próprio conhecimento, mas integradas na complementação de algumas lacunas e, também, na organização do aspecto temporal e espiritual. A cisão entre o poder temporal e o espiritual existiu, no entanto, houve uma coordenação entre os poderes com a finalidade de concretizar o império cristão e para criar um ambiente social hostil aos povos considerados bárbaros. Para atender às exigências que surgiram, tanto o direito eclesiástico como o laico vislumbram na possibilidade de utilizar esquemas de conhecimento para legitimar e desenvolver as normas impostas na comunidade cristã.
A Escola dos Glosadores se constitui na percursora, ao analisar os textos romanos com o conhecimento das artes liberais juntamente com a crença na divindade do Corpus Iuris Civilis. Impos técnicas de entendimento interpretativo, na tentativa de desvendar a verdadepara captar, então, a mensagem sagrada ali contida. Logo, a fama do Corpus Iuris e dessa escola se espalhou pelos diversos cantões da Europa difundindo o método e o respeito ao documento romano. Inúmeros juristas, formados no método glosador, carregaram consigo a influência metodológica, mas também dos preceitos dos ius civilis romano. Diversos centros de estudos nasceram e contribuíram na discussão e desenvolvimento da análise jurídica; logo depois o método dos glosadores se viu superado pela dialética-escolástica da Escola dos Comentadores. Em suma, o início da ciência do Direito partiu da glosa com a fé cristãdivinizante de um texto recepcionado depois de séculos na penumbra, além das implicações sociopolíticas na recuperação do regime jurídico romano e na aplicação conjunta do direito laico e do eclesiástico.
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[1] NEVES, António Castanheira. Método jurídico. In: Digesta: Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. v. 2. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. pp. 291-292; em relação ao período dos iurisprudentia: GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Trad. A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. pp. 90-91.
[2] Vide: GIORDANI, Mário Curtis. História do império bizantino. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. pp. 18-19.
[3] Vide: GIORDANI, História… pp. 47-54.
[4] GIORDANI, História… pp. 230-232.
[5] Vide: ARANGIO-RUIZ, Vicente. Historia del derecho romano. Trad. Francisco de Pelsmaeker e Ibáñez. Cuarta Edicion. Madrid: Reus, 1980. pp. 455-456.
[6] Esse corpus iuris foi denominado de Corpus Iuris Civilis séculos mais tarde, em 1583, por Dionísio Godofredo. MARQUES, Mário Reis. História do direito português medieval e moderno. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 24.
[7] A própria designação de institutiones advém de instituere que equivale a ensinar, vide:GIORDANI, História… pp. 235-236.
[8] Vide: GIORDANI, História… pp. 233-235.
[9] Vide: GIORDANI, História… p. 236.
[10] Vide: GIORDANI, História… p. 236.
[11] Vide: GIORDANI, História… p. 239.
[12] DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Trad. Hermínio A. Carvalho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 30.
[13] CALASSO, Francesco. Storia e sistema delle fonti del diritto comune. I. Le origini. Milano: Giuffrè, 1938. pp. 204-206.
[14] COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do direito português. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1996. p. 206.
[15] CALASSO, Storia… pp. 306-310.
[16] Vide: CALASSO, Storia… pp. 99-114.
[17] Pavia, capital do Regnum Longobardorum, abrigou uma célebre escola de artes liberaiscontribuiu para chamar diversos estudantes de diversas regiões lombardas. Nessa cidade concentrava um grande centro jurídico com o Tribunal e causídicos que desenvolveram profunda e solidamente a cultura jurídica. Por meio da experiência criada o ensinamento jurídico do direito lomgobardo-franco se especializou, tendo os seguintes nomes destacados: Sigifrido, Bonfiglio, Bagelardo, Gualcosio, Guglielmo, Ugone e Lanfranco; sendo que esse último é lembrado pela escola glosadora. Vide: CALASSO, Storia… pp. 334-346. Em relação as cidades citadas ver: WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. António Manuel Botelho Hespanha. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 30-32.
[18] GILISSEN, Introdução histórica… p. 341.
[19] Sobre esses dois documentos: CALASSO, Storia… pp. 325-331.
[20] COSTA, História do direito português. pp. 207-209.
[21] BELLOMO, Manlio. Der Text erklärt den Text: Über die Anfänge der mittelalterlichen Jurisprudenz. In: Rivista Internazionale di Diritto Comune. 4. Roma: Il Cigno Galileo Galilei – Edizioni di Arte e Scienza, 1993. pp. 51-56, 57 e 58.
[22] O primeiro composto da gramática, da retórica e da dialética e o segundo estruturado com a aritmética, a geometria, a música e a astronomia.
[23] CALASSO, Storia… pp. 297-298.
[24] As escolas citadinas também se desenvolvem ao abrigo Igreja, especificamente das catedrais com outras características, principalmente renovadoras de acordo com o espírito que reinava na época: CALASSO, Storia… pp. 302-304.
[25] BELLOMO, Der Text… p. 55.
[26] CALASSO, Storia… pp. 210-212.
[27] CALASSO, Storia… pp. 312-321.
[28] BELLOMO, Der Text… p. 62.
[29] Vide: DAVID, Os grandes sistemas… pp. 33-34.
[30] CALASSO, Storia… pp. 153-165.
[31] O jurista que estudava essas duas realidades, a civilis e a canonici (Utrumque ius), era considerado um jurista completo.
[32] O professor recolhia o que reputava trechos do Corpus Iuris Civilis e ministrava em suas aulas; os aspectos teóricos preponderavam, o direito local, a prática e os demais aspectos ligados à prática não eram conhecidos através do ensino universitário. Destarte, o direito conhecido pela praxis era considerado como direito dos incultos, ao passo que o ensinado nas Universidades era voltado aos eruditos. Vide: DAVID, Os grandes sistemas… pp. 32-33. Universidades no XII século: Bolonha, Orléans, Montpellier, Salamanca, Valladolid, Coimbra, já no século XIV: Prag, Wien, Heidelberg; Köln e Erfurt. SCHRAGE, Utrumque Ius. Über das römisch-kanonische ius commune als Grundlange europäischer Rechtseinheit in Vergangenheit und Zukunft. In: Revue Internationale des Droits de L’Antiquité. 3. Série, Tome XXXIX. p. 394.
[33] Vide: WIEACKER, História do direito… p. 59.
[34] Vide: MARQUES, História do direito… pp. 25-26.
[35] Todo o trecho baseado em: MARQUES, História do direito… pp. 21-26.
[36] GILISSEN, Introdução histórica… p. 343.
[37] MARQUES, História do direito… pp. 27-28.
[38] A forma de indicação da autoria da glosa era feita através da inicial ou sigla do nome, por exemplo: b = Bulgarus; m = Martinus; rog/ro = Rogério; y/w/Ir = Irnério… Outra forma de distinção refere-se à glosa redacta, escrita por um professor; e à glosa reportata, quando escrita por aluno que faz referências de citações de opiniões de nomes destacados, por exemplo: secundum m(artinus), secundum b(ulgarus) […]. MARQUES, História do direito… p. 27.
[39] Vide: NEVES, Método jurídico. p. 293.
[40] Exposição baseada em: MARQUES, História do direito… pp. 28-30.
[41] Vide: BELLOMO, Der Text… p. 62.
[42] “«No que foi estabelecido contra a razão do direito, não podemos seguir a regra jurídica» (D. 1, 3, 15). Da mesma forma, adverte-se o intérprete que não basta reter as «palavras», mas é necessário compreender o «fim» e os «efeitos» das leis (D. 1, 3, 17); afirma-se que as expressões singulares devem ser compreendidas à luz da «lei inteira» (D. 1, 3, 24) e defende-se o emprego da analogia (D. 1, 2, 12 e 13).” MARQUES, História do direito… p. 32 (grifo do autor).
[43] WIEACKER, História do direito… p. 52.
[44] Vide: COSTA, História do direito português. pp. 215-216.
[45] WIEACKER, História do direito… pp. 65-67.
[46] GARCÍA Y GARCÍA, Antonio. El derecho canónico medieval y los problemas del Nuevo Mundo. In: Revista Internazionale di Diritto Comune. 1. Roma: Il Cigno Galileo Galilei – Edizioni di Arte e Scienza, 1990. p. 123.
[47] CRUZ, Sebastião. Temas de Direito Romano: Ius. Derectum (Directum). Dereito (Derecho, Direito, Diritto, Droit, etc.) In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. v. XLIV. Coimbra: Coimbra Editora, 1968. p. 181.
[48] LIMODIO, Gabriel. La enseñanza del derecho privado: un aporte desde el realismo jurídico. In: Prudentia iuris: Revista de la Facultad de Derecho de la Pontificia Universidad Católica Argentina “Santa Maria de los Buenos Aires”. n. 60. Noviembre. EDUCA, 2005. p. 106.
[49] Vide: KANT, Immanuel. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? In: Was ist Aufklärung? Ausgewählte kleine Schriften. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1999. pp. 20-27.
[50] CALASSO, Storia… pp. 356-357; a universalidade do pensamento europeu deu-se pela estrutura linguística do emprego do latim nas várias esferas como: a filosofia, literatura, na arte […]. Um fator que contribuiu para a difusão cultural foi o movimento migratório dos estudantes de várias regiões para os centros de estudos, então, quando retornavam para a região natal levavam junto a bagagem cultural. pp. 358-359.
[51] CECCHINI, Débora Ranieri de. La autoridad cristiana en el medioevo: configuración del régimen político europeo en la cristiandad. Principios de filosofía política: jerarquía, necesidad y ejemplaridad. In: Prudentia iuris: Revista de la Facultad de Derecho de la Pontificia Universidad Católica Argentina “Santa Maria de los Buenos Aires”. n. 60. Noviembre. EDUCA, 2005. pp. 189-190.
[52] CECCHINI, La autoridad cristiana… pp. 180-182.
[53] NEVES, Método jurídico. p. 290.
[54] NEVES, Método jurídico. pp. 292-293; a justiça para a Igreja, no Alto Medievo liga-se aoius naturale – semper aequum ac bonum –, impresso na “consciência” de Deus, imutável e inviolável que fornecia os parâmetros eterno do justo ou injusto. A Igreja exalta uma aequitas, distinta da romana, que serve de apoio ao princípio de ordem governada por uma ratio cogente como o ius, no caso de um ius aequitas. A Igreja atribui um senso de justiça à aequitasproclamando solenemente: aequitas et iustitia populi christiani. O ordenamento laico absorve o ensinamento da Igreja sobre a aequitas como: iustitia et aequitas, veritas et aequitas eaequitas et ratio. CALASSO, Storia… pp. 366-367.
[55] CALASSO, Storia… p. 362-363.