REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721
Número 04 – Janeiro/Junho 2007
A distinção por trás das grades: reflexões sobre a prisão especial
Valquíria Padilha – Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp; Professora no Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto – SP; Autora de: Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2006.
E-mail: valpadilha@fearp.usp.br
Flávio Antonio Lazzarotto – Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Carlos (FADISC); Advogado.
E-mail: flavio_lazzarotto@ig.com.br
Resumo: Esse artigo recupera brevemente a história das punições e das prisões, no mundo e no Brasil, para chegar ao tema específico do instituto da “prisão especial”. A idéia defendida é a de que a prisão especial é um privilégio ou de que ela é, em última instância, a legalização do privilégio. Para isso, parte-se não só da defesa do que consta na Constituição do Brasil de que todos são iguais perante à lei, mas também de uma idéia de cunho político de que, em certa medida, se privatiza a noção de público, uma vez que privilégio é entendido como “lei privada”, lei para alguns poucos e não para todos. Trata-se de um texto que problematiza o tema da prisão especial interconectando as áreas do Direito, da sociologia e da ciência política.
Sumário: 1. Introdução; 2. O direito de punir: breve história das punições; 3. O instituto prisional do século XIX aos dias de hoje; 4. A prisão especial no Brasil: necessidade ou privilégio?; 5. Prisão especial: o que dizem os entrevistados?; 6. Considerações Finais; 7.Referências bibliográficas.
Palavras-chave: punição – prisão – prisão especial – privilégio.
- Introdução
A Prisão Especial, no Brasil, é um instituto que visa favorecer algumas pessoas levando-se em consideração os serviços prestados à sociedade. Esta diferenciação é garantida apenas durante o período em que aguarda o resultado do seu julgamento. Se condenada, é transferida da “prisão especial” para a prisão comum.
Esse tema suscita uma polêmica que divide tanto a opinião pública quanto os legisladores e políticos no que diz respeito à aprovação ou desaprovação desta situação em questão. A defesa do privilégio da prisão especial no Brasil é feita por autores como Garcia[1] que diz merecer maior consideração pública as pessoas que, “pela sua vida, funções e serviços prestados a comunidade”, e também as pessoas que “pela sua educação, maior sensibilidade devem ter para o sofrimento no cárcere”.
Também Cogan diz que, em relação à prisão especial, “[…] o legislador ordinário não afrontou o texto constitucional, já que a todos os cidadãos estão abertos os caminhos que conduzem à conquista das posições que dão aos seus integrantes a regalia de um tratamento sem o rigor carcerário”[2], ou seja, o autor parece entender que no Brasil quaisquer pessoas, sem exceção, têm condições de, se pretenderem, cursar uma faculdade. Já para Gusmão[3] prisão especial é mais um dos privilégios alcançados apenas pela elite brasileira:
Em busca de argumentos que demonstrem (ou não) a nossa hipótese de inconstitucionalidade da prisão especial, realizamos uma pesquisa buscando primeiramente descrever uma breve história das prisões a fim de contextualizar historicamente a discussão da prisão especial. Fica claro que o sistema prisional como sistema de punição, ao contrário do que se imagina, não tem um longo tempo na história do homem – não mais do que dois séculos -, pois antes de se tornar um sistema punitivo a prisão era utilizada apenas para que o condenado aguardasse a “verdadeira punição”, que normalmente era a morte. Foi feito também um levantamento bibliográfico que procurou abranger alguns dos autores das áreas específicas do Direito Penal e Constitucional e das áreas da Sociologia e da Política no que tange a discussão das possíveis relações entre prisão especial, poder e privilégio. A pesquisa se completou com a realização de entrevistas com dezessete pessoas escolhidas por suas ocupações e grau de escolaridade. As entrevistas foram feitas para tentar perceber quais são os sentidos atribuídos à prisão especial, tanto por pessoas que têm direito a esse privilégio quanto por quem não o tem.
Este artigo tem como objetivo central confrontar o art. 295 do Código de Processo Penal (CPC) que diz:
Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:
I – os ministros de Estado;
II – os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia;
III – os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados;
IV – os cidadãos inscritos no “Livro de Mérito”;
V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
“V – os oficiais das Forças Armadas e do Corpo de Bombeiros;”
VI – os magistrados;
VII – os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
VIII – os ministros de confissão religiosa;
IX – os ministros do Tribunal de Contas;
X – os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função;
XI – os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos.
- 1º A prisão especial, prevista neste Código ou em outras leis, consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum.
- 2º Não havendo estabelecimento específico para o preso especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento.
- 3º A cela especial poderá consistir em alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana.
- 4º O preso especial não será transportado juntamente com o preso comum.
- 5º Os demais direitos e deveres do preso especial serão os mesmos do preso comum[4].
e leis esparsas que tratam do assunto com o art. 5° da Constituição Federal que rege que
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […][5].
- O instituto prisional do século XIX aos dias de hoje
Os teóricos do inicio do século XIX defendem a prisão como instituto de transformação psicológica e moral dos delinqüentes. Nesta época a prisão já é o maior instrumento de penalidade existente. Esta transformação deu-se com o ajustamento do sistema judiciário a um mecanismo de vigilância e controle em um aparelho de Estado centralizado. Este mecanismo de vigilância-reclusão passa a fazer parte de toda sociedade, por meio da construção de grandes prisões inspiradas no modelo doPanopticon e que tem sua aplicação, além dos delinqüentes, às crianças abandonadas, aos órfãos, aprendizes, estudantes, operários etc. A prisão surge, então, no século XIX, juntamente com a era do Panoptismo.
Por mais perigosa que a prisão seja, pela inutilidade dos prisioneiros nela trancados, em quase dois séculos de existência, apenas vimos sua transformação e não seu desaparecimento, pelo contrário, passou a ser considerada a “pena por excelência”, por atuar diretamente na privação da liberdade do indivíduo, sendo que, esta privação atinge a todos da mesma forma.
Considerada um método muito eficiente de punição por ser dividida em dia, mês e ano conforme o grau de delito e a necessidade de imposição da pena.
Insurgindo-se contra a afirmação de que há de se dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais[6], Leal sustenta que isonomia é direito-garantia e referente lógico-jurídico indispensável ao processo, que “não tem conteúdos de criação de direitos diferenciados pela disparidade econômica das partes”[7]. A esse respeito e no mesmo sentido, Canotilho[8] afirma:
[…] ainda que se admita a possibilidade de uma valorização material (em seja tratando igual o igual e desigualmente o desigual), essa valoração não pode ser feita arbitrariamente, ou seja: não se basear em I) fundamento sério; II) não tiver um sentido legítimo; e III) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável; ademais, aduz, impõe-se a observância de igualdade de oportunidades, efetivando-se os direitos econômicos, sociais e culturais.
A noção jurídica de igualdade, segundo Burgoa[9]
[…] se traduz em que várias pessoas, em número indeterminado, mas numa determinada situação, tenha a possibilidade e a capacidade de ser titulares, qualitativamente, dos mesmos direitos e de contrair as mesmas obrigações dela (situação) decorrentes.
No processo civil brasileiro existe norma expressa proclamando que o juiz deve assegurar às partes igualdade de tratamento (CPC, art. 125, I), e normas que indicam o que o juiz pode e o que não pode realizar de ofício, além da determinação de se dar curador ao incapaz. E, no processo penal brasileiro, há a obrigação de que todos os acusados sejam assistidos por advogados, que elegerem ou que lhe forem indicados, como garantia de paridade de arma; frente a um órgão técnico – que é o Ministério Público.
O princípio da igualdade é uma limitação ao legislador, que fica proibido de editar regras que estabeleçam privilégios. E também um princípio de interpretação, pelo qual deverá o juiz ou todo aplicador “dar sempre à lei um entendimento que não crie privilégios”[10].
- A prisão especial no Brasil: necessidade ou privilégio?
Este instituto surgiu no Brasil em 1941 com o Decreto-Lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941, CPC.
Segundo Garcia, na impossibilidade de permitir a todos os acusados que aguardam o julgamento um tratamento que diminua:
[…] os riscos de injustiça, imanente ao caráter preventivo da medida privativa de liberdade, não há mal em que isso seja feito pelo menos relativamente a alguns acusados[…]. Dentre eles, os que, pela sua vida, funções e serviços prestados a coletividade, merecerem maior consideração pública, ou que, pela sua educação, maior sensibilidade devem ter para o sofrimento no cárcere[11].
A partir da inclusão do art. 295 no CPC em 1941, foram incluídas por meio de decreto-lei, lei complementar e leis que ampliaram o alcance da prisão especial a várias outras profissões e novas disposições.
Em 1994, o Estatuto da Advocacia[12] (Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994) em seu art. 7° determina: “São direitos do advogado: … V. não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, assim reconhecidas pela OAB, e, na sua falta, em prisão domiciliar”.
Segundo Delmanto Júnior[13], decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão da lavra do Desembargador Álvaro Cury:
A ‘cela especial’ separada dos demais detentos, embora possua maior dignidade que as prisões comuns, não supre, evidentemente, a exigência expressa contida no art. 89, V, da Lei 4.215/63″ (atual art. 7º, V, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), “que confere ao advogado preso preventivamente o recolhimento em sala especial de Estado-maior. Não existindo tal acomodação na comarca e tendo a sentença condenatória deferido o regime prisional aberto, tudo recomenda a concessão de habeas corpus para que o causídico aguarde em liberdade o julgamento de eventual recurso” (HC 89.277-3, RT 655/289).
Nota-se, a partir do artigo 295 do CPC que, mesmo dentro dos privilegiados, existem os que acham que devem ser ainda mais privilegiados colocando-se com maior importância na sociedade ou profissionalmente ao ponto de não aceitarem serem presos em prisão especial, mas em sala de Estado-Maior expressamente estabelecida para categorias restritas.
D’Urso[14] advoga em favor do alargamento do direito da prisão especial a todos os cidadãos que aguardam julgamento quando diz:
Em primeiro lugar registra-se que a prisão especial é prevista em lei, contempla algumas categorias profissionais, preservando-as, vale somente para a prisão antes da condenação (com uma exceção) e não é privilégio;advogamos que deva ser estendida a todos ainda não julgados definitivamente. Um grande equívoco tem sido feito pela sociedade brasileira, que inspirada pelas manchetes da mídia (as quais focam autoridades que estão sob a mira de investigação), passa a pedir o fim da prisão especial, bradando que não podemos ter privilégios para os poderosos, em detrimento da nação. Na verdade, não se pode tolerar privilégios e regalias que venham distinguir pessoas as quais, em razão de suas ocupações tenham benefícios infundados, não garantidos aos demais cidadãos, até porque o princípio constitucional que rege tal assunto, estabelece que todos são iguais perante a lei. De outra parte, não se pode invocar esse princípio, para acabar com condições mínimas que deveriam ser garantidas a todos, somente porque o Estado não as consegue propiciar à massa carcerária como um todo, e dessa forma advogando-se posição na qual, todos devam ser remetidos ao sistema prisional fétido, promíscuo, imundo, doente, miserável que lamentavelmente temos aqui em nossa pátria (Grifos nossos).
Segundo D’Urso, a prisão especial surge entre nós quando se constatam as condições precárias do sistema prisional, o que levou inclusive ao Decreto 38.016 de 5 de outubro de 1955, o qual regulamentou sua prática.
Em defesa da prisão especial, D’Urso argumenta que:
A custódia do homem preso é do Estado que tem a responsabilidade por sua vida e integridade física e moral, assim, cabe ao Estado estabelecer condições para preservar, até por segurança, aquele preso que em razão de sua atividade, torna-se mais vulnerável ou até um verdadeiro alvo dentro do sistema. Esse espírito é que inspirou a prisão especial, que ao contrário de privilégio, é medida de segurança para aquele que precisa desse mínimo de proteção à sua vida. Dessa forma, verificamos que atualmente, têm direito a prisão especial, muitas autoridades, mas também gente do povo, como os dirigentes e administradores sindicais, servidores públicos, os professores de ensino de 1º e 2º graus, os ministros de confissão religiosa (padres, bispos, pastores, etc.), os cidadãos que já foram jurados, os diplomados em curso superior. Na verdade a ampliação do rol dos que têm direito a prisão especial deveria alcançar todos os que não tivessem uma condenação definitiva, de forma a tratar todos com a igualdade preconizada pela Constituição e não ao contrário, acabando com a prisão especial e levanto todos à lama, à promiscuidade, à doença e ao risco até de vida (Grifos nossos).
Assim, o autor conclui que
É demagógica a tese de se acabar com a prisão especial, até porque, não é privilégio de rico ou poderoso, pois são contempladas com essa forma preservada de prisão também pessoas do povo. E mais, prisão especial é possível, somente quando alguém ainda não foi condenado definitivamente, vale dizer, quando ainda pende uma mera investigação policial, ou um processo criminal, no qual, o investigado poderá ser, ao final, absolvido. A única exceção a essa regra é quanto aos funcionários da administração da Justiça Criminal e policiais. Outro dado que precisa ser levado em conta é a realidade prisional do país, o homem preso apanha, é abusado sexualmente, lembrando que aproximadamente 30% dos presos têm AIDS e por volta de 70% são portadores do bacilo da tuberculose, tudo isso de forma a propiciar condições muito favoráveis a que o homem preso, já condenado ou aguardando seu julgamento, possa morrer no cárcere.
Mais fundo na defesa da inconstitucionalidade do instituto da prisão especial o Deputado Valdemar Costa Neto apresenta o seguinte parecer:
Parecer do relator da indicação nº316/99 sobre o projeto de lei de nº 44, de 1999, de autoria do exmo. Sr. deputado Valdemar Costa Neto que ‘exclui a categoria dos juízes de paz dos benefícios da prisão especial’.
EMENTA: É inconstitucional o Art. 295 do decreto-lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941 e, por consequência o parágrafo 2º do Art. 112 da Lei Complementar nº 35 de 14 de março de 1979, não podendo ser recepcionados pela Constituição de 05 de outubro de 1988, por atentarem frontalmente contra o princípio pétreo da isonomia contido no Art. 5º da Lei Maior. A lei complementar reguladora deve abranger todas as categorias profissionais para se submeter ao ditame constitucional.
Trata a presente Indicação de matéria controversa e delicada posto que o instituto da ‘prisão especial’ já se encontra, na prática calcificado entre nós,embora não encontre respaldo, em nenhum momento, no texto constitucional. Ao contrário, o princípio constitucional que a ele vigorosamente se contrapõe, é pilar da cidadania, cláusula pétrea e matéria de natureza supra-constitucional, intangível em seu ‘grau máximo’.[15]
Um dos elementos que mais contribuem para a problematização da prisão especial – além de sua inconstitucionalidade, que se baseia em fato objetivo – é o privilégio. Segundo alguns dicionários jurídicos, o termo privilégio deriva do latimprivilegium, palavra que se forma de privus (particular, individual) e lex (lei). Exprime, em sentido originário, a lei excepcional ou a medida de exceção disposta, em caráter particular, privativo ou exclusivo, em favor de uma pessoa. Assim, o privilégio designa aprerrogativa, a regalia, o direito exclusivo ou qualquer medida de exceção, prescrita em lei em favor ou benefício de alguém. Desse modo, revela-se em tudo o que excepcionalmente é atribuído à pessoa, como direito próprio e exclusivo. Nesta razão, o privilégio, para que possa constituir direito da pessoa, deve vir expressamente consignado ou consagrado em lei.
Na linguagem jurídica em geral, privilégio é: a) o ato de conferir algum benefício especial ou prerrogativa a alguém; b) vantagem ou imunidade especial gozada por certa pessoa; medida de exceção disposta, em caráter exclusivo, em prol de uma pessoa; direito próprio e exclusivo de uma pessoa, conferido por lei; direito excepcional; c) permissão concedida a alguém para exceder algum direito com exclusividade; benefício legal; d) prerrogativa; e) posição de superioridade oriunda de desigual distribuição do poder econômico ou político. Na ciência política, privilégio tem o sentido de discriminação feita em regime monárquico em favor da classe aristocrática, com exclusão do povo[16].
Nesse sentido, ao considerar aqui a hipótese de que a prisão especial é um privilégio ou de que ela é a legalização do privilégio, parte-se não só da defesa do que consta na Carta Magna de que todos são iguais perante à lei mas, de uma idéia de cunho político de que, em certa medida, se privatiza a noção de público, uma vez que privilégio é entendido como “lei privada”, lei para alguns poucos e não para todos ou, como afirmou Ribeiro[17], “leis particulares para tal ou qual grupo.”
Ao tratar da relação entre direitos humanos e abolição dos privilégios, Ferreira Filho[18] afirma que:
A primeira decorrência, portanto do princípio da igualdade é exatamente aabolição, e mais do que isso, a proibição dos privilégios. Não podem ser abertas exceções à lei que favoreçam (privilegiem) indivíduos, ou grupos. Isto presume a uniformidade, ou igualdade do direito, a unidade do estatuto jurídico que é o mesmo para todos. Para isto a lei há de ser – como estava na Carta de 1824 – ‘igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará na proporção dos merecimentos de cada um’ (art. 179, n.13).
O tema da prisão especial sugere uma outra problemática em torno da legitimidade da ação de universalizar direitos. Assim, quando se legisla em favor de alguns grupos sociais – “A maior parte das leis não são mais do que privilégios, vale dizer, um tributo prestado por muitos à comodidade de alguns[19]” – está-se promovendo interesses particulares em detrimento do princípio político de igualdade entre todos os cidadãos da República (res publica ou coisa pública).
Alguns autores, mesmo defendendo a necessidade da prisão especial, acabam confirmando ser este instituto um privilégio:
[…] todos os privilégios odiosos devem ser repelidos, mas que nada tem de “odioso” o de que se ocupa o presente dispositivo. Estabelecido na lei, aliás, de forma abstrata, nele não se objetivam pessoas, e sim determinada qualidade que pode ser conseguida por qualquer pessoa, pelos serviços que prestar à coletividade, com o seu esforço[20].
Neste próximo texto que defende o Projeto de Lei Complementar para acabar com a prisão especial, vê-se a contrariedade entre o autor citado anteriormente e o seguinte:
Embora tangenciando o tema principal que é o da prevalência do princípio constitucional da igualdade contra qualquer forma de privilégio, como base de um ordenamento jurídico verdadeiramente justo, o autor do Projeto de Lei Complementar em observação merece encômios de vez que em sua “Justificativa” aponta para o caráter “odioso” da legislação infra-constitucional discriminatória. Aponta também para o fato de que, em seu estudo, não encontra parâmetro para o instituto da “prisão especial” em nenhum outro país civilizado do Planeta, destacando ser tal instituto “uma das faces mais perniciosas da impunidade”[21] (Grifos nossos).
Vale lembrar que já tramitaram pelo Congresso nacional várias propostas para acabar com a prisão especial, mas que não tiveram sucesso. Segundo o Instituto Gutenberg[22], o projeto do Senador Eduardo Suplicy apresentado em 1990 e reapresentado em 1991 por ter caducado, foi derrotado por 45 votos a 12. A crítica do Instituto Gutenberg neste caso foi diretamente à mídia e aos jornalistas que ignoraram completamente o assunto, pois diz respeito a elite a qual eles também fazem parte.
[…] sobrevive uma liturgia judicial que assemelha o Brasil ao antigo apartheidsul-africano. É o Estado que foja a discriminação, e os beneficiados se calam. No país do elevador de serviço, a mídia apertou o botão da sintonia fina: todos os grandes meios de comunicação omitiram reportagens sobre a vigência do privilégio — embora a “prisão especial” não seja menos acintosa que outras trapaças cívicas combatidas com barulhenta unanimidade, como a aposentadoria dos deputados. Se um pedreiro for preso ao roubar galinhas, vai dormir em pé na cela-auschwitz onde cabem 20 pessoas e empilham-se 60. Se um engenheiro for preso ao roubar um aviário, vai para uma “prisão especial”, onde tem cama, televisão, visita e bebida. No Brasil o que determina a pena não é o crime, é o criminoso.
Para esta última frase temos um exemplo claro na ementa oficial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que afirma: “A prisão provisória de advogado deve ser cumprida em sala de Estado-maior, prerrogativa[23] da classe, e não em sala especial de estabelecimento prisional comum, tal como ocorre em relação aos demais diplomados por curso superior[24].”
- Prisão especial: o que dizem os entrevistados?
Realizamos entrevistas com pessoas de diferentes profissões, escolaridade, gênero e faixas etárias. No total conversamos com 17 pessoas, sendo 11 homens e 06 mulheres.
As faixas etárias destes entrevistados são as seguintes: 29,4% entre 21 e 30 anos, 17,6% entre 31 e 40 anos, 17,6% entre 41 e 50 e 35,3% entre 51 e 60 anos. O grau de escolaridade máximo dos entrevistados varia entre ensino fundamental incompleto e pós-doutorado completo.
As profissões dos entrevistados são: juiz de direito, delegado de polícia, engenheiro agrônomo, professor universitário, assessor jurídico da câmara de vereadores, sargento bombeiro afastado, biólogo, ministro de confissão religiosa, auxiliar de escritório, professor primário, nutricionista e ajudante de motorista (desempregado e em liberdade provisória aguardando julgamento).
Dos entrevistados, 13 responderam sim para a pergunta “Você sabe o que é prisão especial?”, destas, 08 relacionaram a prisão especial à posse de um diploma de curso superior, e 02 das 08 possuem curso superior completo, 03 possuem pós-graduação completa e 03 possuem ensino médio completo. É interessante observar que das 04 pessoas que responderam que não sabem o que é Prisão especial, 03 possuem os menores graus de escolaridade.
De 17 entrevistados, 13 têm direito à prisão especial, sendo 11 por terem curso superior e 02 que, embora tenham como escolaridade máxima o ensino médio completo, desempenham funções beneficiadas pela lei (bombeiro e pastor).
Nas perguntas se o entrevistado sabe o que é prisão especial e o que ele pensa sobre isso, 05 entrevistados fazem espontaneamente alguma ligação entre prisão especial e privilégio, mordomia e benefício, o que podemos perceber nos depoimentos seguintes:
Eu sei que a prisão especial é um privilégio dos que tem o ensino superior. […] Eu creio que a lei é boa até certo ponto, porque as vezes nós ficamos no meio de pessoas que gozam desse privilégio, mas que são verdadeiros crápulas, ficam aí fazendo coisas… tipo de pessoas que roubam a própria federação, o INSS, desvia dinheiro de tantas coisas e eles gozam de privilégios. (Ministro de Confissão Religiosa, Igreja Batista, 51 anos).
Eu não acho muito correto. Acho que a prisão deveria ser de acordo com o tipo de crime e não por um privilégio que a sociedade já deu, acho que é um privilégio que todos têm direito. Esse cuidado deveria se ter com todo mundo e com muita cautela (Engenheiro Agrônomo, 53anos).
Eu tenho impressão de que ela deveria ser igual para todos, então certos privilégios, certas mordomias que existem para uns poderiam acabar. Porque nós somos todos iguais, eu posso ter nível superior, posso ter faculdade, ter profissão que me dá certo privilégio e justamente por isso a pessoa acaba se achando no direito de fazer coisa errada porque se acontecer alguma coisa você vai ter também privilégio. Então começa um regime de exceção e de privilégio desde a faculdade até um juiz, como no caso daquele juiz que roubou, tá tudo quieto, ninguém fala mais nele, onde tá o Lalau? O que ele está fazendo? Ele tem que estar na cadeia como qualquer outro preso, sem privilégio sem nada, e outra coisa, o dinheiro que ele roubou deveria ser devolvido para a Nação. (Ministro de Confissão Religiosa , Igreja Católica, 49 anos).
O delegado de polícia entrevistado, embora mencione espontaneamente a palavra privilégio ao tratar do assunto, não vê a prisão especial como sendo um privilégio, o que pode ser contatado no depoimento a seguir:
Na verdade a prisão especial, hoje em dia, é uma cela comum, uma cadeia comum, ele está dentro da penitenciária, apenas, por ele ter o diploma de curso superior ele ficaria, hipoteticamente, num local com pessoas do nível cultural mais assemelhado a ele, mas ele não deixa de estar cumprindo a pena, então eu não encaro hoje a prisão especial como um privilégio, eu acho que a prisão especial, na verdade, ela é muito mais para resguardar a vida, porque apesar dele ter cometido esses crimes bárbaros isso não dá direito de, por exemplo, de matarem ele […] Eu encaro a prisão especial muito mais como um resguardo da vida da pessoa do que propriamente um privilégio. Até porque, existem muitos casos de presos que não têm profissões qualificadas para a prisão especial que também ocupam, em tese, a prisão especial, por exemplo no caso do estuprador (Delegado de Polícia, 38 anos).
Sobre a questão do “preso ficar sujeito ao cumprimento da pena nos presídios comuns” aparece a seguinte opinião em uma das entrevistas realizadas:
[…] daí cai no faz de conta, e você sabe que as pessoas que têm mais condições financeiras dificilmente vão parar na cadeia, nós temos um sistema recursal muito grande e essa pessoa até perder a primariedade demora muito tempo e esse tempo que demora, você sabe, abate da pena efetiva depois e praticamente quando ele vai ser preso já não é no regime de reclusão, não é nada, quando tem muito dinheiro então arruma-se com facilidade um atestado médico e ele vai cumprir numa clinica, não num hospital manicômio judicial porque também nós não temos, numa clinica particular, vai cumprir num spa e olhe lá, então essa diferença é brutal e é até difícil falar de prisão especial sem você enfocar a injustiça que é gerada em termos de prisão e tem que ter muito azar para ir preso alguém que tem um nível razoável de dinheiro. (Assessor Jurídico da Câmara de Vereadores, 56 anos).
Quando perguntados se a lei da prisão especial deveria ser mantida ou modificada, 11 entrevistados falaram que esta lei deveria ser igual para todos que fossem presos e estivessem aguardando o processo; 01 disse que mudaria a lei para que ela fosse utilizada apenas para presos com crimes de conotação política-ideológica; 02 modificariam a lei para a prisão especial ser alcançada apenas pelos presos que correriam risco de vida, como pessoas que trabalham contra o crime, e para que as celas fossem apenas separadas dos outros presos e não diferentes; 1 transformaria a lei para que fossem beneficiários apenas os réu primários; 1 substituiria o critério “objetivo” de alcance da prisão especial pelo critério “subjetivo” e ficaria a cargo do juiz a permissão ou não da prisão especial; e por último, apenas 1 deixaria a lei como está.
Essas opiniões ficam claras nos seguintes depoimentos:
A lei como ela está, ela favorece quem tem a sorte de conclui um curso superior, que é uma minoria da população. Eu acho que a lei como ela está, ela gera uma desigualdade, apesar de ser beneficiário dela eu acho que ela gera uma desigualdade, se ela atingisse a primariedade seria mais importante para uma prisão especial, se bem que na prática a polícia procura fazer isso mas procura fazer sem amparo. […] Então a lei da forma que está deve ser revogada e substituída a prisão especial levando em consideração a primariedade e não a escolaridade (Assessor Jurídico da Câmara de Vereadores).
Não seria para todos a prisão especial, só para aquele que tenha comprovado o risco de vida, que já trabalha com a criminalidade, que já combate a criminalidade, então essas pessoas deveriam sim, no nosso modo de vista, ter uma prisão especial, não um tratamento especial, como o cara ficar preso no Corpo de Bombeiro, que no Corpo de Bombeiro tem vestiário, tem sauna, musculação, tem quadra poliesportiva, tem sala de jogos, pô, logo eu que sou ex-bombeiro, passo 24 horas no Corpo de Bombeiro, pra mim é uma segunda casa, eu tenho todo o conforto necessário lá. Veja bem, eu sou contra a prisão especial desse tipo, com mordomias. Tem que ter sim a prisão especial, mas tem que ter um xadrez especial, preso entre quatro paredes, como se fosse uma jaula, a mesma coisa, apenas uma cela separada dos demais criminosos pra proteger a vida e não ter esse tipo de mordomias que a gente tem visto por aí como promotor e juiz preso em quartel de bombeiro (Sargento Bombeiro afastado, 32 anos).
Eu não banalizaria tanto o sistema e não iria deixar critérios de caráter objetivo para favorecer qualquer cidadão indistintamente, eu colocaria uma ou outra característica subjetiva como critério a cargo do juiz do processo para permitir ou não a prisão especial de acordo com o caso em concreto. É isso que eu faria. Porque hoje o critério é meramente objetivo, o sujeito tem esse requisito tá dentro, não tem tá fora (Juiz de Direito, 41 anos).
Das 17 pessoas entrevistadas, 06, ao tratarem da prisão especial, ampliaram espontaneamente suas reflexões e teceram críticas ao sistema prisional no Brasil e revelaram o conhecimento do que acontece dentro das celas em prisão comum, o que se pode perceber nos depoimentos seguintes:
[…] No entanto, as celas comuns não têm cumprido seu objetivo de afastar do convívio social para uma possível ressocialização. Pelo contrário, acaba sendo uma escola superior e especial do crime. […] Quero deixar registrado que sou contra o sistema penitenciário como está hoje. Tal sistema não serve para seus fins, mas serve e bem servido para a continuidade e manutenção do estado de calamidade, horror e violência em que se encontra a nossa sociedade. Parece que o sistema prisional está falido! (Professora Universitária, 60 anos).
Eu acho difícil falar da prisão especial sem falar no sistema. Nós não temos um sistema prisional que se assemelha em nada ao que a Lei de Execuções Penais prevê, nós não temos ressocialização, nós não temos reeducação, nós não temos controle de egresso, nós não temos nada. Nós temos um inferno. Então eu acho que deveria haver uma prisão, não só prisão especial, mas uma prisão diferenciada, onde as pessoas, que via de regra é a sociedade que paga para eles terem instrução, pudessem retribuir, não era em termos de uma prisão especial para não misturar, não é esse o sentido, mas que eles pudessem retribuir, é o exemplo aí dos professores, que eles pudessem alfabetizar, que dessem cursos de 2º grau nos presídios. Advogados que desafogassem as varas de execução penal, nesse sentido, médicos, como tem um caso famoso do Osmani Ramos que ficou preso em Taubaté, é um desserviço, a o cara é louco, é louco mas é aquela história, no próprio presídio e não para a comunidade, no próprio presídio tem muita coisa para ser feita, então nesse aspecto eu acho que precisaria adequar o sistema prisional ao que a lei diz, a lei é ótima, não precisa mudar a lei, a lei é maravilhosa, no sentido de educação, de inclusão, regime fechado, semi-aberto, é uma maravilha, mas daí começa, nós não temos albergues […] (Assessor Jurídico).
[…] Também esse regime carcerário do país […] é uma coisa do passado, estamos conversando em cima de uma coisa que eu acharia que fosse legal, ideal. Não é ideal, o sistema carcerário nosso é obsoleto, é ultrapassado, é uma coisa que poderia ser pensado, você ter como pagar um crime, reparar pelo seu crime de outra maneira que não ficar ocioso em cadeia. Primeiro que a lei não funciona para todos igualmente, depois o sistema carcerário é um incentivo para a pessoa permanecer no crime, na delinqüência, ela não reestrutura a pessoa, ela não capacita, ela não forma, ela não insere a pessoa numa vida de gente reequilibrada, que superou, que corrigiu a falha, que foi tratada, que devia ter um tratamento, que deveria ter um acompanhamento especial, é muito pobre, deixa muito a desejar (Ministro de Confissão Religiosa).
Eu acho que todo mundo deveria ter prisão especial. Se a prisão especial é para quem tem curso superior, então deveriam pensar nos presos comuns, fazer mais celas, pôr pra trabalhar, não continuar essa promiscuidade entre eles, muita gente presa, por exemplo, um rapaz que cometeu um delito porque com um preso que cometeu um crime, com maconheiro, aí sai cheio de vício e pior. Eu acho que antes de você perguntar sobre a prisão especial você deveria perguntar sobre a situação atual do preso comum dentro das celas. A gente vê aí pela televisão e acha horrível (Professora de Ensino Fundamental, 54 anos).
O entrevistado que cumpre liberdade provisória, para a pergunta “no tempo que você ficou preso, se você tivesse direito a prisão especial, você exigiria esse direito?”, respondeu:
Com certeza. Porque, igual onde eu tava aí, você não vai ter melhora aí, então se você tá numa cela separado, sozinho, pelos menos você vai… você não tem droga, não tem essas coisa, não tem coisa errada, você tá sozinho, você procura organiza a cabeça e por no lugar. Agora, vive no meio de tanta gente, um diferente do outro, só cara errado vai aprende só coisa errada. Se pega uma condenação de quatro anos aí pra cima nunca vai sai bem dela (Desempregado, 27 anos).
O delegado de polícia, ao explicar se existem delegacias que possuem cadeia junto, afirmou:
[…] Na verdade, pela lei, hoje nós temos uma cadeia aqui que nos comportaria presos condenados, seriam só presos provisórios, quero dizer, até a condenação, só que nós temos hoje 40% da cadeia com presos condenados que deveriam estar em uma penitenciária, mas por não ter vaga eles ficam aqui. Agora, hoje se eu prender um estuprador, uma pessoa que fez um atentado violento ao pudor eu não posso por na minha cadeia, ele tem que ir para uma cadeia especial. Então hoje, por exemplo, esse tipo de preso vai para Descalvado, se ele ficar aqui ele expõe a vida dele em risco. Então não deixa de ser uma forma de ele ter que ter uma prisão especial,pelo próprio cotidiano, pela própria vida, pra defesa dele mesmo (Delegado de Polícia. Grifos nossos).
Pode-se inferir que quando este entrevistado afirma “pelo próprio cotidiano, pela própria vida”, ele está se referindo à vida e ao cotidiano do mundo dentro dos presídios, um mundo em que os “presos comuns” vivem inseguranças, medos, espancamentos, agressões, estupros, promiscuidade e até assassinatos. A prisão especial livra uma parte privilegiada da população brasileira deste mundo cruel do qual ninguém quer fazer parte.
- Considerações Finais
Pela importância do art. 5° da Constituição Federal, a própria Carta Magna de 1988, em seu art. 60 §4°, IV legisla que os direitos e garantias individuais e incisos não poderão ser abolidos, mesmo por meio de emenda constitucional, como pode ser observado no trecho a seguir:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: […]
- 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:[…]
IV – os direitos e garantias individuais.[25]
Quando reapresentado o projeto do Senador Eduardo Suplicy para acabar com a prisão especial, o segundo relator, Romeu Tuma (PSC-SP), minou-o com a epígrafe dos privilégios: “desiguais merecem tratamento desigual.” Em crítica a este comentário:
[…] A doutrina segregacionista reza que as prisões do povo não são para a elite, que Tuma chamou de ‘categorias sociais relevantes’. Dessa elite certamente fazem parte senadores e jornalistas, uns legislando em causa própria, outros beneficiando-se da legislação e omitindo os benefícios, num claro conflito de interesses[26].
Vale lembrar que a afirmação a que Tuma se refere, quando tomada isoladamente, pode ter um duplo sentido mas, quando analisada no conjunto do texto em que foi citada no original por Ruy Barbosa, percebe-se a verdadeira intenção do seu autor, como pode-se observar na passagem seguinte:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade os iguais, ou a desiguais com igualdade seria desigualmente flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem[27].
Este princípio foi também tratado por Ferreira Filho que diz:
A uniformidade do direito não significa, todavia, que não haja distinções no tratamento jurídico. As distinções são, ao contrário, uma própria exigência da igualdade. Esta – como se sabe – consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Tratar igualmente os desiguais, ou desigualmente iguais, importaria em injustiça e em violação da própria igualdade. Dar ao menor o tratamento dado ao maior, e vice-versa, seria flagrante injustiça e desigualização, no fundo. […] entretanto, se a diferenciação é arbitrária, se ela não se coaduna com a natureza da desigualdade, não leva ela à igualdade, mas ao privilégio, a uma discriminação. É esta, pois, em síntese uma diferenciação desarrazoada ou arbitrária[28].
Nesta breve pesquisa ficou constatado que os autores que defendem a existência da prisão especial, em nenhum momento encontram respaldo no texto constitucional, como quando se baseiam, geralmente, em argumentos de que são merecedores da prisão especial “[…] pelos serviços que prestar à coletividade […]”, “[…] os que, pela sua vida, funções e serviços prestados a coletividade, merecerem maior consideração pública […][29]“, “[…] pelas funções que desempenham, por sua educação ou cultura, por serviços prestados etc., […][30]“.
O inciso XXXII do art. 7° da Constituição Federal diz que fica proibido a: “[…] distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos”. Na verdade, a única forma em que a Constituição Federal diferencia o tratamento para algum preso é em seu inciso L, do art. 5°, que diz respeito às nutrizes: “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação[31] “. Nesse sentido, Leme discorre que:
[…] não há que falar em “prisões especiais” no texto infra-constitucional subalterno dentro da hierarquia das normas, se a própria Lei Magna aborda claramente a exceção na alínea L e proíbe a distinção entre o trabalho intelectual (de que se valem, para usufruir da “prisão especial” os portadores de diploma universitário), e os trabalhos manual e técnico em sua alínea XXXII[32].
Nessas pesquisas iniciais, encontrei na grande maioria dos autores o apoio ao instituto da prisão especial. Estes autores e alguns entrevistados, muitas vezes usam a denominação de “preso comum” em oposição ao “preso especial” e, ao proceder assim, acabam criando uma relação de sinonímia entre “comum” e “pobre”, uma vez que, normalmente, quem tem direito à prisão especial não pode ser considerado pobre[33].
Este tipo de associação fica evidente nos seguintes trechos:
Antes da condenação definitiva, não se podem afirmar responsáveis inescusáveis, por infrações penais, as pessoas sujeitas a prisão, pelo que o art. 300 faz uma recomendação de alta significação, ordenando que se evite, tanto quanto possível, o contacto entre réus definitivamente condenados e pessoas apenas provisoriamente presas; assim, é natural que se conceda o privilégio de ficar em estabelecimento diverso do cárcere comum, livres do contacto com a ralé dos criminosos, as pessoas de qualidade, pelas funções que ocupam, pela sua educação e instrução, pelos relevantes serviços públicos, que prestem ou tenham prestado[34] (Grifos nossos).
Sem ferir o preceito constitucional de que todos são iguais perante a lei, esta prevê hipóteses em que a custódia do preso provisório pode ser efetuada em quartéis ou prisão especial, prerrogativa concedida a certas pessoas pelas funções que desempenham, por sua educação ou cultura, por serviços prestados etc., evitando que fiquem em promiscuidade com outros presos durante o processo condenatório[35] (Grifo nosso).
Fernando Da Costa Tourinho Filho, ao criticar a Lei nº 10.258/01, que alterou o art. 295 do CPC, diz que “a prisão especial não é privilégio, mesmo porque para a sua obtenção basta a natureza da atividade que a pessoa exerça ou sua formação universitária, pouco importando se é branco, negro, pobre ou rico”[36]. Percebe-se, neste tipo de argumento, que o autor associa privilégio apenas em relação a cor (raça) e à situação financeira das pessoas, sem considerar estes fatores de forma relacional. Ou seja, quando ele afirma que “a natureza da atividade que a pessoa exerça ou sua formação universitária” não é um privilégio, deixa de considerar os nexos causais entre classe social, raça, gênero, grau de escolaridade e as conseqüentes possibilidades de ocupação profissional das pessoas.
Como reflexão final, propomos pensar com Mészáros[37] quando afirma que o Direito integra a lógica da sociedade capitalista dividida em classes sociais distintas e que, por isso, as relações contratuais estabelecidas na sociedade correspondem às necessidades objetivas do funcionamento e manutenção das estruturas sócio-econômicas existentes. Isso quer dizer que o quadro legal exerce a função vital de reproduzir continuamente a sociedade e suas desigualdades.
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[1] Apud DELMANTO JUNIOR, Roberto, Prisão especial, sala de Estado-Maior e prisão domiciliar em face da Lei 10.258/2001. RT 793/463-474 (novembro de 2001). Disponível em <http://www.processocriminalpslf.com.br/saladeestado.htm >. Acesso em 09 out. 2004.
[2] COGAN, Arthur, Prisão especial, São Paulo: Saraiva, 1996. p. 1.
[3] GUSMÃO, Sérgio Buarque. Um insulto à cidadania. Governo mantém privilégio na prisão de diplomados e jornalistas, 2001. Disponível em:<http://sergiobg.sites.uol.com.br> Acesso em 01 set. 2004.
[4] PINTO, Antonio Luiz de Toledo. Código de processo penal. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 73.
[5] CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil, 21ª ed. atual. e ampl., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 05.
[6] BARBOSA, Ruy, Oração aos moços, Rio de Janeiro: Forense, 19–, p. 32.
[7] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 2ª ed. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 88.
[8] CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição, V. 3, ed. Coimbra-Portugal: Almedina, 1999, p. 402.
[9] Apud TUCCI, Rogério Lauria & TUCCI, José Roberto Cruz. Devido processo legal e tutela jurisprudencial. RT. São Paulo, 1993, p. 19.
[10] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 274.
[11] GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal, v.3. Rio de Janeiro: Forense, 1945, p. 75.
[12] Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Gestão Luíz Flávio Broges 2004/2006. São Paulo: OAB, 2004, p. 22.
[13] DELMANTO JUNIOR, Roberto, Prisão especial, sala de Estado-Maior e prisão domiciliar em face da Lei 10.258/2001, RT 793/463-474 (novembro de 2001). Disponível em <http://www.processocriminalpslf.com.br/saladeestado.htm >. Acesso em 09 out. 2004.
[14] D’URSO, Luíz Flávio Borges. Prisão Especial não é Privilégio (deve ser estendida a todos presos provisórios). In: http://www.direitonaweb.adv.br, Ano I, 7ª Edição, 2001. Disponível em: <http://www.direitonaweb.adv.br/doutrina/dprocpen/Luiz_F_B_D_Urso_ (DPROCPEN_00 03).htm.> Acesso em: 14.jan.2005.
[15] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 12ª edição, p.145. Cf. <http://www1.jus.com.br/pecas/texto.asp?id=284>.
[16] DINIZ, Maria Helena, Dicionário Jurídico, vol. 3 J-P. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 312.
[17] RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social. O alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 40.
[18] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 110
[19] BECCARIA, Cesare, , Dos delitos e das penas, São Paulo: Editora CD, 2001, p.137.
[20] GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal. V.3. Rio de Janeiro: Forense, 1945, p. 75.
[21] PARECER pela inconstitucionalidade da prisão especial ao portador de diploma de curso superior. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 46, out. 2000. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/pecas/texto.asp?id=284>. Acesso em: 01 set. 2004.
[22] Cf. Boletim Nº 8 de Março-Abril de 1996. Disponível em: <http://www.igutenberg.org/conflit8.html>.
[23] Segundo o dicionário Novo Aurélio (1999, p.1632), prerrogativa quer dizer: s.f. 1. Concessão ou vantagem com que se distinguem pessoas ou corporação; privilégio, regalia.
[24] RT – 663, 1991, p.323.
[25] CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil, 21ª ed. atual. e ampl., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 53.
[26] SENADO mantém e mídia omite o privilégio da “prisão especial”. Instituto Gutenberg. Boletim nº 8, Seção Conflito de Interesses. Mar./abr. 1996. Disponível em: <http://www.igutenberg.org/conflit8.html>. Acesso em 14 jan. 2005.
[27] BARBOSA, Ruy, Oração aos moços, Rio de Janeiro: Forense, 19–, p. 32.
[28] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 111.
[29] GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal, v.3. Rio de Janeiro: Forense, 1945, p. 75.
[30] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas S.A., 2002, p. 368.
[31] CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil, 21ª ed. atual. e ampl., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 09.
[32] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 2ª ed. Porto Alegre: Síntese, 1999.
[33] Uma pesquisa do Senador Suplicy no Censo Penitenciário de 1994 mostrou que 95% dos 129.169 presos (naquele ano) eram pobres e 87% não tinham o 1° grau completo. Cf. Boletim Nº 8 Março-Abril de 1996, Instituto Gutenberg.
[34] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Vol.3, 3ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1960, p. 316.
[35] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Pebal. São Paulo: Atlas S.A., 2002, p.368.
[36] TOURINHO, Fernando da Costa. Prisão Especial?, 2001. Disponível em: <http://www.direitocriminal.com.br/.>. Acesso em 01 set. 2004.
[37] MÉSZÁROS, István. Marxismo e direitos humanos. In: ______., Filosofia, ideologia e ciência social. Ensaios de Negação e Afirmação, São Paulo: Ensaio, 1993, p. 209.