A burocracia weberiana e a estrutura diplomática brasileira

REVISTA SOCIOLOGIA JURÍDICA – ISSN: 1809-2721

Número 15 – Julho/Dezembro 2012

A burocracia weberiana e a estrutura diplomática brasileira

Weberian bureacracy and Brazilian diplomatic structure

Carolina Silva Pedroso – Graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP), bolsista CAPES e pesquisadora vinculada ao IEEI (Instituto de Estudos Econômicos Internacionais – UNESP).

Email: c.silvapedroso@gmail.com

Resumo: O crescente grau de politização que atingiu a agenda externa do país nos últimos anos trouxe questionamentos sobre a supremacia do corpo diplomático do Itamaraty nos assuntos internacionais. Este trabalho examinará a estrutura organizacional do Ministério das Relações Exteriores brasileiro à luz da análise weberiana sobre burocracia, a fim de entender sua importância para a condução e formulação da política externa brasileira e até que ponto ela é permeável à questões políticas. Para tal, estará dividido da seguinte forma: apresentação do pensamento de Max Weber e da teoria sobre burocracia; caracterização da institucionalidade do Itamaraty e uma breve discussão sobre a permeabilidade do Ministério de Relações Exteriores a outros grupos dentro e fora do governo.

Sumário: 1. Introdução; 2. Algumas notas sobre o pensamento weberiano, 2.1. A burocracia weberiana, 2.2. A política burocrática nas análises de política externa; 3. Formação institucional do Itamaraty, 3.1. Formação do “Ethos” Burocrático no seio da diplomacia brasileira; 4. Politização da política externa; 5. Considerações Finais e 6. Bibliografia.

Palavras-chave: diplomacia brasileira, burocracia weberiana, insulamento, politização.

Abstract: The increasing level of “politicization” presented at country’s foreign policy agenda in recent years has brought questions about the supremacy of the Foreign Ministry’s diplomatic corps in international affairs. This paper will examine the organizational structure of the Ministry of Foreign Affairs of Brazil from Weberian analysis of bureaucracy in order to understand its importance for the formulation and conduct of Brazilian foreign policy and to know if it is possible to state its permeability to political issues. Then, this paper will be divided as follows: presentation of the thought of Max Weber and the theory of bureaucracy; characterization of the Foreign Ministry’s institutions and a brief discussion on the permeability of the Ministry of Foreign Relations to other groups within and outside government.

Key-words: Brazilian diplomacy, Weberian Bureacracy, insulation, politicization.

  1. Introdução

A diplomacia brasileira tem destaque nos debates acadêmicos por possuir um corpo diplomático profissionalizado e especializado, cuja formação é garantida pelo Instituto Rio Branco. Embora nem sempre tenha sido desta forma, a estrutura burocrática do Ministério das Relações Exteriores é apontada como um dos fatores que permitem a continuidade de muitas diretrizes da política externa, mesmo em situações de ruptura, como mudança de regime político ou de modelo de desenvolvimento, permitindo seu insulamento institucional (LIMA, 1994; HIRST & PINHEIRO, 1995; OLIVEIRA, 2005).

Nos últimos anos a política externa vem passando por um processo de politização de sua agenda com um alto grau de interesse da opinião pública e outros segmentos da sociedade, sobretudo a partir dos governos de Fernando Henrique Cardoso e, de forma mais acentuada, Lula da Silva, acarretando questionamentos sobre a supremacia do corpo diplomático nos assuntos internacionais (LIMA, 2000).

Desta forma, a burocracia do Itamaraty será examinada à luz da análise weberiana sobre burocracia, a fim de entender sua importância para a condução e formulação da política externa brasileira e até que ponto ela é permeável à questões políticas. Para tal, o presente trabalho será organizado da seguinte forma: inicialmente, em uma parte mais teórica, haverá a apresentação da análise weberiana sobre burocracia e uma breve discussão sobre política burocrática em estudos de política externa. Posteriormente, far-se-á uma breve caracterização da burocracia diplomática do Itamaraty, a fim de introduzir o debate sobre a permeabilidade do Ministério das Relações Exteriores a outros grupos, dentro e fora do governo.

  1. Algumas notas sobre o pensamento weberiano

Max Weber, em suas reflexões, ofereceu à Sociologia um aparato robusto para entender a importância e a lógica da burocracia na sociedade capitalista. Para o presente estudo, esse instrumental provido pelo pensador alemão será de imensa utilidade, contudo, será preciso “dar um passo atrás” e apresentar algumas considerações sobre o seu pensamento [1] de uma maneira mais geral, a fim de iniciar a discussão sobre a burocracia.

Weber concedeu às ciências humanas o desenvolvimento de um método compreensivo para entender a ação social, praticada pelo sujeito, e a relação social, que é reciprocidade a esse ato, isto é, a interação entre os sujeitos. A fim de melhor apurar sua metodologia, ele trabalhava a partir da construção de tipos ideais para compreender a sociedade. Essa tipologia, embora fosse teórica, pura, abstrata e referencial, era baseada na pesquisa empírica, histórico-crítica, comparativa e indutiva. Assim, trata-se de um instrumento de estudo que visa ordenar a realidade.

O tipo ideal é uma construção racional que, cumprindo com algumas exigências formais, deve apresentar em seu conteúdo as características de uma utopia. De fato, o tipo ideal nunca ou dificilmente pode ser achado na realidade, já que seu conteúdo configura uma arbitrária irrealidade, uma sugerida ficção, ou melhor, atrever-nos-íamos a dizer, uma exageração da realidade, especialmente das tendências de alguns aspectos dela, que tornam o quadro típico-ideal desproporcional com relação à realidade [2].

Considerando o método tipológico como ferramenta analítica usada por Weber, é possível afirmar que seu pensamento foi permeado por dois tipos ideais de ação social: o racional, que envolve meios e fins, valores e ação societária e emocional ou tradicional, característico de uma ação comunitária. Seu ponto de partida, portanto, é o desencantamento do mundo, com a racionalidade ocidental (ESPÓSITO, 2009; SAINT-PIERRE, 2004).

Dentro desta perspectiva, ele procura entender as peculiaridades do Ocidente que permitiram que ali se desenvolvesse o capitalismo quantitativamente e de forma tão profunda. Weber cita muitos fenômenos sociais e artísticos que não foram exclusivamente ocidentais, mas que ali ganharam força e puderam ser sistematizados. Da mesma forma, elementos inevitáveis da condição humana  como “o impulso para o ganho, a persecução do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem, em si mesmo, nada que ver com o capitalismo”, que é definido pela “busca do lucro, do lucro sempre renovado por meio da empresa permanente, capitalista e racional” [3].

Reconhecendo, pois, que o Ocidente desenvolveu quantitativamente o capitalismo, a grande especificidade do processo ocorrido ali teria sido a organização racional do trabalho livre, pelo menos formalmente, por meio da separação dos negócios da moradia da família e da contabilidade racional. Sem embargo, para Weber, há ainda um fator essencial a ser levado em conta, que é o ethos do sistema econômico. Sua tese é que esse “ethos racional” só conseguiu sobrepor-se aos demais porque encontrou o lastro necessário no Protestantismo, cujos adeptos teriam “mostrado uma especial tendência para desenvolver o racionalismo econômico” [4].

Ele também considera relevante para o entendimento do capitalismo ocidental elementos sociais, tais como o surgimento das classes envolvidas diretamente na produção, a burguesia e o prolatariado, e a ideia de cidadania e todo o aparato jurídico, legal e administrativo desenvolvido para ampará-la. Assim, Weber também voltou seu olhar investigativo para as formas de dominação oriundas das estruturas de poder, sobretudo do Estado, entidade que dispõe do monopólio legítimo da força.

Tal como as instituições políticas que o precederam historicamente, o Estado é uma relação de homens que dominam seus iguais, mantida pela violência legítima (isto é, considerada legítima). Para que o Estado exista, os dominados devem obedecer a suposta autoridade dos poderes dominantes. Daí as seguites perguntas: quando e por que obedecem os homens? [5]

            A partir do questionamento sobre a dominação, o pensador elaborou três justificativas que poderiam legitimá-la: i) a autoridade do passado eterno, baseada nos valores consolidados e na tradição; ii) o carisma do príncipe/governante, que permite a criação de vínculos com o povo e iii) a legalidade proveniente da base jurídica. Ele  assume que são tipos ideais e, portanto, não são encontráveis em sua “forma pura” na realidade. Recorrendo às suas palavras:

No caso da dominação baseada em estatutos, obedeceu-se à ordem impessoal, objetiva e legalmente estatuída e aos superiores por ela determinados, em virtude da legalidade formal de suas disposições e dentro do âmbito de vigências destas. No caso da dominação tradicional, obedeceu-se à pessoa do senhor nomeada pela tradição e vinculada a esta (dentro do âmbito de vigência dela), em virtude de devoção aos hábitos costumeiros. No caso da dominação carismática obedeceu-se ao líder carismaticamente qualificado como tal, em virtude de confiança pessoal em revelação, heroísmo ou exemplaridade dentro do âmbito da crença nesse seu carisma [6].

            De forma generalizada – e por isso pouco precisa, porém didática para os propósitos deste trabalho -, pode-se dizer que na Idade Média boa parte da Europa Ocidental assistiu à hegemonia do poder tradicional da Igreja Católica sobre os demais. Destarte, no período das Monarquias Absolutistas, houve o surgimento de figuras carismáticas como o rei Luis XIV e sua célebre afirmação: “L’État c’est moi” (o Estado sou eu).

            O líder carismático, além de seu carisma, também dispõe de outros elementos que o ajudam a manter sua dominação, tais como o controle sobre os aparelhos repressores, que garantem o uso legítimo da força física, e também sobre a burocracia que, por meio dos salários e outros benefícios, cria um vínculo com esse corpo profissionalizado e qualificado, garantindo agilidade nos processos. Isso significa que a prevalência de um tipo ideal não elimina outros modos de dominação, podendo ocorrer uma sobreposição entre eles. Por exemplo, a religiosidade não deixou de existir com o surgimento do vetor dominante racional-legal. Reitera-se que cada época histórica tem um vetor dominante (ethos), que é traduzido e vivido conforme as circunstâncias históricas (WEBER, 1999b). Na Modernidade dominação é feita pelo ethos racional-legal, cujo elemento central é a burocracia, que será apresentada na próxima seção.

2.1. A burocracia weberiana

Para analisar o terceiro tipo de dominação, a racional, Weber leva em conta o aparato jurídico-legal que permite ao Estado exercer o domínio sobre os cidadãos. Ele aponta a racionalização, fomentada tanto pela industrialização como pela militarização da sociedade, como fator fundamental para compreender o processo de construção do Estado nacional e de seu arcabouço normativo (WEBER, 1999a, 1999b).

Como já foi pontuado no item anterior, a industrialização da economia e o desenvolvimento do capitalismo ocidental foram possíveis graças à ética protestante, em que lógica de acumulação de riquezas e do individualismo contavam com a legitimação da religião. A racionalização do trabalho ocorrera primeiro no âmbito das indústrias que, a fim de conseguir manter a eficiência e a produtividade, necessitavam de organização e um alto grau de especialização dos trabalhadores. O pensador faz uma construção de caráter lógico: se o capitalismo como tal só pode existir com a racionalização progressiva e crescente, sua maior contribuição teria sido o surgimento da burocracia (WEBER, 1999b, 2003a).

Para explicar como o fenômeno da burocratização, que antes era encontrado somente no âmbito econômico, passou a dominar também os espaços públicos do Estado, Weber analisa a “militarização da sociedade civil  no final do século XIX – [com] corporações funcionando cada vez mais como exércitos, nos quais todos tinham seu lugar e cada lugar, uma função definida” [7].

Tendo em vista que o exército prussiano sempre se destacou dos demais europeus pela sua eficiência e rigor, Bismark passou deliberadamente a fomentar os mesmos princípios para a burocracia estatal, com a finalidade de manter a paz e evitar revoluções. A ideia era de que mesmo que as condições sócio-econômicas favorecessem algum tipo de revolta social, se o trabalhador tivesse consciência de sua posição e de sua função para o funcionamento da sociedade, a tendência natural seria a de que ele não se revoltaria contra o status quo (SENNETT, 2006).

Ademais, para que o Estado nacional moderno pudesse cumprir suas obrigações com eficiência, precisão, rigor técnico e confiabilidade, era preciso dispor de um quadro funcional qualificado e disciplinado, não muito diferente do que as indústrias já possuíam, cujas características estão listadas da seguinte maneira:

  1. são pessoalmente livres; obedecem somente às obrigações objetivas de seu cargo;
  2. são nomeados (e não eleitos) numa hierarquia rigorosa dos cargos;
  3. têm competências funcionais fixas
  4. em virtude de um contrato, portanto, (em princípio) sobre a base de livre seleção segundo
  5. a qualificação profissional – no caso mais racional: qualificação verificada mediante prova e certificada por diploma;
  6. são remunerados com salários fixos em dinheiro, na maioria dos casos com direito a aposentadoria; em certas circunstâncias (especialmente empresas privadas), podem ser demitidos pelo patrão, porém sempre podem demitir-se por sua vez; seu salário está escalonado, em primeiro lugar, segundo a posição na hierarquia e, além disso, segundo a responsabilidade do cargo e o princípio da correspondência à posição social (capítulo IV);
  7. exercem seu cargo como profissão única ou principal;
  8. têm a perspectiva de uma carreira: “progressão” por tempo de serviço ou eficiência, ou ambas as coisas, dependendo do critério dos superiores;
  9. trabalham em “separação absoluta dos meios administrativos” e sem apropriação do cargo;
  10. estão submetidos a um sistema rigoroso e homogêneo de disciplina e controle do serviço [8].

Considerando que a estrutura burocrática é um dos grandes legados do capitalismo e que a força-motriz desse sistema – a obtenção de lucros – tende a colocar os mercados em risco, a burocracia também tornou-se responsável por mitigá-los. Para alcançar esse objetivo, os burocratas tinham que desempenhar sua função com o máximo de rigor e objetividade. Essa mesma lógica foi rapidamente incorporada pelo Estado e por sua burocracia governamental: “Quando a lição do lucro estratégico foi transferida igualmente para os ideais de eficiência governamental, a posição dos servidores públicos foi elevada, isolando-se cada vez mais as suas práticas burocráticas das oscilações da política” [9]. Desta forma, procurou-se proteger ou blindar a burocracia estatal das mudanças e arroubos políticos que poderiam comprometer sua eficácia. À isso, Weber chamou de insulamento burocrático.

É preciso ainda considerar a burocracia sob o ponto de vista da teoria da ação, ou seja, de que produz um modo de pensar ou uma conduta própria, ou seja, um ethos ou uma forma de ver o mundo compatível com seus próprios critérios. A autonomia de pensamento também reforça a característica de insulamento. O tipo ideal de burocracia – baseado em um sistema hierárquico, impessoal, meritocrático – funciona por meio de processos e mecanismos de controle que visam garantir o máximo de isenção, objetividade e de respeito às leis.

Tendo como base a relação entre o capitalismo e a burocracia, supõe-se que quanto mais capitalista uma realidade, mais burocrático será seus ethos, com a internalização de parâmetros do modelo racional-legal. Nesse sentido, uma das grandes preocupações de Max Weber é a possibilidade de perda da racionalidade, já que mesmo o “pequeno” burocrata tem uma dose de poder (embora menor que a do seu superior), o que permite, por sua vez, burlar o sistema ou dificultar os processos por alguma motivação não-racional. Por isso, o insulamento burocrático torna-se peça-chave para a manutenção da objetividade e eficiência dessa burocracia, que deve evitar “contaminação” por parte da política, muito embora seja essencial para o bom funcionamento das políticas estatais (WEBER, 1999a).

2.2. A Política Burocrática nas Análises de Política Externa

Os primeiros estudos de política externa foram desenvolvidos no contexto de predominância do racionalismo e foram amplamente influenciados por métodos cientificistas e behavioristas, como o da escolha racional, Teoria dos Jogos, entre outros, em que o impacto de fatores internos aos Estados, tais como as ideologias, crenças, visões e percepções dos atores, mudanças de regimes, entre outros, eram desconsiderados ou colocados numa escala de pouca importância. Tal “engessamento” é caracterizado pela predominância de uma visão estadocêntrica, baseada na premissa de que os Estados são atores unitários e racionais, destinados a defender seus interesses em um sistema internacional anárquico (WALTZ, 2000).

A evolução desta perspectiva na direção de uma análise que considerava o âmbito interno aos Estados foi iniciada com trabalhos como o de Robert Putnam, “Diplomacy and Domestic Politics: the logic of two-level games”. Para o referido autor, essas duas esferas se influenciam mutuamente e, nesse sentido, o seu “Jogo dos Dois Níveis” permite identificar como e quando essa interação acontece (PUTNAM, 1988).

No entanto, foi somente com o trabalho de Graham Allison, “Essence of Decision: explaining the Cuban Missile Crisis”, que a política burocrática começou a ser levada em consideração. Estudando os acontecimentos que levaram à crise dos mísseis, o autor propõe três modelos de análise de política externa: o do ator racional, o do comportamento organizacional e o da política governamental (ALLISON, 1971). A grande contribuição desta obra foi a inclusão da possibilidade de estudar a política burocrática e, consequentemente, as negociações internas no momento da decisão. Allison trouxe à tona:

[…] a alternativa de uma visão de insider e o entendimento de que as decisões estratégicas podem resultar muito menos de objetivos claros e indiscutíveis e muito mais dos compromissos assumidos entre os tomadores de decisão. O que transparece como um curso de ação sólido pode ser a resultante das controvérsias entre os atores organizacionais ou da prevalência de um grupo de forças sobre outros [10].

No entanto, neste esquema analítico mais complexo não é possível identificar se a causa de possíveis conflitos entre os agentes seriam os diferentes objetivos, inerentes a cada burocracia, ou se seriam as visões divergentes dos atores envolvidos. Allison e Putnam estariam mais preocupados com “a natureza, a organização e a distribuição de fatores materiais” [11] na formulação de política externa do que com o peso das diferentes visões de mundo no processo decisório.

A contribuição da perspectiva da política burocrática para análises de política externa pode ser sintetizada em quatro proposições: i) Executivo é composto por grupos e organizações que podem ter interesses divergentes; ii) em política externa não há um ator preponderante; mesmo o presidente é um mero participante, ainda que sua influência seja poderosa; iii) a decisão final é um “resultado político” no sentido de que foi negociada e barganhada entre os atores e iv) sempre existe uma lacuna entre a decisão tomada e sua implementação. Tendo em vista a preponderância do Executivo nestas análises, esse será também um dos recortes adotados por esse trabalho, assim como a perspectiva de que a decisão de política externa é o resultado de negociações internas, em que o Itamaraty e a força de seus paradigmas têm um peso muito relevante (ROSATI, 1981).

Outras obras no mesmo sentido foram desenvolvidas e, embora não façam referência direta à burocracia weberiana, elas não fogem aos conceitos básicos descritos pelo sociológo alemão. Da mesma forma, no caso brasileiro do Itamaraty, muitos autores fazem a inevitável comparação do tipo ideal de Weber com o corpo diplomático. A seguir, faremos uma síntese da história da formação desta burocracia no seio do Estado brasileiro, ressaltando as características que permitem tal comparação.

  1. Formação Institucional do Itamaraty

Nosso artigo seguirá o esquema analítico de Zairo Cheibub, que classifica a história institucional do Itamaraty em três fases, que coincidem com os tipos ideais weberianos. A primeira é a imperial, em que os interesses dos diplomatas se confundiam com os do Ministério, conhecida como período Patrimonial. O Patrimonialismo era uma característica oriunda da colonização portuguesa e estava expressa em todas as camadas do Estado brasileiro (ESPÓSITO, 2009). Não são poucos os relatos de embaixadores brasileiros deste período que, para manter um bom padrão de vida fora do país, utilizavam-se de recursos próprios.

(…) no período imperial, o MRE e os diplomatas não se diferenciavam de outros setores da administração e da elite nacional. Apesar dos esforços para dotar as carreiras diplomáticas e consular e a secretaria de Estado de uma estrutura mais burocratizada e profisisonal, predominaram, durante todo o período, os traços patrimoniais, o baixo grau de profissionalismo do serviço exterior, o filhotismo, o entreguismo (…) [12]

Este autor afirma ainda que a elite que estava à frente da diplomacia, embora não fosse um quadro burocrático profissional, tinha um grau de homogeneidade muito elevado, devido à formação portuguesa e aristocrática. Esse perfil mais homogêneo constituía um dos quesito que nos diferenciava dos demais países da região e, por este motivo, nossa diplomacia já se destacava desde o Império, sendo responsável por resolver problemas fronteiriços de forma muito mais eficiente que os vizinhos.

A segunda fase coincide com o início da República e vai até 1910, anos em que o Barão do Rio Branco esteve à frente do MRE, exercendo uma liderança carismática e extremamente centralizadora. Segundo Cheibub:

O principal destaque neste período é a existência de um elemento carismático na figura do Barão. Esse carisma resulta, em parte, do fato de haver Rio Branco contribuído decisivamente para demarcar através de negociações e arbitragens internacionais as fronteiras do país, que vinham sendo objeto de disputa e conflito durante quatro séculos. […]

Durante a permanência à frente do Itamaraty, esse carisma é reforçado, seja devido aos sucessos políticos do período que chefiou o Ministério, seja ao seu estilo personalista de conduzir a administração pública [13].

Embora Weber nos ajude a entender também a liderança carismática exercida por Rio Branco de 1902 a 1910, o interesse deste trabalho é analisar o tipo ideal de poder burocrático descrito por ele a partir do corpo diplomático brasileiro, a partir da fase burocrática-racional. Neste período ocorreram reformas administrativas para tornar a carreira de diplomata melhor estruturada, coincidindo com a modernização de outros aparatos estatais e, portanto, não foi um processo peculiar ao Itamaraty.

Foi somente na década de 1930, todavia, que a necessidade de criar uma escola de formação de diplomatas tornou-se premente. O Instituto Rio Branco tinha por missão formar os profissionais que substituíram aqueles que, durante anos, mantiveram a continuidade de determinadas práticas e métodos da instituição. A ideia era proporcionar uma formação que garantisse a perpetuação destes princípios aos novatos. A preocupação, portanto, não residia somente no recrutamento de novos quadros, por meio de concursos e outros processos metirórios, mas também na especialização dos mesmos para o trabalho diplomático. A concretização desse desejo só ocorreu em 1945, na ocasião do centenário do Barão, que deu nome ao instituto que permanece até hoje como o centro de formação intelectual dos ingressantes na carreira diplomática.

O governo de Getúlio Vargas teria sido o responsável não só pela criação do Instituto Rio Branco, como também pela “blindagem” da burocracia pública, função atribuída ao DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público). Na avaliação de Tomaz Espósito:

Esse insulamento burocrático permitiu a possibilidade de continuidade nas políticas estatais e uma maior especialização por parte do corpo dos funcionários de Estado, graças à constituição de uma concepção de mundo mais ou menos homogênea e a um forte sentimento de espírito de corpo. Esses profissionais são formatados pelas instituições de ensino e aperfeiçoamento dos ministérios, como o Instituto Rio Branco (IRB) do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Ademais, as vozes dissonantes do mainstream sempre podem ser silenciadas com transferências impedidas de ascenderem as posições de destaque dentro da burocracia [14].

Com a criação de um processo seletivo, a intenção do IRB era conferir um caráter meritocrático ao Itamaraty, uma vez que o perfil homogêneo dos diplomatas era resultante de nomeações consideradas classistas e elitistas (GOBO, 2010). A validade da teoria weberiana, que reconhece a sobreposição de tipos ideais na realidade, também encontra lastro nesse caso, porque mesmo com o empenho em profissionalizar o quadro diplomático por critérios que não os de origem social, os diplomatas ainda preservam hábitos refinados, típicos de seus homólogos do Período Patrimonialista. Permanece, pois, vínculos com o tradicionalismo no vetor dominante racional-burocrático.

A teoria weberiana nos ajuda a entender muitas das características presentes no Itamaraty e sua burocracia, no entanto o “tipo ideal” encontra limites explicativos na peculiaridade de cada caso. Assim sendo, é possível afirmar que o corpo diplomático brasileiro representa um exemplo insulamento burocrático descrito por Weber, embora possua características específicas que transcendam o modelo de análise e que serão explicitadas na próxima seção.

3.1. Formação do “Ethos” Burocrático no seio da diplomacia brasileira

A análise histórica dos estudos de política externa brasileira revela que o reconhecimento da importância de se produzir trabalhos sobre esse tema veio da própria diplomacia, bem como da sua necessidade constante de formação de quadros cada vez mais especializados. Até as décadas de 60 e 70 do século XX esses estudos permaneceram a cargo do Itamaraty e de outros órgãos estatais para, de forma paulatina, se tornarem objetos de pesquisa de centros acadêmicos. SILVA (1998) defende que

essa institucionalização tardia da pesquisa universitária teve repercussões não apenas sobre as temáticas e enfoques teóricos dominantes nessa área, como também no fato de que o debate acadêmico tendeu a privilegiar dimensões normativas e prescritivas [15].

O fato de que os atores da diplomacia são também pensadores com grande influência acadêmica, cuja percepção da natureza do sistema internacional é predominantemente realista, é determinante para sua função como atores centrais, o que consequentemente tem reflexo na produção acadêmica. Por conta dessa hegemonia no pensamento sobre a conduta externa do Brasil, o Itamaraty é considerado um dos grandes exemplos de insulamento burocrático de tipo weberiano, uma vez que seus diplomatas elaboraram uma visão dos temas internacionais que predomina sobre as demais (ARBILLA, 2000; HERZ, 2002; LIMA, 2000; SILVA, 1995).

Nesse sentido, a existência de elementos de política externa que permaneceram ao longo dos anos, constituindo o que Amado Cervo chama de “acumulado histórico” (CERVO, 1994 apud SILVA, 1998.). Esses princípios seriam o pacifismo, a não intervenção, a auto-determinação dos povos, respeito às normas internacionais e defesa da igualdade e soberania das nações. A existência desse “acervo paradigmático” tornou possível assegurar, mesmo em situações de mudança de regime, traços de continuidade da política externa. A autonomia e a coesão seriam as características que garantiriam

a estabilidade necessária para manter uma certa continuidade na política externa brasileira ao longo do tempo. Isto se dá por duas razões, entre outras: por um lado, a autonomia protege a instituição de mudanças muito bruscas na sociedade. Por outro lado, a coesão garante um certo grau de consenso, indispensável à durabilidade de uma política [16].

A autonomia a que se refere ao autor mais uma vez remete ao conceito de insulamento burocrático de Max Weber, já que o Itamaraty foi uma das poucas instâncias que não sofreu desmantelamentos com rupturas políticas como o golpe militar de 1964 ou a redemocratização. Obviamente não se pode dizer que não houve abalos, no entanto foram muito pouco determinantes do que se comparados a outros órgãos governamentais. Isso demonstra que a burocracia diplomática foi capaz de construir uma blindagem a eventos políticos capaz de proteger suas principais diretrizes.

Ademais da força que um pensamento próprio sobre as questões de política externa teve em preservar a autonomia do Itamaraty diante de rupturas políticas, é importante ressaltar que a estrutura organizacional hierarquizada, rigorosa e disciplinada também foi um fator fundamental. No caso do regime instaurado com o golpe de 1964, por exemplo, a diplomacia contou com a simpatia dos militares, por conta da semalhança estrutural com a ordem das Forças Armadas, o que remete à análise weberiana sobre a militarização da sociedade (GOBO, 2010; VIZENTINI, 2004).

De maneira geral, os trabalhos sobre política externa brasileira levam em consideração o impacto da burocratização e alto grau de profissionalização do Itamaraty. O grande apelo de (SILVA, 1995) é para que seja dada mais atenção aos aspectos cognitivos dos atores envolvidos na formulação da política externa, pois considera que as percepções são representativas tanto para o fortalecimento da identidade do grupo decisório, mas sobretudo para a formulação da política em si. Isto é, considerar o Itamaraty e o seu peso como instituição influente nas decisões de política externa, não como um agente “neutro”, mas sim como possuidor de uma ou mais identidades que são refletidas na maneira como pensa e conduz as questões no plano internacional.

O controle que permite a perpetuação da visão desenvolvida no MRE é possível graças à estrutura organizacional que faz a preparação das mentes desde o processo seletivo e durante sua formação no Instituto Rio Branco. Para Tomaz Espósito:

As percepções de mundo da diplomacia brasileira são forjadas por provas de ingresso que privilegiam determinados tópicos e conteúdos de uma visão de mundo e pela obrigação dos jovens diplomatas de freqüentarem os cursos de formação e capacitação do Instituto Rio Branco, os quais têm entre suas finalidades está a formatação de um espiriti de corps, que conduz a uma integração e a eliminação das diversas divisões reais e potenciais da burocracia, e modelar um sentimento de “excepcionalidade” dos demais grupos e indivíduos da comunidade, que os credenciam a guiar o Estado Brasileiro [17].

Este autor acrescenta a essa análise o esforço que o Itamaraty empreende em manter sua autonomia diante das crescentes demandas de outras instâncias em relação aos temas internacionais, uma vez que procura evitar o surgimento de visões alternativas. Contudo, o crescimento exponencial da área de Relações Internacionais e do interesse por temas de política exterior por parte do empresariado, da sociedade civil e da mídia tendem a reverter esse quadro de “despolitização” da política externa. Assim, apresentar-se-ão a seguir alguns elemtentos que demonstram o “desencapsulamento” do MRE e dos temas da agenda internacional do país, sobretudo a partir dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, que exerceram fortemente a chamada “diplomacia presidencial” (ALMEIDA, 2012).

  1. Politização da política externa

A supremacia do Ministério de Relações Exteriores sobre questões que envolvam a agenda internacional do Brasil é um elemento que permaneceu consensual durante muito tempo na literatura especializada. Alguns fatores ajudariam a explicar esse fenômeno, como a formação do Estado nacional brasileiro, que teria contribuído para o caráter autônomo do Ministério e também a própria formação dos diplomatas, de forma a diferenciá-los dos demais funcionários públicos.

Seguindo essa premissa, o Itamaraty conseguiu consolidar-se como um dos principais agentes na condução e formulação da política externa em decorrência de algumas características do aparato estatal, das quais se destacam a preponderância do Executivo sobre temas internacionais, “relegando ao Congresso Nacional a uma posição marginal” e o “caráter ‘imperial’ do presidencialismo brasileiro” [18].

O segundo ponto, que trata da “diferenciação” que os diplomatas buscam preservar em relação aos demais burocratas do Estado, reforça o caráter insular da instituição e outro elemento de grande valia nas análises weberianas: a distinção clara entre o burocrata e o político profissional. Os funcionários do MRE fazem questão de deixar claro que a sua função é a de representantes do Estado brasileiro e, diferentemente dos políticos profissionais, não estão preocupados em defender interesses do governos ou do partido que estiver no poder [19].

No entanto, muitos autores falam na “politização” da política externa brasileira nos últimos anos, em que os temas da agenda internacional do país, que até então tinham pouco espaço na mídia e se restringiam aos debates acadêmicos e diplomáticos, passaram a chamar mais atenção. Com isso, ganharam mais espaço nos meios de comunicação, gerando interesse de grupos sociais que antes pareciam alheios à essas questões (ALMEIDA, 2012; CASON & POWER, 2009; LIMA & SANTOS, 2010).

A “politização” de temas internacionais, sobretudo a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, pode ser explicada por elementos sistêmicos, internos e relacionados à liderança pessoal. CASON & POWER (2009) destacam, nesse sentido, o contexto do fim da Guerra Fria e a necessidade de reposicionamento do Brasil no mundo; o fortalecimento de grupos de interesses internos por conta da democratização e do aumento no número de atores preocupados com política externa e também a liderança política dos mandatários, exercida através da diplomacia presidencial.

            As mudanças no sistema internacional foram importantes para um papel mais ativo dos presidentes na política externa brasileira, especialmente o fim da Guerra Fria e a ascensão do paradigma neoliberal. A política econômica passou a ser cada vez mais um instrumento de política externa, tendo reflexos importantes no sistema internacional, o que também fortaleceu o papel do chefe do Executivo nacional na política externa. Essa mudança conjuntural internacional também fez aumentar a participação da sociedade civil em assuntos de política externa, o que explica, em parte, a grande repercussão das ações internacionais do país nos meios de comunicação.

            A questão do pluralismo de atores e liderança pessoal dos presidentes na política externa parece, à primeira vista, fatores mutuamente exclusivos. Porém, a fim de entender essa dinâmica, é preciso levar em conta o papel do Itamaraty como instituição insulada burocraticamente e que deteve, durante quase um século, a hegemonia decisória de política externa e comercial (CASON & POWER, 2009). Muitos analistas também ressaltam a importância da nomeação de atores-chave que fizeram a intermediação entre a burocracia diplomática e o Partido dos Trabalhadores: Celso Amorim como ministro das Relações Exteriores; o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães no cargo de 1º secretário do Itamaraty e de Marco Aurélio Garcia, que ocupou o posto de assessor especial da presidência da República para temas internacionais (VIGEVANI & CEPALUNI, 2007).

            No entanto, CASON & POWER (2009) acreditam que, apesar da forte percepção de que o Itamaraty continua muito fechado em si mesmo, dando pouca ou nenhuma atenção a grupos de interesses de fora, alguns espaços vem sendo abertos pela instituição nos últimos anos.

Itamaraty’s slow evolution since the mid-1990s has opened the ministry to new inputs from society, including NGOs, public opinion, and especially the private sector. But the most dramatic indicator of “power fl owing outward” from Itamaraty has been the increasingly direct role of the presidency in foreign affairs. This is emphatically not a Brazilian tradition [20].

            Em outras palavras, eles afirmam que houve uma abertura do MRE a demandas oriundas de outros grupos, tendência que foi acentuada no período FHC-Lula, em que esses dois presidentes tiveram uma ação mais altiva internacionalmente, de forma a enfraquecer a hegemonia do Itamaraty em temas de política externa. Um exemplo desse processo seria o esforço de cooperação com outros ministérios e até a possibilidade de maior influência desses grupos no corpo burocrático da diplomacia brasileira. Existiria, portanto, uma tendência à descentralização, exemplificada pelos autores na criação da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), durante o governo de FHC e mantida por Lula, órgão cuja responsabilidade não é do Ministério de Relações Exteriores (MRE), mas sim do Ministério de Desenvolvimento de Comércio (MDIC). Embora a CAMEX seja composta por seis órgãos governamentais (MDIC, MRE, Ministério da Agricultura, da Reforma Agrária, do Planejamento e gabinete presidencial), a hegemonia do MDIC sobre os demais seria evidente.        

            Por outro lado, há autores que defendem que a politização ocorrida na condução e formulação da política externa brasileira é conseqüência do não entendimento das mudanças do sistema internacional e não um efeito delas. Isso teria ocorrido do governo Lula não porque ele desconhecesse a relevância dessas mudanças, mas sim porque privilegiaria as posições ideológicas oriundas da agenda do Partido dos Trabalhadores (ALBUQUERQUE, 2006).

            ALMEIDA (2012) pondera que, embora a cartilha partidária tenha um peso muito importante, um dos principais objetivos adotados pelo govero Lula na inserção internacional do país, que era conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, nunca fizera parte do discurso e das pretensões de seu partido. Essa posição representa o esforço de convencimento, por parte da diplomacia profissional, em inserir essa aspiração na agenda internacional de Lula.

            Portanto, teria havido um duplo movimento: enquanto a nomeação de assessores especiais oriundos do PT teria influenciado no relacionamento do Brasil com a América do Sul, sobretudo com outros governos considerados progressistas, a burocracia diplomática do Itamaraty esforçou-se para impor temas que considerava essenciais na agenda governamental. Por exemplo, em questões que não figuravam “no ‘menu de política externa’ do PT, Lula teve de ser convencido pelo seu ministro de Relações Exteriores de que o Brasil possuía grandes chances de ingressar no CSNU” [21]. No entanto, a posição mais enfática deste autor está em defender a tese de que foi no plano internacional que o governo dispôs de maior “margem de manobra” para colocar em prática os ideais do Partido dos Trabalhadores, já que no campo econômico houve a continuação das diretrizes implantadas pelo governo anterior.

            Assim sendo, percebe-se que não há consensos sobre a relação de Lula e a diplomacia do MRE e qual desses dois agentes teria tido maior ou menor poder de imposição de agenda na arena internacional. Ou seja, não está claro em que medida a estrutura burocrática do Itamaraty, que vem exercendo sua função com certa autonomia  no decorrer dos anos foi capaz de impor agendas na política exterior do país e, por sua vez, qual o poder de barganha do governo e dos grupos de interesses que o compõe frente à institucionalidade do Itamaraty.

  1. Considerações Finais

A análise weberiana sobre a burocracia é útil para entender a importância da racionalização dos processos que culminaram com a construção do Estado nacional, bem como de suas instâncias. Igualmente, no caso da diplomacia brasileira, oferece um horizonte teórico interessante para compreensão do insulamento burocrático do Itamaraty. No entanto o “tipo ideal” de burocracia encontra limites explicativos na peculiaridade de cada caso. Assim sendo, é possível afirmar que o corpo diplomático brasileiro representa um exemplo insulamento burocrático descrito por Weber, embora possua características específicas que transcendam seu modelo de análise.

Esse insulamento, que era tido como consensual pela literatura especializada, vem sendo questionado nos últimos anos pelo fenômeno da “presidencialização” da política externa, bem como pelo crescente interesse da sociedade civil pelos temas da agenda internacional brasileira, ainda que permaneça sendo baixo em relação a outras políticas públicas. Embora não seja possível quantificar a permeabilidade institucional do Itamaraty, é notável que a autonomia burocrática foi afetada por esses processos.

Sobre a influência da política na burocracia, Weber visualizava a possibilidade de um líder ou partido carismático servirem de “freio” à burocratização, porém também previa um cenário pessimista que poderia ocorrer com a “desorganização” burocrática. É importante salientar que o contexto em que ele desenvolvera seu pensamento favoreceu uma postura que hoje poderia ser classificada como “conservadora”, já que a permeabilidade do Itamaraty às demandas da sociedade deve ser brindada como algo positivo, já que a política externa é também um tipo de política pública. Para este caso, pois, o alerta de Weber parece não ser de todo adequado, uma vez que é necessário “encontrar um termo ‘ótimo’ entre a necessária ‘blindagem’ do Itamaraty de forças patrimoniais e a imprescindível participação dos representantes de grupos sociais nacionais na formulação das diretrizes da política internacional (…)” [22].

Contudo, a politização da política externa no sentido de sua partidarização parece ser um fenômeno preocupante e, nesse sentido, a ressalva de Max Weber permanece válida. A abertura do Ministério das Relações Exteriores para a sociedade civil e a disputa de interesses ideológicos em seu âmbito são perspectivas ainda em curso e não se pode dizer com precisão seus efeitos no curto prazo, porém elas devem ganhar atenção especial nos estudos de política externa daqui para frente e, por isso, uma leitura atenta das obras do sociólogo alemão serão de muita utilidade.

  1. Bibliografia:

ALBUQUERQUE,  José Augusto Guilhon. O governo Lula em face dos desafios sistêmicos de uma ordem internacional em transição. Carta Internacional. NUPRI-USP: Publicação do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, Março de 2006, v. 1, n. 1, ISSN 1413-0904, pp. 13-21.

ALLISON, Graham T. Essence of Decision: explaining the Cuban Missile Crisis. New York: HarperCollins, 1971, 338 p.

ALMEIDA, Paulo Roberto de. A diplomacia da era Lula: balanço e avaliação. Política Externa (USP), v. 20, 2012, p. 95-114.

ARBILLA, José Maria. Arranjos Institucionais e Mudança Conceitual nas Políticas Externas Argentina e Brasileira (1989-1994). Contexto Internacional, v.22, n.2, julho/dezembro 2000.

BIGNETTI, Luiz Paulo. A essência do processo decisório: comentário sobre a obra de Graham Allison, BASE – Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, janeiro-abril 2009, pp. 71-41.

CASON, Jeffrey; POWER, Timothy. Presidentialization, Pluralization, and the Rollback of Itamaraty: Explaining Change in Brazilian Foreign Policy Making in the Cardoso-Lula Era. International Political Science Review, vol. 30, nº 2, 2009, pp. 117-140.

CHEIBUB, Zairo B. Diplomatas, Diplomacia e Política Externa: aspectos do processo de institucionalização do Itamaraty. Rio de Janeiro: dissertação de mestrado – IUPERJ, 1984.

­­­­­________________ Diplomacia e Construção Institucional: O Itamaraty em Perspectiva Histórica. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 28, nº 1, 1985, pp. 113-131.

ESPÓSITO, Tomaz. O Itamaraty e as Relações Exteriores Brasileiras, um Modelo de Dominação Weberiano? Videre, Dourados, MS, ano 1, n. 1, jan./jun. 2009, pp. 105-115.

GOBO, Karla. O Ministério das Relações Exteriores pelos seus atores: uma análise sobre o insulamento burocrático. ANPOCS, Paper apresentado no ST 16 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais: Grupos Dirigentes e Estruturas de Poder, Caxambu-MG, 2010.

HERZ, Mônica. O Crescimento da Área de Relações Internacionais no Brasil. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, vol. 24, nº1, jan/jul 2002, pp. 7-40.

HIRST, Monica; PINHEIRO, Leticia. A Política Externa do Brasil em Dois Tempos. Revista Brasileira de Política Internacional, 38(1), 1995.

JESUS, Diego Santos Vieira de. Da Redução da Incerteza Estratégica à Perpetuação da Exclusão: A Relevância dos Fatores Ideacionais na Análise de Política Externa, Contexto Internacional, vol. 31, nº 3, set/dez 2009, pp. 503-534.

LIMA, Maria Regina Soares de. Ejes analíticos y conflicto de paradigmas en la política exterior brasileña. America Latina/Internacional, v.1, n.2, outono-inverno 1994.

LIMA, Maria Regina Soares de. Instituições democráticas e política exterior. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, 2000, pp. 265-303.

LIMA, Maria Regina Soares de; SANTOS, Fabiano. A encruzilhada da oposição no debate da política externa. Valor Econômico, 05 abr. 2010, disponível em: http://observatorio.iuperj.br

OLIVEIRA, Henrique Altemani. Política Externa Brasileira, São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

PUTNAM, Robert. Diplomacy and Domestic Politics: the logic of two-level games. International Organization, v. 42, n. 3, 1988, pp. 427-460.

ROSATI, Jerel A. Developing a Systematic Decision-Making Framework: Bureaucratic Politics in Perspective. World Politics, Vol. 33, No. 2., Jan. 1981, pp. 234-252.

SAINT-PIERRE, Héctor L. Max Weber: entre a paixão e a razão. 3ª edição. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2004.

SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

SILVA, Alexandra de Mello e. Idéias e política externa: a atuação brasileira na Liga das Nações e na ONU, Revista Brasileira de Política Internacional, nº 41, vol. 2, 1998, pp. 139-158.

SILVA, Alexandra de Mello e. O Brasil no continente e no mundo: atores e imagens na PEB contemporânea. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, pp. 95-118.

VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. A Política Externa de Lula da Silva: A Estratégia da Autonomia pela Diversificação, Contexto Internacional, Rio de Janeiro, vol. 29, nº 2, julho/desembro 2007, pp. 273-335.

VIZENTINI, Paulo F. A política externa do regime militar brasileiro: militarização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). 2ª edição. Porto Alegre: Editora da UFGRS, 2004.

WALTZ, Kenneth. Structural Realism after the Cold War, International Security, v. 25, n.1 2000, pp. 5-41.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2003a, 230 p.

WEBER, Max. A política como vocação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003b, 110 p.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, vol. 1, 1999a, 464 p.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, vol. 2, 1999b, 586 p.

 

[1] As obras referenciais de Max Weber utilizadas para esse reflexão são “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, “A política como vocação” e os dois volumes de “Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva”.

[2] SAINT-PIERRE, Héctor L. Max Weber: entre a paixão e a razão. 3ª edição. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2004. Página 59.

[3] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2003a. Página 26, grifo do autor.

[4] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Página 40.

[5] WEBER, Max. A política como vocação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003b. Página 10.

[6] WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, vol. 1, 1999a. Página 141, grifos do autor.

[7] SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. Página 27.

[8] WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Página 141.

[9] SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Página 29.

[10] BIGNETTI, Luiz Paulo. A essência do processo decisório: comentário sobre a obra de Graham Allison, BASE – Revista de Administração e Contabilidade da UNISINOS, janeiro-abril 2009. Página 74.

[11] JESUS, Diego Santos Vieira de. Da Redução da Incerteza Estratégica à Perpetuação da Exclusão: A Relevância dos Fatores Ideacionais na Análise de Política Externa, Contexto Internacional, vol. 31, nº 3, set/dez 2009. Página 504.

[12] CHEIBUB, Zairo B. Diplomacia e Construção Institucional: O Itamaraty em Perspectiva Histórica. Rio de Janeiro, Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 28, nº 1, 1985. Página 118.

[13] CHEIBUB, Zairo B. Diplomacia e Construção Institucional: O Itamaraty em Perspectiva Histórica. Páginas 120-121.

[14] ESPÓSITO, Tomaz. O Itamaraty e as Relações Exteriores Brasileiras, um Modelo de Dominação Weberiano? Videre, Dourados, MS, ano 1, n. 1, jan./jun. 2009. Páginas 109-110.

[15] SILVA, Alexandra de Mello e. Idéias e política externa: a atuação brasileira na Liga das Nações e na ONU, Revista Brasileira de Política Internacional, nº 41, vol. 2, 1998. Página 139.

[16] CHEIBUB, Zairo B. Diplomatas, Diplomacia e Política Externa: aspectos do processo de institucionalização do Itamaraty. Rio de Janeiro: dissertação de mestrado – IUPERJ, 1984. Páginas 122-123.

[17] ESPÓSITO, Tomaz. O Itamaraty e as Relações Exteriores Brasileiras, um Modelo de Dominação Weberiano? Página 111.

[18] FARIA, 2008, p. 81 apud GOBO, Karla. O Ministério das Relações Exteriores pelos seus atores: uma análise sobre o insulamento burocrático. ANPOCS, Paper apresentado no ST 16 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais: Grupos Dirigentes e Estruturas de Poder, Caxambu-MG, 2010. Página 9.

[19] Karla Gobo realizou entrevistas com membros destacados do corpo diplomático brasileiro para chegar à essa conclusão (GOBO, 2010).

[20] CASON, Jeffrey; POWER, Timothy. Presidentialization, Pluralization, and the Rollback of Itamaraty: Explaining Change in Brazilian Foreign Policy Making in the Cardoso-Lula Era. International Political Science Review, vol. 30, nº 2, 2009. Página 122.

[21] LMEIDA, Paulo Roberto de. A diplomacia da era Lula: balanço e avaliação. Política Externa (USP), v. 20, 2012. Página 99.

[22] ESPÓSITO, Tomaz. O Itamaraty e as Relações Exteriores Brasileiras, um Modelo de Dominação Weberiano? Página 113.